Há 17 anos um Centro para tratamento de desnutrição infantil vem mudando a vida de milhares de pessoas em São Paulo. A partir de um olhar para a pessoa, afronta-se a doença e as reais necessidades. Uma aprendizagem para pais e funcionários, que sentem-se abraçados e gratos pelo que recebem
É início da manhã em uma rua da zona sul de São Paulo. Crianças caminham com seus pais. O barulho é grande, a felicidade também. Quem as vê, acha que elas vão para a creche, nem imaginam que estão a caminho de um hospital-dia. Elas chegam por volta das sete da manhã ao Centro de Recuperação e Educação Nutricional (CREN) para tratamento de desnutrição que, no caso das crianças do hospital-dia fica evidente pela baixa estatura que apresentam, pois a subnutrição faz com que a velocidade de crescimento seja menor do que o normal. Para muitos isto pode parecer irreal, em uma cidade desenvolvida como São Paulo, porém não é só no interior do Brasil que existem muitos casos como estes. Só nas duas unidades do CREN em São Paulo são atendidas mais de 3.800 crianças por ano em regime de ambulatório, semi-internato e atendimento nas comunidades. Multiplique isto por 17 anos (que é o tempo de atuação do Centro) e é possível dimensionar a gravidade do problema no país. Segundo estudos, a subnutrição na infância pode acarretar – quando adulto – obesidade, diabetes, hipertensão e problemas cardiovasculares.
A ideia do trabalho com subnutrição no CREN surgiu a partir de uma pesquisa no final da década de 1980, quando um grupo de profissionais de saúde e nutrição ligados à Universidade Federal de São Paulo iniciou um programa de acompanhamento de famílias que viviam em situação de risco nas favelas da capital. Assim nasceu a consciência de que combater a desnutrição é combater a pobreza e, em 1993, foi inaugurado o CREN, que contou com financiamento da Fundação AVSI para implantação da primeira unidade local.
UMA ABORDAGEM NOVA. Os profissionais que deram início às atividades do Centro, tinham em comum a experiência do movimento Comunhão e Libertação. Ali, haviam aprendido sobre o valor da pessoa e por isso, desde o início, o método de atendimento do CREN partia do realismo, razoabilidade, moralidade e condivisão das necessidades. Isso possibilitou que a instituição se tornasse referência como modelo para tratamento e prevenção de desnutrição para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). De fato, o CREN oferece uma assistência integral às crianças desnutridas. Durante sua permanência, as crianças recebem acompanhamento médico, nutricional, pedagógico, psicológico e social. Todos se envolvem e aprendem: equipe, comunidade, pais e filhos, o que acaba estimulando o conhecimento e a valorização de cada um, como conta Marcela da Silva, uma das mães com criança em tratamento no CREN: “Aprendi a como ser mãe, que eu não sabia, como cuidar, como manter a alimentação dele [filho] saudável. Como ser mulher e ser mãe. Porque tudo que a gente faz, eles (filhos) aprendem”. Se a família não se envolve no tratamento das crianças, a recuperação não acontece. A dona de casa Fabiana dos Santos percebeu os resultados em sua filha de 2 anos: “Melhorou bastante. De 8 kg passou para 13kg e ela cresceu”.
Quem também acompanha de perto as crianças é Cristina de Andrade, cozinheira que há 11 anos trabalha na mesma unidade. Ela conta que algumas crianças chegam tão debilitadas que não conseguem comer e explica que “uma das características da criança subnutrida é a perda de apetite”. Como o primeiro mês é a época mais crítica no tratamento, a equipe amassa, desfia e até tritura o alimento para facilitar o processo de ingestão. E após este período as crianças passam a comer de tudo. “É uma sensação muito boa fazer comida para eles. Quando vêm com aquele sorriso é uma sensação de dever cumprido. Vale a pena!”, afirma a cozinheira. Os meninos correm felizes em direção à Cris (como é conhecida por todos) para mostrar os pratos limpos após a refeição e receber o prêmio: um beijinho dela. Mas para Cris, é ela quem ganha o melhor presente. Como um coração, a cozinha não para, pois ali são preparadas cinco refeições por dia a serem servidas aos pequenos.
O CREN realiza, ainda, a qualificação de profissionais para o atendimento de crianças com subnutrição. Aprender e ensinar é o que fazem as equipes de campo. Elas vão às comunidades de baixa renda e fazem o atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco nutricional, buscando conhecer e entender a realidade de cada família para propor alternativas. Como acontece nas comunidades de Jardim Lourdes e Vila Clara, zona sul de São Paulo, onde após as primeiras consultas descobriu-se que além das ações básicas de saúde, os pais também tinham dificuldade de gerenciar a renda familiar. Para ajudá-los, foi feita uma oficina de orientação sobre como aproveitar melhor seus recursos, enquanto seus filhos confeccionaram cofrinhos para guardar as moedas.
