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Passos N.100, Dezembro 2008

SOCIEDADE - BRASIL | DIA NACIONAL DA COLETA DE ALIMENTOS

Quando a solidariedade cria redes

pela Redação

Em 8 de novembro de 2008, o Dia Nacional de Coleta de Alimentos movimentou 17 cidades brasileiras, obtendo 58 toneladas de comida em 111 supermercados parceiros. Mas quem busca conhecer a história desse trabalho e saber o que aconteceu em cada cidade descobre outras coisas – ainda mais bonitas – por trás desses números

O Dia Nacional da Coleta de Alimentos, nesse ano, aconteceu em todas as regiões do Brasil, da cidade de Manaus (Norte) a Florianópolis (Sul), e foi uma experiência de grande unidade e alegria entre os quase 6 mil voluntários que participaram. E o que é um desafio nacional está se tornando um desafio latino-americano, porque no mesmo dia 08 de novembro, a Coleta aconteceu simultaneamente no Paraguai e na Argentina. As 10 linhas (missão da Coleta) escritas no início do ano pelo grupo de conselheiros de cidades para a Coleta no Brasil foram as mesmas utilizadas no Paraguai. Assim, começa a se formar uma rede entre esses países. No final de semana seguinte ao evento, os responsáveis pela Coleta e Bancos de Alimentos do Chile, Paraguai, Argentina e Brasil se encontraram em Assunção, com a proposta de verificar a possibilidade de trabalharem juntos. Na Argentina, atualmente, existe uma rede que já está trabalhando com 18 Bancos de Alimentos e, no Paraguai, foi inaugurada a sede do primeiro Banco de Alimentos, que contará com a arrecadação do CEASA de Assunção e das 46 toneladas de alimentos do dia da Coleta. A diversidade de origem entre as pessoas é ampla (pessoas que participam do Movimento Comunhão e Libertação e de diversos outros grupos), porém os valores e objetivos discutidos entre os participantes demonstram uma unidade que passa pela confiança, pela caridade, pela educação e pela subsidiariedade.

Uma rede de relacionamentos
Apesar de a Coleta de Alimentos ser iniciada pela Companhia das Obras – CdO (ONG que congrega obras sem fins lucrativos e lucrativas) e membros de Comunhão e Libertação (CL), nos relatos das várias cidades é frequente observar que um grande número de voluntários pertencentes a várias entidades e até diferentes religiões participaram da Coleta. Existem casos como os de Campinas e Sorocaba onde o número de voluntários era de 8 a 10 vezes maior que o grupo de CL! Esse é um dos aspectos mais bonitos da Coleta: perceber como se torna um convite fascinante para muitas pessoas que, vindas dos lugares mais diversos, se envolveram no gesto.
De onde vieram essas pessoas? Por que se envolveram nesse trabalho? Da criatividade e da dedicação dos grupos, nas 17 cidades, nasceram vários momentos de convite para participar do gesto. Muita gente foi convidada por meio de visitas a escolas e da apresentação da proposta em missas ou pelos contatos propiciados pelos bispos das dioceses, que sempre se mostraram solícitos e interessados quando procurados pelas equipes.
Em Sorocaba, por exemplo, os dois responsáveis locais, Colombo e Airton, foram em todas as missas de uma das principais paróquias da cidade, para apresentar a Coleta e receber adesões. Depois, voltaram às missas para “prestar contas” do que havia sido arrecadado. Afinal, não importava se o número de voluntários vindos dessas missas havia sido grande ou pequeno, o que importava era o valor do gesto e a caminhada juntos que se iniciou a partir dele.
Ainda em Sorocaba, Colombo e sua esposa, Eloisa, foram convidados pelo bispo, Dom Eduardo Benes, a participarem de seu programa de entrevistas, na TV Canção Nova. Os frutos do programa foram surpreendentes. Além da população de Sorocaba ficar conhecendo e interessar-se pela Coleta, o programa despertou o interesse por Comunhão e Libertação entre muitos telespectadores, em vários cantos do Brasil. Eloisa e Colombo chegaram a ser procurados por uma senhora de Brasília que queria conhecer o Movimento!
Mas a Coleta não é uma atividade “confessional”. Dela participam pessoas de várias denominações religiosas: protestantes, espíritas, umbandistas, muçulmanos. Em Manaus, duas muçulmanas, com o colete amarelo dos voluntários sobre suas roupas típicas, comentavam às gargalhadas que as pessoas, quando eram abordadas por elas nos supermercados, olhavam para elas como se fossem terroristas.
Em Campinas, já existe um trabalho em supermercados semelhante ao realizado na Coleta de Alimentos promovida pela CdO. A grande diferença é que os voluntários empacotam os produtos para os fregueses, em troca dos alimentos, ao invés de encontrar as pessoas e propor que doem alguns alimentos, como acontece no Dia Nacional de Coleta de Alimentos. A comunidade de CL na cidade convidou, entre outros, o Exército Brasileiro para colaborar. Os soldados já haviam participado do outro tipo de arrecadação e não estavam muito animados. Contudo, quando começaram e viram que a proposta era diferente, que agora não deviam empacotar produtos, mas encontrar as pessoas e propor-lhes de colaborar com uma coisa boa e bonita, se entusiasmaram. No final do dia, o sargento responsável teve dificuldade de levá-los de volta para o quartel, porque queriam continuar trabalhando nos supermercados.
Muitas vezes, a Coleta cresceu nas cidades por contar com o apoio da imprensa. De um lado, os voluntários que participavam da equipe de organização e que se descobriam capazes de falar com os jornalistas, iam aos canais de televisão, escreviam textos para os jornais. Do outro, os jornalistas que, na busca diária por notícias, descobriam de repente uma notícia que queriam realmente divulgar, uma “boa nova” que merecia inclusive seu apoio para crescer e se tornar conhecida por muitos.
Assim, as pessoas se encantam com histórias como a da jovem de Campinas, que foi convidada por um amigo luterano do trabalho, mas não podia participar porque era o dia de seu aniversário. Pediu, então, a seus amigos que doassem alimentos, ao invés de dar-lhe presentes. Assim, arrecadou mais de 70 kg em alimentos. Ou a da senhora de Manaus, que tomou três ônibus para chegar até um dos supermercados e fazer uma doação.
Em Teresópolis, dona Carmem, uma senhora de 62 anos, ficou muito comovida e agradecida pelo gesto e levou a neta de 9 anos para que ela aprendesse a beleza de fazer o bem, mesmo sendo ainda pequena. Ainda em Teresópolis, uma jovem, ex-presidiária e mãe de oito filhos, que está cumprindo pena ajudando em uma creche, foi convidada pela diretora para trabalhar na Coleta. Ela chegou com o rosto endurecido, começou a trabalhar, se envolveu com a equipe e, à medida que passava o tempo, seu rosto foi tomando uma expressão serena e alegre. A Coleta é um lugar de verificação, onde a pessoa se dá conta de que aquilo que lhe foi proposto é realmente válido, corresponde a seu desejo e ao desejo dos demais.
A rede de relacionamentos que viabiliza o Dia Nacional de Coleta de Alimentos exige a dedicação dos voluntários, como qualquer obra desse porte. No entanto, não nasce do esforço desses voluntários, mas da força da atração que essa experiência de bem exerce sobre todos.

Uma obediência que leva ao protagonismo
A primeira rede, que sustentou todo o gesto, foi formada pelos grupos das cidades e a equipe de coordenação nacional. Durante meses, equipes se reuniam nas cidades, conversando, procurando se organizar e superar as eventuais dificuldades. Ao longo desse tempo, o contato com a coordenação nacional, que incentivava e ajudava a enfrentar os obstáculos, foi fundamental. Assim, a Coleta revelou-se uma ocasião privilegiada para compreender melhor o que é a “obediência”, da qual nos fala o texto da Escola de Comunidade.
Stela Maris, de Campinas, explica que, toda vez que alguma coisa não estava dando certo e tinham que encontrar uma solução, procuravam Thais, a responsável nacional pela Coleta. Esse método os ajudou muito e ajudou o grupo a viver, na prática, aquilo que Dom Giussani diz na Escola de Comunidade: “É porque lhe corresponde que digo: ‘Faça isto, preste atenção àquilo.’ Digo-o por amor à sua vida. E você sabe o que me torna capaz de dizê-lo por amor à sua vida? O amor à minha vida. É porque eu levei a sério a minha vida que lhe digo: ‘Veja, por favor, que isto é importante para a sua vida. Se você me seguir, entenderá; e então, depois, você segue a si mesmo, seguir a mim é como seguir a você mesmo, somos amigos’. A amizade é isto. A verdadeira obediência é quando se chega a este nível de amizade; do contrário, não é obediência, é escravidão” (É possível viver assim? , São Paulo, Ed. Companhia Ilimitada, p. 126).
Essa autoridade sempre ajudou com um juízo, que era confrontado, pelo grupo, com aquilo que estava acontecendo na realidade. Depois, retomavam o juízo, junto com Thais, para decidir o que seria feito e aprofundar os motivos pelos quais aquilo que estava sendo proposto correspondia à realidade e ao desejo profundo das pessoas. A resposta de Thais para o grupo foi sempre a de quem tem esse tipo de autoridade, continua Stela: “O que vocês resolverem, eu estou com vocês, pois vocês sabem o que está acontecendo aí”, Assim, o grupo fazia a experiência de não estar sozinho, mas unido a uma companhia. “Entendem porque falei antes que a verdadeira obediência é uma amizade? Porque se eu o faço entender que aquilo que lhe digo, digo por que corresponde às exigências do seu coração, você me fala: ‘Obrigado por ter me falado essa coisa! Obrigado porque me disse isso!’ e isso se torna seu, e você deve seguir a si mesmo. Isto é seguir a própria consciência; a verdadeira própria consciência é a própria consciência crescida e amadurecida por um encontro. E isto nos torna amigos” (É possível... , op. cit, p. 127).
Também para a comunidade de Manaus, como lembra Daniel, a experiência da coleta foi um verdadeiro aprendizado de “obediência”: ver como Deus usa os acontecimentos isolados de nossas vidas para um bem coletivo e maior. Para ele, as primeiras reuniões sobre a Coleta pareciam indicar que nada ia dar certo. Os problemas constantes só serviam como uma justificativa para que ele não se empenhasse e não acreditasse no gesto. Contudo, nem todos viviam o mesmo ceticismo. Foi sua esposa, Ana, quem lhe disse primeiro: “Mas a Coleta não é exatamente o rosto de uma única pessoa. Não podemos deixar de experimentar o gesto da Coleta por causa dos limites das pessoas”. Depois, foi Thais quem chamou a atenção de toda a comunidade para o fato de que o objetivo maior não era tanto o ato de coletar alimentos – que em si já era um gesto grandioso –, mas sim verificar, juntos, de uma forma mais tangível, o método do Movimento. Daí, nasceram uma liberdade e uma disponibilidade que permitiram que “virassem o jogo” e a Coleta de Alimentos fosse um sucesso em Manaus.


