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Passos N.61, Maio 2005

PÁGINA UM

Eucaristia: a grande oração

por Luigi Giussani

Notas de uma palestra de Luigi Giussani. Paróquia de São Vítor, Milão, 22 de março de 1996. Uma contribuição visando ao XXIV Congresso Eucarístico Italiano que se realizará em Bari de 21 a 29 de maio, e será concluído com a participação do papa Bento XVI

Agradeço a quem organizou este encontro pela provocação contida no subtítulo, “A Eucaristia: a grande oração”. Sinceramente, é a primeira vez que ouço essa conotação tão sóbria e essencial. Espero que o Senhor me conceda comunicar a vocês alguns dos pensamentos que essas palavras me suscitaram, pois é uma provocação que resume tudo o que constitui a expressão do homem que se dirige ao Pai tendo encontrado o Filho.


1. Eucaristia. O método de Deus

Antes de mais nada, tomo a liberdade de ler a vocês um trecho do Zibaldone de Leopardi: “Neste presente estado de coisas, não temos grandes males, é verdade, mas também nenhum bem; e essa falta é um mal enorme, contínuo, intolerável, que torna penosa a vida inteira, enquanto os males parciais afligem apenas uma parte dela. O amor próprio, e, portanto, o desejo ardentíssimo da felicidade, perpétuo e essencial companheiro da vida humana, se não é aplacado por um verdadeiro prazer vivo, aflige nossa existência cruelmente, mesmo quando não há nela outros males. E os males são menos danosos à felicidade que o tédio; pelo contrário, aqueles são às vezes até úteis à própria felicidade. A indiferença não é o estado do homem; é diretamente contrária à sua natureza, e portanto à sua felicidade” (Zibaldone, 1554-1555) 1 . E sobre a felicidade Leopardi escrevia ainda a um amigo francês, em 1823: “Se a felicidade não existe, o que é a vida, então?”. De fato, a felicidade é a finalidade desse dinamismo incansável que é o homem.

A frase do Zibaldone chamou minha atenção para o fato de que o homem não pode sondar o Mistério. A religiosidade natural tende a reconhecer a existência de um quid último, de uma realidade última: “Existe uma meta”, dizia Kafka 2. Mas qual será o caminho? “O caminho não existe.” Não é possível sondar a Deus como sentido da vida. O sentido da vida não pode ser sondado. As perguntas que a pessoa faz sobre o sentido da vida, quando as faz, são mais perguntas investigativas que perguntas verdadeiras, que perguntas que exigem a verdade. De fato, a pergunta que exige a verdade deveria ser, por sua natureza, religiosa. Se a questão fosse conhecer Deus por meio de uma definição, nós teríamos de encontrá-la. Mas pretender definir Deus seria como extinguir a pergunta; no fundo, no fundo, seria ainda uma blasfêmia procurar penetrar, entender, definir o Mistério, ao menos até o ponto em que se consegue. A não ser que Ele se manifeste! Ou o Mistério se comunica ou não dá para entendê-lo. Se o Mistério se manifesta, a vida aceita de bom grado ser espera e dar espaço, nesse sentido, a uma simplicidade que, no fundo, é própria das crianças, em qualquer pessoa. É por isso que Jesus, no Evangelho de Mateus, no capítulo 11, dirige sua grande oração ao Pai: “Eu te agradeço, ó Pai, porque revelaste estas coisas aos humildes, aos simples, e não a quem acredita saber e poder por meio de sua investigação. Assim te aprouve, ó Pai” 3 .

Deus se manifestou. A espera que Leopardi sublinha sempre, que cada um de nós sente facilmente, a exigência da verdade que o coração tem, encontrou resposta (ainda que, mesmo diante disso, possa-se aderir com uma certa indiferença última, como diz o Zibaldone: é como se uma última falta de seriedade nos impedisse de aproveitar o que a alma hospeda, o que os relacionamentos exigem de interioridade, de delicadeza, de capacidade de perdão, de alegria comunicada).

Deus se manifestou, o Mistério revelou a si mesmo. O que a palavra “Eucaristia” nos convida a identificar é justamente o método com o qual Deus se manifesta. Com que método Deus decidiu manifestar-se ao homem e ao mundo, à existência do homem e à história? De bom grado, chamamos a atenção para o fato de que o Mistério, como método de comunicação de si, identifica-se com um tempo e um espaço; é como se o Mistério procurasse sempre identificar-se com um tempo e um espaço, com um presente que é presença, ou seja, com um acontecimento (como, graças a Deus, começamos hoje a ouvir com maior freqüência).