Na unidade da Vila Jacuí, na zona leste da cidade, é realizado o projeto “Vozes Cidadãs”que trouxe para o espaço crianças e adolescentes da região para atividades com música e teatro. As mulheres que eram sedentárias foram motivadas pelo educador físico e agora despertam mais cedo para fazer atividades físicas e conversarem com outras mães, ampliando sua rede social. Outro espaço para troca e vivência é a oficina “Arte na Cozinha”’ onde as mães aprendem novos pratos e trocam experiências. Contudo a manipulação de alimentos não é parte das atividades só dos adultos, os menores também têm oficinas lúdicas para experimentação de alimentos, antes desconhecidos, como frutas, verduras e legumes.
UMA EXPERIÊNCIA QUE MARCA. A experiência que essas crianças viveram se torna marcante em suas vidas, muitas delas voltam ao CREN para visitar seus amigos e a equipe. A diretora pedagógica Silvana Vasconcelos se lembra de Caroline, uma menina que estava no semi-internato até os 6 anos de idade e continuou sendo acompanhada no ambulatório até receber alta do tratamento. “Caroline voltou com 15 anos para trabalhar como voluntária, ajudando com os bebês. Ela voltou porque estava com saudades daqui!”.
O carinho recebido e posteriormente doado a outros está expresso nas crianças atendidas. Basta olhar o sorriso de uma menina de 4 anos, toda arteira e curiosa, que acena para quem chega. Assim como ela, também Bruna, 6 anos, em atendimento no ambulatório, tem quem olhe por ela à distância. Além de sua família oficial, conta com padrinhos que a acompanham, torcem por sua recuperação, contribuem financeiramente para o seu tratamento e, periodicamente, recebem notícias de sua evolução. Essa é uma das formas do CREN manter suas crianças saudáveis, pois o programa Apoio à distância gera resultados. Silvana recorda que as crianças se alegram ao receber notícias de seus padrinhos por meio de cartas, fotos e presentes. E lembra emocionada uma das histórias: “Ano passado, a Bruna dizia que tinha outra família na Itália, que ela tinha outros pais e irmãos na Itália. Ela realmente os adotou como parte de sua história. A família de lá mandava fotos e cartas, por isso ela sabia o nome das pessoas. Ela guardou todas as lembranças”.
Agora é hora de fazer silêncio porque os pequenos precisam descansar após o almoço para o tratamento continuar. Afinal, corpo e alma são estimulados pela esperança e pelo amor.
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Um novo olhar
O ano de 2001 foi transformador na minha vida. Após o nascimento prematuro do meu filho mais novo, tivemos que enfrentar uma dor por 27 dias de internação na UTI que foram superados. Mas a vida me reservara mais um acontecimento naquele ano: sou pediatra nutróloga e trabalhava há 4 anos no Núcleo de Nutrição do Hospital Pérola Byington quando ele foi extinto. Então, uma amiga me informara sobre uma vaga de pediatra do CREN. Começava a graça. Todos os trâmites burocráticos foram gradualmente vencidos. No ano de 2002 eu era a mais nova pediatra do CREN. Ali me deparei com outro universo e me perguntei: “Mas que gente era aquela com quem eu trabalhava, que coração era aquele que olhava para a família atendida sem desejar achar culpados para a doença da criança, mas com um desejo de bem?” Eu era provocada a rever meus conceitos. Percebi que estava frente a algo diferente e completamente novo para mim, quando a equipe sentiu a minha dor pela doença do meu filho, evidente após um ano do seu nascimento (a perda de um rim e a possibilidade de se perder o outro, caso não realizasse a cirurgia). Eu era médica, tinha as respostas para a doença, para os riscos da operação, para a possibilidade do transplante, mas a melhor resposta à minha dor me foi dada na forma de uma companhia, que esperou comigo no saguão do hospital e se propôs a rezar, pedindo pela saúde do meu pequeno Bernardo, na época com 2 anos. Olharam para a minha humanidade. Agora, após 8 anos trabalhando nesta obra, com a companhia e o aprendizado dos amigos da Escola de Comunidade no meu local de trabalho, fica claro que a caridade não brota de um esforço, de um esmero profissional; mas de um coração ferido que reconhece a caridade de Deus revelada na realidade. E então nasceu a possibilidade de um olhar diferente, que já havia experimentado o sofrimento. O CREN me foi dado, primeiro para a minha felicidade. Cada criança, com sua doença, cada mãe, por mais rude que seja, me foi dada. E eu agradeço por esse presente.
Maria Paula Albuquerque
APROFUNDAMENTO
Outras informações sobre a obra podem ser encontradas nos seguintes endereços:
www.cren.org.br // www.desnutricao.org.br // www.cren-saude.blogspot.com
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón