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Passos N.118, Agosto 2010

DESTAQUE - RUMO AO MEETING

Só o coração conhece

por John Waters

Será o Meeting do desejo. Entendido como o que torna o homem grande. Que foi feito para o infinito, e é isso que ele deseja. Sempre, quer tenha consciência disso ou não. Tudo, em nossa humanidade, reclama o todo. E todas as coisas que o homem faz nascem daí: de uma natureza que nos leva a pedir “grandes coisas”. As maiores que existem. Assim, o fio condutor do Meeting deste ano é o coração. Portanto, o eu: a sua exigência de significado, de justiça, de beleza. E a sua capacidade de reconhecê-las, onde quer que se encontrem. É aí que se cruzam os temas fortes da trajetória deste ano. A começar pelo ecumenismo, por essa capacidade de encontro que sempre foi a característica da manifestação (a partir do Meeting nasceu uma trama de relações que dura e cresce ano a ano e liga católicos, ortodoxos, anglicanos, muçulmanos...), mas que nesta edição é sublinhada justamente por esse ponto de partida, comum a todos: o coração. Daí também os outros grandes temas: a liberdade (religiosa, econômica, civil), que é do que o eu vive; o direito; o debate sobre as neurociências, versão atualizada da discussão eterna sobre o que é o homem. E tudo o mais que, como todos os anos, acontecerá ali, programado e não programado. Nestas páginas o leitor terá um aperitivo deste grande evento que será realizado de 22 a 28 de agosto, em Rímini, na Itália. É possível acompanhar alguns encontros ao vivo pelo site www.meetingrimini.org.

O coração costuma ser tratado com condescendência e entendido como uma metáfora. Que rima sempre com “paixão”, “emoção”, “decepção”, em canções e poesias que procuram evidenciar o nível mais profundo da emoção humana, mas em certo sentido não achamos que ele seja verdadeiramente a bússola do sentimento. Simplesmente sem pensar colocamos o coração na extremidade inferior da linha da razão, onde a cabeça reina soberana.
Quando “pensamos” no coração, pensamos numa bomba hidráulica à qual atribuímos também, curiosamente, essa função emocional. Segundo tal convicção, o coração se torna um sinal gráfico, um “coração enamorado” que evoca a paixão, a dor e a confusão de uma laço sentimental nostalgicamente romântico.
Nossa confusa percepção do coração reflete a confusa ideia que temos da nossa natureza. De um lado, não podemos escapar do dado de que esse indispensável órgão, um motor que continua a bombear e a alimentar – por sua própria natureza – o início de cada coisa. Mas a nossa mentalidade racionalista torna cada vez mais necessário que mantenhamos vivas pelo menos duas concepções incompatíveis de coração. A ideia de que as nossas vidas emotivas estão ligadas a algo tão banal, um mecanismo que regula certas funções, parece um resíduo cultural do tempo em que se entendia muito pouco desse “mecanismo” humano. Há a expectativa de um dia – se continuarmos trilhando esse caminho – chegarmos a uma fórmula elétrica dentro da qual as coisas que nos perturbam (amor, medo, desejo, dor) serão identificadas como impulsos lançados no circuito da máquina humana. Ao mesmo tempo, vamos adiante com nossas pesquisas como se esses conhecimentos já fossem adequados.
A razão – decidimos nós – é um consultor seguro e confiável, como um contador ou um advogado. Parece que a razão assumiu esse papel por vontade própria, o que soa como um conflito de interesses um pouco suspeito, e por isso o contador e o advogado correm o risco de ser deixados de lado. Mas o dado de fato é que, nesse meio de tempo, o coração parece algo incômodo, que nos leva pra lá e pra cá, incapaz de tomar decisões.