Testemunho / Rio de Janeiro
A Coleta de Alimentos é um gesto que nos abre para toda a vida

Ontem, uma pessoa se jogou do prédio da Petrobrás...
No Movimento, somos ensinados a ver o que é bom em todas as pessoas e em todas as situações. Por isso, procurei ver o que existia de valor nessa tragédia. Aquela pessoa sentiu, de uma forma extrema, uma falta. Alguém que se mata não tem mais nenhum apego no mundo. Nada mais é capaz de fasciná-lo. Sente que seu desejo imenso nunca será satisfeito. A diferença entre mim e essa pessoa é que eu fiz um encontro que me salvou e me salva diariamente, porque, se eu não reconheço o que recebo de bom no meu dia, estive morta dentro dele.
Sigo os gestos que o Movimento me propõe porque eles conseguem alargar o meu coração. E esse é o sentido, para mim, de participar da Coleta de Alimentos. Nesse ano, eu não participei por causa dos alimentos arrecadados. Fiz aquilo por mim, porque me explicaram que a caritativa é importante como a Escola de Comunidade. Não importava se as pessoas iriam ou não entregar alimentos, mas sim que ali eu estava sendo educada e tinha uma possibilidade de encontrar Cristo.
No dia, na hora do almoço, eu dei um lanche para um mendigo. Quando ele saiu, entregou o lanche para outra pessoa. Ele, que vive na rua e estava com fome, foi capaz de entregar aquela comida para um outro, e eu estava com pretensão de fazer caridade! Vendo um pobre dar uma latinha de sardinha eu me lembro da passagem no Evangelho que fala da viúva que entrega a sua única moeda e Jesus fala que a doação dela é maior do que as várias moedas que as pessoas mais ricas davam. Ainda bem que Cristo me coloca esses fatos, porque aquele homem, assim como o mendigo, entende muito melhor o que é a caritativa. Mais tarde, alguém comentou com um dos fregueses do supermercado que eu não tinha tomado café e estava com fome. Quando esse freguês saiu, entregou os alimentos e também me deu comida. Eu fiquei muito feliz porque essa atenção que ele teve foi por Cristo. Quando começo a ficar cansada, Ele me dá esses presentinhos, me faz um mimo, porque sabe daquilo que eu preciso.
O mais impressionante na Coleta foi que, mesmo cansada, fiz um encontro com Ele. Isso, para mim, é o mais bonito, porque é o mais humano. Não dependia da minha animação para gostar da Coleta. Mesmo cansada, pude ver o mendigo, o pobre e os presentinhos que Cristo me deu.
Olho em volta e vejo essa pessoa que se matou, que perdeu as esperanças. Olho para minha experiência no Movimento e aprendo a amar a realidade e a mim mesma, o humano dentro de mim, apesar das minhas limitações. É por isso que obedeço e sigo o Movimento: porque existem pessoas dentro dele que estão dispostas a me ajudar, porque amam o meu destino e só amam o meu destino porque amam a si mesmas. É uma liberdade que eu nunca vi antes.
Luana, universitária

Comunicado Final

“‘E quem vai me ajudar?’. Essa foi a pergunta feita a muitos voluntários durante o Dia Nacional da Coleta de Alimentos desse ano. Esta é, com certeza, a pergunta mais sincera que um homem pode fazer. Através da doação de alimentos, do nosso tempo, das nossas capacidades e também dos próprios limites, descobrimos que, diante da pobreza, da solidão e dos sofrimentos humanos, a ajuda material não é suficiente para devolver a esperança ao homem do nosso tempo. O que todos necessitamos, além do pão, é encontrar pessoas felizes em quem se pode confiar. A felicidade, a gratidão e o desejo de ajudar são possíveis no encontro com Cristo e com a comunidade cristã. Desejamos que o momento bonito da Coleta de Alimentos permaneça a cada dia do ano. Para isso, é preciso seguir alguém que nos eduque a amar a própria vida e a do próximo.”

Organização Nacional da Coleta de Alimentos


 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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