Nossa meditação, nesse sentido, lembra a inevitável figura de Abraão, como início, pois foi no acontecimento de Abraão que o contato de Deus com o homem produziu um caminho – um caminho que não acaba mais, que só acabará quando acabar a história do mundo – e que invadiu a nós também. “Iahweh disse a Abrão: ‘Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te aben-çoarei, engrandecerei teu nome; sê uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. Por ti serão benditos todos os clãs da terra’ [que significado universal tem esse acontecimento: “Por ti serão benditos todos os clãs da terra”!]. Abrão partiu, como lhe disse Iahweh, e Ló partiu com ele. Abrão tinha 75 anos quando deixou Harã. [...] Iahweh apareceu a Abrão e disse: ‘É à tua posteridade que eu darei esta terra’ [é o símbolo do mundo]. Abrão construiu ali um altar a Iahweh, que lhe aparecera” 4.

Assim, depois de Abraão, nossa meditação se detém na figura de Moisés, que ouviu na sarça ardente o nome com o qual teria de ir até seus irmãos no Egito e falar a eles do que Iahweh lhes pedia. “O Deus de vossos pais me enviou até vós” 5 : o Deus de vossos pais, esse Deus que se manifestou e que se manifesta coerentemente por meio de um acontecimento que se torna história, um acontecimento continuamente presente. “Este é o meu nome para sempre” 6 . Também aqui, um valor universal.

Até que a presença de Cristo nos detém, detém nosso olhar e nosso coração, como nos lembra o Evangelho de João: essa é a obra de Deus, “crer nAquele que enviaste” 7, pois “Eu e o Pai somos um” 8. Naquela noite, poucas horas antes de ser preso – o silêncio dos apóstolos era tenso, incomparavelmente mais sério do que de costume –, aquele homem disse, entre um ponto e outro do discurso: “Sem mim, nada podeis fazer” 9 , sois nada. Quid est
veritas
? O que é a verdade? Pois a verdade é o sentido da vida, a verdade é a única coisa à qual Leopardi atribuiria de bom grado o sinônimo de felicidade. O que é a verdade do mundo, da história, do homem e de sua existência? Quid est veritas? Vir qui adest (o homem que está presente). As coisas mais capazes de expressão em nós são as que nos obrigamos a repetir com maior freqüência, pois, todas as vezes que olhamos para elas, sua perspectiva se dilata, não pode mais ser detida. Essa é a obra de Deus, esse é o significado do mundo: “Crer naquele que Ele enviou”. De fato, a verdade é esse homem que está presente.


2. A oferta

Mas eu gostaria agora de chamar a minha atenção e a atenção de vocês para um corolário, diante do acontecimento como método de comunicação que Deus usou na história (o acontecimento de Abraão, de Moisés, de Cristo: é a história que se concatena, é o rio que flui para sua foz). É um pormenor, mas é extremamente importante, a meu ver, não apenas diante da história do pensamento humano – cuja tentação maior, mais grave, sempre foi a de uma ruptura entre o espiritual e o contingente efêmero; e quanto mais a pessoa era grande em mente e em coração, mais parecia inclinada a gritar essa separação como o problema da pureza da razão, da verdade do homem –; se a obra de Deus é que se creia naquele que o Pai enviou – naquele homem! –, isso significa que a realidade sensível, a carne e o sangue não são limite, não se opõem à realidade última verdadeira, ao eterno, ao Espírito.

João e André calavam-se, arrastados pela evidência daquele olhar que falava, um olhar que lhes falava naquela tarde. Zaqueu foi conquistado por aquele homem do qual tanto ouvira falar, mas que se deteve diante do sicômoro e lhe disse: “Zaqueu, vou à tua casa”. A Samaritana encontrou aquele homem, um judeu, sentado no poço, do outro lado: vir qui adest. A verdade já não é, de forma muito mais evidente do que antes, termo de uma investigação afortunada, venturosa, sobre o Mistério, de modo tal que o homem se aquiete quando está cansado de continuar. A realidade sensível já não é oposta: precisamente com Cristo, nascido de Maria, como realidade sensível, já não há oposição entre as duas ontologias do real; pelo contrário, Ele é a unidade delas.

