Entre 25 e 27 de fevereiro de 2005, os responsáveis de Comunhão e Libertação (CL) no Brasil se reuniram em sua assembléia nacional para refletir sobre o tema “A vitória de Cristo é o povo cristão”. Um acontecimento imprevisto deu a este encontro um caráter único e mostrou, mais do que qualquer discurso, a profundidade e a beleza desta frase
Neste ano, a Assembléia Nacional de Responsáveis de Comunhão e Libertação foi agendada para 25 a 27 de fevereiro. Quis a Providência que este fosse um período especial na vida do Movimento, pois três dias antes de seu início morria padre Luigi Giussani, fundador do Movimento. O encontro foi marcado pela consciência da graça, cheia de maravilha, por participarem de uma grande história, por participarem daquelas grandes coisas que Cristo prometeu aos que O seguissem por meio da Igreja. Mais do que nunca, os ali presentes se sentiram filhos de padre Giussani e ao se encontrarem vindos de tantas cidades espalhadas pelo país, puderam perceber-se unidos e alegres nesta filiação. Mais que uma compreensão intelectual, tinha-se – diante dos olhos – a demonstração de como se dá a vitória de Cristo, neste povo que nascia do carisma e da paternidade de padre Giussani.
A seguir apresentamos notas dos principais pontos da síntese final da Assembléia, realizada pelo italiano Mario Molteni, guia externo que acompanha as comunidades de CL na América Latina.
A beleza e a música
Digo que o povo brasileiro tem uma vantagem diante de Cristo e diante do carisma de padre Giussani, que definia a casa de sua família como “pobre de pão, mas rica de música”. Dessa mesma sensibilidade à beleza, também deu testemunho o padre Virgílio Resi (responsável pelo Movimento no Brasil falecido em 2002; nde) que sempre nos educou contemplando a beleza da música brasileira. Esta beleza é como um “escorregador”, um caminho facilitador para o nosso “sim” a Cristo.
À luz do trabalho feito na Assembléia gostaria de sublinhar alguns pontos que ajudassem a tomar consciência de que a vitória de Cristo é o povo cristão.
Render-se a uma novidade
Padre Carrón, responsável mundial por CL, disse que “fomos obrigados a nos render a uma novidade que ninguém poderia imaginar antes e, como os discípulos, tantas vezes nos surpreendemos a dizer: ‘Jamais vimos algo semelhante!’ (Mc 2,12). Desse modo, pela experiência, aprendemos o que é o cristianismo: um acontecimento”.
Muitos fatos vêm contribuindo para este “nos render”, pois vivemos um tempo extraordinário. Por causa do momento histórico – marcado pela morte de padre Giussani, com todo o seu significado e com tudo o que aconteceu naqueles dias; mas também por aquilo que está acontecendo entre nós, aqui no Brasil. Uma nova geração de jovens entra na sua maturidade. Está acontecendo o milagre de novas pequenas comunidades com aquele frescor que nos ajuda a compreender o que encontramos (como diz Péguy, “no início tem uma marca que nenhuma fidelidade, nenhum esforço superior consegue reproduzir”, porque é uma pura graça que o Senhor dá). Ou ainda muitos belos encontros com pessoas e movimentos. A graça que nós recebemos é imensa e tem um valor universal. Um dom pelo qual devemos agradecer e ao qual devemos obedecer.
Este “render-se” a uma novidade não é um trabalho ou um esforço nosso, mas é a simplicidade de um olhar aberto. Por esta experiência nos damos conta de que o cristianismo é um acontecimento.
O primeiro “render-se” é pedir
Antes de tudo, esse “render-se” a uma coisa excepcional é um pedido. Pedir que nos identifiquemos com aquilo que marcou padre Giussani. É um pedido muito simples, já feito por muitos entre nós. Que esta vida possa continuar! Que esta beleza aumente! Que aquilo que definiu a vida do padre Giussani também possa definir a nossa: “na simplicidade do meu coração, cheio de letícia, te entreguei tudo”! Este “tudo” não é algo abstrato, quer dizer todo o trabalho, todos os dias, todos os amigos, todos os afetos, todos os ímpetos, toda a dor, toda a injustiça que se deve suportar. Tudo diante dEle.