Entre as orelhas. Há uma teoria segundo a qual a mente não existe ou, de qualquer modo, não se sabe onde se encontra. Damos por certo que ela se encontra entre nossas duas orelhas, mas não sabemos ainda situá-la com precisão. Não parece que a mente exista no espaço, como um processo químico ou mecânico. Não pode ser pesada, nem ser ouvida ou vista, e isso parece levar-nos sempre a um ponto morto na mensuração e na objetivação. A mente não pode ser observada, a não ser a partir de dentro ou em termos de efeitos dos seus processos. Em certo sentido, a mente parece mais adaptada do que o coração a se tornar metáfora, mais sujeita a ser tratada com condescendência, porque nada se encontrou em suas profundezas que corresponda ao seu significado de um mundo de processos mecânicos.
O coração que bate sempre, que pulsa ano após ano, se tornou a principal vítima dessa concepção dualista. De um lado, é concebido “a partir de dentro” como um instrumento mecânico, essencial mas de qualquer modo adequado; por outro lado, é falsamente e superficialmente culpado de todos aqueles comportamentos mais ou menos excêntricos que fazem com que nossas mentes desistam de entender o que realmente o homem deseja, ou do que tem necessidade. O coração é uma espécie de bode expiatório pela incapacidade da razão de compreender plenamente a si mesma. Pois a razão olha as coisas de um modo determinista, define a si mesma e o coração como sistemas deterministas, mas descarta os elementos que não sabe explicar, apontando o dedo contra eles de um modo um tanto irônico. A razão culpa o coração pelos desvios.
Quem comanda? Se o coração é reduzido a uma entidade mecânica em ação, e somente algo ao qual é curiosamente atribuída a culpa por todos esses desejos e pelas exigências que a razão exime-se de assumir a responsabilidade, então obviamente é uma parte do ser humano, e não o seu todo, que toma a decisão e a põe em ação. A razão efetuou uma “revolução” na qual o coração é mantido para fins funcionais e simbólicos, mas despojado de toda autoridade na hora de se tomar decisões. A ideia de que o coração possa “conhecer” alguma coisa que escapa à razão é, hoje, julgada anacrônica e delirante, resíduo de um passado obscuro. Ainda hoje “culpamos” o coração, o que não soa só como brincadeira. Para além da condescendência, alguns alimentam a suposição, se não a certeza, de que nós um dia chegaremos a entender, seremos capazes de qualificar e analisar todas essas atividades nas quais as decisões da razão parecem contraditadas ou rejeitadas em favor da pesquisa daquilo que nós – ou as nossas mentes – decidimos definir como irracionalidades. Estas seriam sintomas de uma recalcitrante irracionalidade que pode ser reduzida pela razão ou dissolver-se na medida em que o progresso avance.
É uma espécie de confusão na qual não fica claro “quem” comanda. “Quem” (ou o quê) decide tudo isso? Onde está a sede do conhecimento? Há uma inteligência central ou algo parecido? Pode essa inteligência central – admitido que exista – ser responsável tanto pelas coisas sensatas que fazemos quanto pelas que não têm nenhum sentido, pelas respostas inteligentes quanto pelas idiotas, pelos comportamentos racionais e pelos irracionais? Em outros termos, o que antes era a “tempestade” do coração seria apenas um modo de descrever características da razão muito mais complexas e, talvez, não muito funcionais? E quando colocamos essa pergunta, o que, dentro de nós, nos leva a colocá-la? A razão será capaz de objetivar o coração? A razão será capaz de objetivar a si mesma? De que modo conhecemos? E se conhecemos uma coisa, qual “parte” de nós realiza esse conhecimento?
Deve existir uma outra maneira de considerar a questão.

Se algo não volta. E, de fato, existe: trata-se de aceitar o fato de que a razão não é nossa, que o coração não é nosso, mas que ambos nos foram dados, que ambos não são projeções do nosso interior – não podem sê-lo, porquanto não se pode traçar uma origem para eles – mas que proveem de outro lugar; trata-se de aceitar que o nosso modelo mecanicista da realidade – que deriva de uma concepção objetivada da racionalidade, implícita no mundo criado pelo homem – não tem sentido quando aplicado ao homem. Ilusoriamente, tem um sentido parcial, nos torna capazes de alcançar um certo conhecimento básico de nós mesmos, ou um conhecimento mediante o qual – se aceitamos nos comportar como as máquinas de fabricamos – nos tornamos capazes de formular uma aceitável teoria da realidade ou do nosso viver nela.
Na realidade, é isso que Dom Giussani estava tentando criticar quando nos dizia, com insistência e quase com uma ponta de irritação, que nós não nos fazemos sozinhos; que nenhuma das explicações a que chegamos a respeito da nossa origem e do nosso agir “momento por momento” é totalmente convincente; que nenhuma “inteligência central” pode ser identificada, a não ser como uma metáfora semelhante àquela à qual, na cultura moderna, a razão humana reduziu as funções extramecânicas atribuídas ao coração. Eu não me faço sozinho; não há um “eu” que funcione desse jeito. Se busco o “eu” como autor de mim mesmo, é como se abrisse um pacote e nele não houvesse nada, a não ser a própria confecção. Obviamente, existe alguma coisa dentro dele, um “eu” de algum tipo, que não seja fruto de si mesmo. Tudo só começa a adquirir sentido se se considerar o “eu” que vive e pensa como a projeção de algum outro ser. Se o ser humano for considerado apenas como um conjunto de processos mecanicistas e deterministas nos quais a razão se distingue, é preciso um processo de censura para excluir a ideia de um “fantasma” que deve se encontrar no centro da máquina: o coração. Esse fantasma é o verdadeiro “eu”, aquele essencial e originário elemento do coração humano, que o cirurgião de transplante nunca poderá encontrar.
Esse “eu” não está só lá dentro, mas parece em sociedade com alguém mais. No coração de cada um de nós há algo que não se explica. Mais: parece que existe alguma coisa que não pode ser reduzida nem compreendida segundo os métodos que parecem funcionar para todas as outras coisas, ou ao menos para a maior parte das coisas que enfrentamos em nossa vida de cada dia. Talvez poderíamos dizer que, por definição, o coração é definível como incapaz de compreender a si próprio.