A religião judaica e todas as religiosidades autênticas têm no conceito de oferta a maior imagem da oração. Mas que significa “oferta”, enquanto forma normalmente mais alta de oração, na experiência religiosa de um povo? Significa que tudo, tudo, consiste de Deus; até a terra e a pedra, até a carne e o sangue, tudo consiste de Deus, de Cristo, ou, como se dirá: “Tudo nEle consiste”. Mas isso ainda não basta.
A oferta não é apenas essa constatação de que tudo consiste em Deus (que, num certo sentido, não anula, mas faz perceber a pequenez do homem diante da força do Ser), mas implica também um outro aspecto de sentimento, como que oposto: o desejo de que o rosto de Deus se manifeste. É, portanto, um duplo sentimento que “fortalece” a oferta: se tudo é feito de Deus, que Deus se manifeste, em tudo.

A grande oração da oferta se exprime, portanto, por meio de uma realidade concreta: de cordeiros e touros, símbolos da consistência e da posse que o homem tem sobre a realidade, passa-se à oferta da circunstância e do instante, símbolos do próprio tecido da vida e de toda a existência do homem. Novamente, as vozes da nossa literatura nos socorrem. O que parece beleza na mulher, diz Leopardi em sua Aspásia, é algo que está além de seu rosto de carne e nele transparece, de forma que o homem “ainda nos amplexos corporais ama e venera” 10 isso que está além, dentro e para lá dos semblantes prediletos, enquanto a mulher, objeto de tanto ardor, não entende. Porém, é um sopro, é um respiro de verdade que vem também do fundo do pensamento pagão antigo, quando – como já vimos – Sêneca escreve: “Deves viver por um outro, se queres viver por ti mesmo” 11. Se você quer a verdade de si mesmo e de seus relacionamentos, deve afirmar um outro.

Seja como for, o vértice dessa coisa sublime, desse “gesto” no sentido literal e original da palavra, o vértice da oferta foi Jesus quem o fez vislumbrar (é o que torna a oferta da mulher pobre, que dá uma moeda porque não pode dar mais, idêntica à generosidade daquele que dá a vida pelo amigo supremo, Deus): a oferta é reconhecer que tudo é de Deus, feito de Deus, de Deus, pertencente a Deus, que consiste de Deus, é de Deus, tudo. Como dizia uma amiga, em sua vida sofrida: “A vocação – ser chamado, ter a atenção chamada a Cristo – é como a luz que ilumina a noite escura das circunstâncias”. Pois as circunstâncias são surdas e opacas, e o instante é nada: a oferta invade tudo isso, essa vírgula, esse iod, esse instante, reconhecendo que consiste de Deus, permitindo-nos, assim, senti-lo expressivo da nossa natureza. O instante é a primeira medida da minha expressão de homem.

Detenhamo-nos agora numa outra reflexão. No fenômeno da oferta, supremamente expressivo do humano, o ápice é representado pela oferta de Cristo, o homem mais consciente, mais amante do Pai e de suas criaturas. “Christe, cunctorum dominator alme12. A Eucaristia, “a grande oração”, é o ápice da oferta da humanidade a Deus, pois nela a dedicação de Cristo até a morte na cruz vence a injustiça como origem da história, que parece injustiça de Deus, e, no entanto, é a revolta originária do homem, que pretende ser como Deus e se torna, com o tempo, leito de rio por onde corre a mentira, o demônio, o pai da mentira, Satanás.

Há uma diferença profunda entre o mal do homem e o mal que nasce em Satanás e de Satanás. Uma garota me perguntava outro dia: “Quer dizer, então, que o primeiro pecado, o pecado original foi o do homem que pretendeu ser como Deus, afirmar o seu eu diante de Deus?”. De cara, eu disse que sim, mas depois pensei: há uma diferença, e é que o mal original, o pecado original, essa origem impossível de se tornar objeto da nossa imaginação, mas tão real que sem a sua hipótese não daria para entender nada do homem e do mundo, foi, sim, uma afirmação ou uma vontade de afirmação do próprio eu por parte de Eva e de Adão, instigados por Satanás; mas há alguma coisa a mais nesse acontecimento, pois havia em Adão e Eva algo que eles herdaram do ser abominável, do pai da mentira, como dizia Jesus, que é um desafio a Deus. Não foi apenas uma vontade de afirmação de si diante de Deus: a maldade estava na desafio a Deus. O desafio a Deus, como maldade, não pode ser do homem, é justamente a malícia típica de Satanás. Eu, portanto, entendo o pecado original como esse veneno injetado na natureza humana, no sangue do homem: o desafio a Deus. Se perdoar a afirmação de si pode ser, por pouco, ainda concebível, já que nós também devemos perdoar a quem nos tem ofendido, o desafio a Deus não! Aqui, o perdão não é mais possível, paradoxalmente seria necessário algo mais, um mais, algo indecifrável, em que o homem sequer pode pensar. Seria preciso a misericórdia. É necessária a misericórdia. “Felix culpa”, dizia Santo Agostinho 13.