Mas esse “tudo” começa como pedido, não pode deixar de se tornar pedido, mendicância. A liberdade começa como pedido. Deste pedido nasce ainda a “personalização”, isto é, tornar todas estas coisas parte da nossa própria personalidade, fazermos tudo como protagonistas. Que, de manhã, esse pedido se renove: “Senhor, com letícia, toma-me todo. Toma conta do meu empenho de hoje, dos relacionamentos que vou viver hoje, das dificuldades de hoje.”
Diante da novidade, nasce o pedido – que é a alternativa verdadeira ao medo pela nossa inadequação, pela nossa incapacidade. O pedido diante da perspectiva belíssima da totalidade. Não nos preocupemos se somos adequados, porque nós não somos. Mas peçamos! Não fiquemos analisando a nós mesmos, mas peçamos Cristo.
O segundo “render-se” é seguir
Se o primeiro render-se é um pedido, o segundo render-se é o seguimento. Render-se à maneira como Cristo vem ao nosso encontro hoje. Render-se a esta história é render-se ao Mistério, é render-se a Cristo. Antes de tudo, seguimento à autoridade, porque Cristo chega até nós, nos alcança, por meio de uma fila ordenada de homens. Como são bonitas aquelas sugestões que o papa João Paulo II e também o cardeal Ratzinger fizeram em suas colocações nos funerais de Giussani quando falaram da obediência que sempre marcou a vida dele (cf. Passos 59, março/2005, pp. 8- 11; nde). A obediência, para ele, não foi certamente algo que ocorreu sem dramaticidade, sem tensão, sem dor. Também entre nós pode ocorrer esta experiência.
O outro pólo do seguimento está nos encontros que apontam para uma preferência. Padre Giussani diz: “parece que nós é que escolhemos a preferência, mas a preferência é uma obediência, porque é você que acaba por se dar conta de que é feito da mesma ‘massa’ da outra pessoa”. Assim, nos damos conta de que somos mais ajudados por aquela pessoa. E também é parte da obediência levar a sério esta oferta gratuita que o Senhor nos dá. Mesmo que existam alguns aspectos de temperamento que nos obriguem a fazer um certo esforço para aceitar esta companhia. São encontros que apontam para uma preferência, ou porque são claramente facilitadores, ou então porque apontam para algo ao qual devemos nos colocar a serviço. Podemos obedecer a alguém porque nele vemos um fator que facilita nossa compreensão de Cristo; ou porque obedecemos a um encontro, percebendo que Cristo nos pede – por meio deste encontro – que mudemos nosso uso do tempo, dando preferência àquela comunidade que encontramos, nos colocando a serviço dela.
Nesse “render-se”, nesse pedido e nesse seguimento atento à autoridade e aos encontros que indicam uma preferência, se torna possível dar continuidade ao encontro que fizemos, manter vivo o fascínio do primeiro momento e vê-lo crescer e dar frutos.
Uma liberdade e uma riqueza nas “formas”
O que é a liberdade? Quando, entre nós, fazemos a experiência da liberdade? Quando aderimos àquilo que nos realiza, que completa a nossa vida. Para um homem apaixonado, a liberdade é aderir a uma mulher. O homem que gosta de um tipo de trabalho, se sente livre não quando fica desempregado, mas quando pode fazer aquele trabalho, obedecer às circunstâncias daquele trabalho.
Esta liberdade sempre se dá numa grande diversidade de formas, porque implica na adesão a uma grande diversidade de realidades. Padre Giussani, na nossa história, sempre valorizou esta riqueza de formas. Seu critério sempre foi o mesmo: arriscar-se, ficando em nexo com a autoridade. Aderir àquela realidade, arriscando-se, prontos a deixar de lado as formas já existentes, mas sempre em nexo com a autoridade... É razoável não confiar demais em si próprio; diante dos passos que devemos dar desejamos poder nos comparar com um amigo; por isso, é cheio de sabedoria buscar o conselho de um amigo, isto é, da autoridade.