O início da humanidade. E aqui o coração se revela em sua verdadeira natureza; o lugar daquilo que no homem não pode ser reduzido pelo anseio humano de uma explicação, desejo que parece emergir do coração mesmo. Talvez o coração não tenha mais direito do que a razão de afirmar a si próprio como centro do ser humano. Talvez ele seja, de fato, uma metáfora. Mas se é assim, é uma metáfora para além da qual talvez não existam outras possibilidades. Consequentemente, parece que o coração torna dramático o mistério do dilema central do homem, mas parece oferecer também um início de razão palatável e confiável. O coração é a entidade na qual a minha humanidade parece, pela primeira vez, emergir, iniciar-se, ter origem. Portanto, se trata-se de uma metáfora, é através dela que descobrimos o único fundamento que resulta adequado. Mas também ele, se bem examinado, não consegue ser a origem de si mesmo, a sua voz interior, o impulso que gera o seu pulsar.
Assim, há este paradoxo: esse “eu” que se encontra no centro de todo ser humano não é uma espécie de autoridade autônoma, separada e bem localizada, mas uma espécie de “sociedade” entre o que é evidente e o que parece não sê-lo. Claro, o meu “eu” sou eu, mas também algo misteriosamente diferente de mim. Os “meus” desejos não são completamente “meus”, no sentido de que não são o resultado de uma clara equação entre as minhas óbvias exigências e aquilo que descobri serem as minhas possibilidades imediatas. Eles derivam também dessa alteridade e isso leva àquela confusão que a razão humana chamou de irracionalidade. O coração, fonte de um desejo que me acompanha daquele além de onde vim, me fala a todo instante daquilo que o eu busca de verdade, do que deseja verdadeiramente, do que existe de verdade.

Um ponto de partida. Aqui precisamos analisar melhor, para evitar um curto-circuito. A ideia do que o coração deseja não pode, e não deve, soar como uma imposição sentimental ou moral ou sugerir uma direção já estabelecida. Trata-se de um ponto de partida, não de uma indicação de arrependimento. Se pularmos imediatamente para as conclusões, encerramos a discussão, criamos um curto-circuito mortal como todas as reduções deterministas que já consideramos. Não. A esta altura, devemos respirar profundamente e preparar-nos para a verdadeira viagem. O coração nos fará entender a natureza e a inteira dimensão do nosso desejo. A busca deve ser profunda e total. Ela começa com a verdadeira pergunta que perpassa com seu ritmo todos os dias da nossa vida.



O samba como expressão do homem

Num “Meeting” cujo título evoca o coração como origem da aventura em que Deus coloca o homem, devia haver algo que documentasse essa tese de um modo muito realista, sensível, experimentável, sem metáfora. Pois bem, a mostra sobre o samba brasileiro se propõe justamente levar as pessoas a visitar, nessa belíssima expressão artística, a expansão do pulsar tão pouco reconhecido do coração humano na concretude da musicalidade natural desse povo, forjando um universo de vida, um estilo de comunicação pessoal e coral, uma interpretação genial e positiva da existência, um modo de ser e um estado de espírito. Imediatamente acessível a qualquer tipo de sensibilidade e cultura, o samba penetra com extrema facilidade no coração e instantaneamente no corpo e no espírito, comunicando com total simplicidade aquele modo grande e admirável de beleza e de valor que Deus constantemente cria, apesar da nossa distração. E o faz porque nasce do pulsar do coração do homem, que não faz apenas circular o sangue, mas fornece o próprio ritmo da vida e a trama da nossa humana aventura.
É provável que, entre todas as belíssimas expressões musicais populares deste nosso imenso planeta, o samba brasileiro seja a que supera todas, não pelo refinamento da composição ou pela impressionante grandeza de expressão, mas pela simplicidade imediata com que consegue exaltar em nós a energia vital do nosso coração, fonte de toda a infinita riqueza da nossa humanidade.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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