Na oferta de Cristo, a realidade carnal, o pão e o vinho, tornando-se mistério da fé – ou seja, o corpo e o sangue do Verbo encarnado –, literalmente coincidem com o Mistério do Filho de Deus. O Mistério coincide com o sinal: onde é que essa suprema e adorável unidade, que só se pode afirmar com temor e tremor – o Mistério se identifica com o sinal, e assim o sinal, a realidade sensível, a carne e os ossos não são contra o espírito –, onde é que isso acontece sumamente, senão na Eucaristia?

A Eucaristia – e este é um último pensamento – implica o triunfo da verdade no homem, pois reconhece como expressão do divino o instante aparentemente efêmero. Eu sempre cito um amigo meu que, de longe, em todas as cartas, escreve sobre a “densidade do instante”. Tempo e espaço, para Cristo morto e ressuscitado, não são mais um limite, o instante não é uma prisão nem um túmulo. Para nós também o tempo e o espaço são instrumento da nossa riqueza expressiva; sem eles não poderíamos nos expressar, nosso verbo não poderia existir; mas ao mesmo tempo nos fecham: tempo e espaço são a possibilidade de dizer e ao mesmo tempo nos fecham. Ao contrário, para Cristo morto e ressuscitado, tempo e espaço não são mais limite, mas “razão” divina para que Ele esteja presente. A razão divina pela qual Ele se torna presença para mim e para todos nós, irmãos, é este instante ou esta circunstância, sem que seja por si necessário acrescentar qualquer outra coisa.

Assim, a Eucaristia se torna início do triunfo de Cristo no tempo e no espaço, ou seja, na história. A Eucaristia dá início ao gozo da resposta do Pai, que só pode ser provocada continuamente nos filhos cedendo ao pedido deles, como diz o Evangelho de Lucas no capítulo 11 e no capítulo 18. Ao mesmo tempo, a Eucaristia é a derrota da mentira, como injustiça e dor sem esperança e, portanto, sem razão. A Eucaristia é Cristo morto e ressuscitado, é o sentido da ressurreição de Cristo em cada instante de tempo e espaço, dentro da história, e antes de mais nada dentro da existência da minha vida. Em cada instante, o sentido de mim mesmo, que paro para tocar essa coisa fugidia é tão indefesa, impotente! O sentido da ressurreição de Cristo está em cada instante de tempo e espaço, na minha existência e na nossa história: em cada instante, como diz o livro do peregrino russo. Mas é preciso nos lembrarmos disso dez vezes, cem vezes, mil vezes ao dia, até dez mil vezes, ou seja, até que a lembrança de Cristo ressuscitado se torne familiar. A fórmula a dizer é: “Cristo na cruz pelos meus pecados”. A ressurreição de Cristo é o significado denso de cada momento que passa.


3. “Chamados num só corpo”

Segundo a história estabelecida pelo Pai e realizada pelo Espírito, Cristo implica na própria definição da Sua personalidade todos aqueles que são escolhidos. Talvez seja preciso ir reler, no Evangelho de João, a oração de Jesus, capítulo 17, versículos 1-6. Na própria definição de Sua personalidade, Cristo implica todos aqueles que foram escolhidos: “Pai, chegou a hora, glorifica o teu filho; pois a finalidade da história é a minha glória. Tu me deste o poder sobre cada homem para que eu dê ao homem a vida eterna. Esta é a vida eterna: que conheçam a ti, único e verdadeiro Deus, e àquele que enviaste” 14. E depois se menciona essa seleção que prolonga, num tempo designado pelo Espírito do Pai, pela vontade do Pai, a maneira como essa escolha se realiza. Na história, essa escolha se realiza, pela força onipotente de Deus, que faz tudo, no Batismo.