Assim, por exemplo, os novos encontros são um dom que exigem de nós novas formas de uso de nosso tempo e espaço, levando até a repensar nosso modo de organizar a vida do Movimento, porque é o Senhor que nos abriu um caminho. Ou então, aqueles que têm um trabalho semelhante podem encontrar-se, fazer Escola de Comunidade e algumas vezes colocar como tema um trecho do O Eu, o Poder, as Obras (Giussani, L., Ed. Cidade Nova, São Paulo 2001; nde); ou então entrar em contato com um grupo de pessoas que exercem o mesmo tipo de profissão no outro lado do mundo. Outro exemplo: sou muito amigo de padre Paulo, se o convido para fazer quatro encontros sobre O Senso Religioso (Giussani, L., Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro 2000; nde), mato três coelhos com uma cajadada só: primeiro, tenho a possibilidade de compreender mais; depois, tenho a oportunidade de convidar meus amigos; e depois, posso ficar mais amigo dele.
Essa liberdade e essa riqueza de formas, continuamente dialogada na nossa comunhão favorece a vida, ajuda para que a fé seja uma vida, seja a nascente de um grande povo.
A vitória de Cristo e a nossa alegria
O coração do homem não fica verdadeiramente feliz quando pára no Tu, mas quando esse Tu se torna a festa do “nós”. Isso também deixa claro que aquele relacionamento é mais verdadeiro se está dentro de uma companhia maior. Assim como é verdadeiro o fato de que essa grande companhia se torna uma companhia articulada, que canta como só um grande coral poderia cantar, que julga como só é possível quando se tem ao lado grandes amigos inteligentes; que alcança o mundo inteiro, e ao desembarcar em outro continente você encontra um amigo que lhe espera.
Assim, todas as oportunidades são vividas com mais letícia, com mais alegria – porque a vitória, que é a nossa letícia, é o povo cristão; porque o coração fica verdadeiramente alegre dentro de um povo. Eu, através de vocês, sei que pertenço a uma realidade que acolhe os pobres, ou que acolhe os doentes. Porque eu, na minha vida, não faço nem uma, nem outra coisa. E se pretendesse fazer isso, não daria conta do meu trabalho. Muitos dos nossos trabalhos, não nos permitem dar tanto tempo a outras coisas. Mas, através do nosso povo, nós fazemos e amamos.
A palavra “Movimento” não indica apenas essa nossa realidade particular, esse caixote que somos nós aqui, mas indica a participação de uma vida que nos coloca em movimento e que nos alegra. Padre Giussani fala em “realidade movimental”, indicando uma modalidade permanente na história da Igreja, que torna a fé persuasiva, pedagogicamente eficaz e edificante, que muda a vida. Em um texto intitulado “Movimento e Paróquia”, escreve: “O padre que tenha nas mãos uma paróquia, ou uma comunidade, ou um movimento, se não rezar ao Espírito, se não tender a suscitar uma realidade movimental, deixará a Igreja como uma tumba. Em sua paróquia restarão somente lugares administrativos e em sua comunidade apenas um grupo com valor puramente psicológico ou sociológico. Desse modo, a temática do Movimento de forma alguma é alternativa à instituição, mas indica a modalidade com a qual a instituição se torna vida e missionária, pois a fé não nos foi dada para ser conservada, mas para ser comunicada. Não se conserva a fé, sem que haja a paixão por comunicá-la” (cf. Passos 58, fevereiro/2005, p. 4; nde). No lugar da palavra “padre”, podemos colocar “chefe da comunidade”, “chefe da Escola de Comunidade”, “chefe da casa”, “chefe da piscina” (Giussani uma vez disse que para nós homens basta se tornar chefe de uma piscina e logo nos tornamos insuportáveis). E qualquer um dos nossos grupos também é uma instituição.
Nossa vida é uma realidade movimental. Pedindo ao Espírito e arriscando-nos numa forma que corresponde aos encontros, nos entregamos ao Senhor para aderir à tarefa que nos é dada: a paixão para que Cristo seja conhecido no mundo. É esta paixão que vimos em padre Giussani, e que ele colocou dentro do nosso coração.
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