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Passos N.58, Fevereiro 2005

MAREMOTO / SUDESTE ASIÁTICO

As grandes ondas e as grandes perguntas

por Dom Filippo Santoro*

O maremoto que afetou uma região da Ásia, maior que toda a Europa, provoca sentimentos diversos e nos questiona sobre as nossas seguranças e convicções. Por que isso tudo? Mais de cento e trinta mil mortos e mais de cinco milhões de pessoas em gravíssimas necessidades. Podemos dar logo uma explicação sociológica afirmando que são inexistentes naquela área sistemas que alertam a chegada daquelas imensas ondas, chamadas "tsunamis". Esta afirmação é verdadeira, porque um sistema eficiente de vigilância teria amenizado a tragédia e parte da população não teria morrido. Contudo, esta explicação não satisfaz porque nem todo o dinheiro do mundo e toda a mais avançada tecnologia poderiam evitar esta catástrofe; poderia bem reduzir as suas proporções. Diante de um terremoto de 9 graus da escala Richter, estamos diante de um desastre de proporções apocalípticas equivalente, segundo os cálculos do US Geological Survey, a 1 milhão de bombas nucleares.
Se podem também invocar razões ecológicas que identificam o desastre na constante agressão do homem contra a natureza. Mas isso também, mesmo sendo verdade, não dá conta da vastidão do problema. Estamos diante de algo que tem a ver com as entranhas da nossa terra e por sinal, da parte mais externa dela. Isso escapa ao nosso controle, como escapam as galáxias e os confins do universo. Assusta a hipótese que controlamos uma parte muito pequena do nosso mundo e nos sentimos desamparados diante das manifestações imprevisíveis da realidade. Diante destes fatos é profundamente ferida a pretensão de querer dominar tudo.
Existe um limite inegável no nosso ser que resistimos a admitir seguindo uma ideologia que há mais de dois séculos vem sustentando que a razão humana é a medida de todas as coisas. Uma ideologia que permanece mesmo diante da assim chamada crise das ideologias. Aliás, já mais de dois mil anos atrás, os sofistas tinham proclamado o principio que "homem é a medida de todas as coisas", superando uma concepção puramente naturalista, que considerava a natureza o princípio de tudo. Naquele tempo porém, foram contestados por Sócrates e por Platão que chegaram a indicar a presença na vida do homem de algo maior que ele. Platão não hesitou em falar do "divino" e, na sua obra "As Leis" virou a afirmação dos sofistas dizendo que "Deus é a medida do homem".
O maremoto da Ásia sacode a nossa auto-suficiência e nos coloca desarmados diante do problema do significado das coisas, do mundo, do bem e do mal Mas aqui nasce uma nova grave pergunta "se estamos diante de um Mistério maior que nós, qual é a sua natureza? E se este Mistério é bom porque acontecem estas tragédias? Porque o mal? Onde está a justiça na natureza e no mundo"?
De fato diante daquilo que aconteceu na Ásia somos tentados de dizer que não existe justiça nenhuma e, depois de um pouco de emoção, continuar na nossa indiferença, que é a maneira prática de deixar de lado as grandes perguntas que nos colocam diante do Mistério das coisas.
Diante deste angustiante problema, que é abordado por todas as grandes religiões, o Cristianismo se deixa profundamente questionar e não elabora uma explicação teórica, mas indica a presença de um fato totalmente novo: a cruz de Cristo. O próprio Deus, movido por um amor inexplicável, entra no abismo da morte, no drama do abandono total e se torna solidário com todos aqueles que morrem, particularmente com os injustiçados. Estamos diante de alguém que compartilha a nossa condição, nos abraça no âmago da nossa fragilidade e que, no seu apaixonado e eterno amor, nos abre à esperança. Mas aqui é só silêncio; calam-se todos os discursos e domina um abandono cheio de confiança nos braços do Pai. Nas mãos e no coração de Cristo morto e ressuscitado nada se perde; só um amor infinito pode isso, abraça a nossa dor e toda a dor do mundo. Deus não fica olhando o sofrimento dos homens, mas se envolve com a nossa história, tornando-se solidário com cada um de nós e ensinando-nos a solidariedade.
A onda que se levantou no coração da Ásia nos fala com a sua linguagem assustadora e está suscitando uma nova onda, esta positiva, de solidariedade entre povos e nações, entre poderosos e gente simples, ajudando a aliviar o sofrimento de tantos sobreviventes e a dor pelos falecidos. Que o inicio do novo ano nos encontre mais solidários; menos distraídos e mais atentos ao nosso destino imponderável e à vida dos outros. Que na cultura dominada pelo mercado, pela indiferença e pelo princípio do "homem medida de todas as coisas" entre uma nova medida: a do incomensurável, do Infinito e da solidariedade.

* Este texto de Dom Filippo Santoro,Bispo de Petrópolis, foi publicado no jornal O Globo de 04/01/2005.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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