Portanto, o sujeito eucarístico, segundo toda a sua estatura, é, como se diz em teologia, “Cristo místico”, realidade cuja realização total acontecerá no último dia e será a glória final de Cristo, naquela misericórdia que realizará todas as coisas. Mas Ele já está na história do homem. Os homens nos quais se refletem os olhares de João e André, como naquela tarde, na pequena cabana perto do Jordão, voltados para o rosto de Jesus; os homens nos quais esses olhos de João e André se refletirão, a cada momento, a cada dia se apresentam como possível amor a Cristo, pois o tempo, instante após instante, é amor de Cristo, que pode ser destacado como único significado das incertezas, dos erros, das crianças abandonadas e perdidas, da consciência madura do homem que chora pela perseguição do mundo, por sua solidão, por sua estranheza num mundo que o persegue, ou que chora pela alegria do “povo”, pois isso, no limiar do pôr-do-sol de cada dia, permanece, como gotas esparsas entre o mar de lágrimas.

Seja como for, o sujeito eucarístico é esse Cristo místico, cuja realização acontece naquela assimilação misteriosa, devida a uma força infinita, daqueles que o Pai escolhe, que agarra para Cristo, que apresenta a Cristo e Cristo os agarra, assimila-os a si no Batismo, e se tornam membros de seu corpo, uma realidade absolutamente nova: “Não sabeis que sois membros uns dos outros?” 15. Se essas fossem apenas palavras, então, sendo tudo simples palavra, só existiria o cinismo aniquilador.

Esse povo que assim se constitui na história – seja ele grande como na Idade Média, ou quase sufocado, como numa pequena paróquia esquecida, onde o pároco tem 20 ou 30 pessoas que vão à igreja no domingo – como é que se manifesta, que finalidade social tem, o que faz socialmente (não existe nenhum ministério reservado para eles, nenhum sindicato que peça para ser julgado pelo coração deles, pela presença deles, pela fé deles)? “E reine nos vossos corações a paz de Cristo”, diz São Paulo aos colossenses, “à qual fostes chamados em um só corpo. E sede agradecidos” 16. A paz é o produto da presença desse “um só corpo”. Quer se trate da época de Cluny, quer se trate da época de Péguy, o povo cristão está no mundo como coeficiente de paz, fonte da paz, equilibrador que assegura a paz, fator da paz. Até parece que estou lendo vários textos do nosso cardeal, pois creio que este seja seu pensamento mais íntimo, secreto e apaixonante. Coeficiente de paz: a paz que não pode ser detida, que não se deixa prender, mas que lança continuamente no encontro valorizador de tudo e de todos, que sustenta a companhia entre nós.

Permito-me deixar-lhes, para a Páscoa, os votos que sinto ter de fazer a todos: a esperança é uma certeza no futuro em razão de uma realidade presente. Não uma presença qualquer; é a presença de Cristo, tornada conhecida por Nossa Senhora, que nos torna certos do futuro, e é possível então – então! – um caminho sem parada, tanto para os pequenos quanto para os grandes, tanto para os adultos quanto para os jovens; um caminho sem parada, um tender sem limites, a partir da certeza de que Ele, tal como possui a história, vai se manifestar nela. Essa espera é um momento do dia do qual somos solicitados participar quase continuamente, por toda a história cristã: é a Eucaristia, a oferta de Cristo, morto e ressuscitado, ao Pai, pois Cristo é do Pai, ao qual eu pertenço nas horas e nos minutos deste dia.

(traduzido por Durval Cordas)


Notas

[1] Leopardi, G. Zibaldone di pensieri. Milão, Mondadori, 1994, p. 551.
[2] Cf. Kafka, F. Il silenzio delle sirene. Scritti e frammenti postumi (1917-1924). Milão, Feltrinelli, 1994, p. 91.
[3] Cf. Mt 11,25-26.
[4] Gn 12,1-7.
[5] Ex 3,13.
[6] Ex 3,15.
[7] Cf. Jo 17,3.
[8] Jo 10,30.
[9] Jo 15,5.
[10] Leopardi, G. Cantos. Tradução de Mariajosé de Carvalho. São Paulo, Max Limonad, 1986, pp. 133-134.
[11] Sêneca, L. A. Lettere a Lucilio. Milão, Rizzoli, 1989, p. 296.
[12] “Cristo, dominador de todos e doador da vida.” Hino da Dedicação do Templo. Canto ambrosiano do século V.
[13] Do Exultet da liturgia pascal, atribuído pela tradição a Santo Agostinho.
[14] Cf. Jo 17,1-4.
[15] Cf. Rm 12,5; Ef 4,25.
[16] Cl 3,15.

 
 

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