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Passos N.118, Agosto 2010

ENTREVISTA - ETSURO SOTOO

A pedra como mestre

por Cristina Terzaghi

Em 1978, muda-se do Japão para a Espanha, onde, em Barcelona começa a trabalhar na Catedral da Sagrada Família. O encontro com o arquiteto Gaudí mediado por sua obra lhe abre um mundo novo de expressão pela pedra, e acende uma chama que levará à sua conversão ao catolicismo. Com uma certeza: a beleza nasce do sacrifício

Etsuro Sotoo é um dos principais escultores da Catedral da Sagrada Família, em Barcelona, e difusor da obra de Gaudí em todo o mundo. O encontro com o extraordinário templo catalão e sua fachada magnífica marcou definitivamente a existência e a carreira desse artista japonês. Desde então, todos os dias de sua vida são parte de uma paixão única, esculpindo, lecionando, expondo a todos a beleza e o sentido do trabalho de Gaudí. No mês de junho último, ele foi convidado para realizar alguns encontros no Paraguai e na Argentina. Agora, aguarda a visita do Papa Bento XVI que irá à Espanha para consagrar o altar da igreja da Sagrada Família, no dia 7 de novembro. A seguir, publicamos uma entrevista que o arquiteto concedeu durante sua participação no Meeting de Rímini de alguns anos atrás.

Ao chegar a Barcelona, em 1978, o que viu na Sagrada Família?
No Japão eu ensinava História da Arte, mas sentia que para me expressar eu precisava utilizar a pedra. Eu até parecia louco, pois podiam me encontrar acariciando pedras no meio da rua. O meu desejo era tão forte que decidi ir para a Europa que é plena de cultura esculpida na pedra. Meu objetivo inicial era a Alemanha, mas decidi passar antes pela Espanha e encontrei-me em Barcelona. Chegando à Sagrada Família, em vez de olhar as torres, como fazem todos os turistas, talvez porque tenha essa obsessão pelas pedras, me dei conta que junto à igreja havia montes de pedras: era o que estava buscando! Pedi aos discípulos de Gaudí se podia colaborar nas obras da Catedral. Eles me colocaram à prova e me mandaram esculpir frutas, pensando que eu queria trabalhar como escultor, enquanto que eu só queria ser o pedreiro. Ali, os escultores, na verdade, não esculpem, fazem somente o desenho, o modelo; são os pedreiros que trabalham diretamente a pedra. Em pouco tempo, apesar de terem me contratado como escultor, eu não só dava as instruções, mas fazia tudo por minha conta, inclusive quebrar pedra. No ano seguinte me encarregaram um projeto completo e realizei as esculturas que faltavam na fachada da Natividade, que eram quinze anjos. Ou seja, tinha que projetar os modelos, fazer os desenhos e trabalhar a pedra, e é desta mesma maneira que sigo trabalhando hoje.

Foi difícil para o senhor integrar-se à obra de Gaudí, já que não era criação sua? Como se arranjou sem ter os desenhos originais do arquiteto?
Conhecer a Gaudí através da pedra não é tarefa simples, porém me pareceu o único caminho possível. A princípio todo meu trabalho consistia em esculpir folhas e frutas. As únicas indicações do arquiteto que coordenava os trabalhos eram: “Neste ponto do edifício, desenvolva o tema que lhe peço”. Um dos primeiros encargos foi um parapeito de folhas de 22 metros de largura. Eu estava obcecado pelo lugar que deveriam ocupar as folhas, era meu primeiro trabalho e eu era totalmente inexperiente. Quando encontrei a solução, foi a primeira vez que encontrei a Gaudí. Segundo os desenhos, o parapeito devia ter uma espessura de um centímetro, que para mim parecia demasiado pouco, por que Gaudí queria uma espessura tão fina? Onde teriam que estar as folhas? Não dormi por noites, também não tinha muito tempo. No final, achei a solução: deve-se reforçar os pontos débeis, se coloco as folhas nos pontos débeis, resolvo o problema das forças: este era Gaudí. Porque Gaudí sempre buscava uma única solução para vários problemas. Mesmo depois de ter assimilado todos os dados, os documentos, as ideias de Gaudí, ainda não era capaz de reconhecê-lo, não sabia quem ele era. Foi olhando para onde olhava Gaudí, buscando chegar onde ele desejava chegar que o conheci de verdade. Quando me dei conta disso, me senti extraordinariamente livre, foi um momento mágico: Gaudí entrou em mim e eu entrei nele.

Isso mudou sua forma de trabalhar?
Diante da pedra temos que ser humildes. A pedra é um grande mestre. Diante de Gaudí ocorre o mesmo. Cada dia, olho a pedra, e pergunto a Gaudí o que devo fazer. Assim tem sido toda minha existência. A Sagrada Família é uma construção, porém não somos nós que a estamos criando; nós somente devemos acrescentar ao que já foi criado. Nós, os homens, não estamos em condições de criar. Só Deus cria. Os homens somente podem se ocupar daquilo que já existe, como com uma criança. Gaudí não deixou projetos, conhecia bem os seres humanos: se alguém nos obriga a fazer algo, aparece a fadiga; por isso tantas vezes no trabalho estamos cansados, porque nos sentimos obrigados. Gaudí não quis deixar projetos, mas sim indicar a via por onde caminhar. Assim se cumpre a liberdade de cada um.

Li que Gaudí dizia que sem sacrifício não nasce a beleza, ideia que estava ligada também a austeridade de sua vida. Que pensa da relação entre o sacrifício e a beleza?
Se amas, não te pesa o sacrifício; cuidar de uma criança é algo que exige sacrifício, porém se amas, não te pesa este sacrifício. O trabalho na Sagrada Família supõe um sacrifício extremo, porém eu o faço com alegria. Divirto-me. O sacrifício não consiste somente no suor e no sangue que leva a esculpir a pedra; é muito mais: confrontar-me com minha equipe e com os arquitetos, eu o faço com gosto, desejo lutar, porque se não se passa por isso, não se pode alcançar o objetivo. Sem sacrifício não posso levar a cabo minha obra.

A obra de Gaudí transmite felicidade e alegria de viver. Para o senhor, qual é a fonte de onde brotam esses sentimentos?
Quando se tem tudo, a gente não pergunta. A arte e a ciência necessitam de uma pergunta. A ciência planta uma pergunta, busca e encontra, a arte se atormenta e logo se encontra frente a algo, e nesse preciso instante nasce outra pergunta não pensada antes. Por isso, é mais importante perguntar que responder, e para perguntar é necessário sentir que algo nos falta. A carência que Gaudí sentia purificou sua pergunta. Tinha boas perguntas, por isso encontrou uma resposta tão maravilhosa.

Sua conversão ao catolicismo guarda relação com sua identificação pessoal com Gaudí?
Pedi o Batismo em 1991. Gaudí fez saltar em mim uma faísca, mas não foi tudo. Eu estava preparado porque fazia tempo que buscava: eu me aproximei do budismo, do shintoismo, da new age, porque tinha necessidade da verdade, era um jovem que buscava algo distinto dos demais. Geralmente, aos jovens não interessa a religião; ao contrário, eu aderia às propostas que me ofereciam porque necessitava conhecer a verdade. Quando cheguei à Sagrada Família e descobri Gaudí foi algo grandioso, e assim decidi ficar onde estava Gaudí; sem conhecer nada mais, aderi. E sou muito feliz.




A Sagrada família

Em 1882 a Associação Espiritual dos Devotos de São José, fundada por José Maria Bocabella Verdaguer, iniciou a construção de uma igreja dedicada à Sagrada Família. Dois anos depois, a direção das obras passou a Antoni Gaudí, que tinha pouco mais de trinta anos, porém já era muito famoso em Barcelona. Ele recebeu de Bocabella um texto seu, O Ano Cristão. Como de costume quando projetava um edifício, Gaudí buscou identificar-se com o projeto que se confiava a ele, e desta maneira se aprofundou no conhecimento da doutrina cristã e em especial na liturgia, sem contentar-se com as indicações de Bocabella, mas lendo muitos textos sobre o tema. O tempo que construiria teria que representar a resposta a um programa espiritual e litúrgico; a liturgia para Gaudí era um elemento determinante da beleza das cerimônias religiosas: no templo tudo teria que seguir este objetivo. Pouco a pouco a construção da Sagrada Família absorveu toda a vida de Gaudí, que morreu aos 73 anos, em 1926, atropelado por um trem elétrico, enquanto ia à igreja de São Felipe Neri para rezar as Vésperas.
A Sagrada Família tem uma planta em cruz latina, com muitas naves. Ao longo de cada extremo da cruz se abre um acesso, decorado por uma fachada dedicada às virtudes teológicas. A fachada orientada a Leste, onde nasce o Sol, é dedicada à infância de Cristo, a do poente à Paixão, e a fachada Sul, à Glória. Cada elemento estrutural está concebido de modo simbólico: os pilares ou torres que cercam o tambor são quatro, como os evangelistas. Os campanários são doze, como os apóstolos. Mas além do aspecto simbólico, o projeto de Gaudí causa impacto pela extraordinária atenção à funcionalidade dos elementos arquitetônicos. Por exemplo, todo o interior está concebido para que a luz se difunda de maneira particular: nunca direta, de modo que garanta uma iluminação perfeita sem descuidar do recolhimento. Há também a atenção com o som: a acústica tem que ser perfeita para que o canto possa ressonar na igreja dignamente.
A visibilidade da articulação arquitetônica e da decoração é total tanto no interior como no exterior. A decoração escultórica é parte da arquitetura, com uma função eminentemente didática, assim como as inscrições que percorrem todo o templo, todas perfeitamente legíveis pelo espectador. O edifício projetado por Gaudí não está acabado, é uma obra aberta, cuja conclusão está prevista aproximadamente para 2020. Por sua natureza de “templo expiatório”, se sustenta financeiramente apenas pelas doações dos fiéis. Desde 12 de abril de 2000 está em processo a causa de beatificação do arquiteto Antoni Gaudí, o primeiro arquiteto a receber as honras dos altares.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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