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Passos N.112, Fevereiro 2010

DESTAQUE - O EU E A OBRA

Do lado do bem comum

por John Waters

A verdadeira caridade não se confunde com sentimentalismo ou moralismo. Ela nasce de uma “Afeição” e é verificada numa capacidade de doação que parece loucura para o mundo

O problema da caridade é fonte de muitas incertezas para os cristãos de hoje. O que significa “amar o próximo”? E “como a mim mesmo”? Devo dividir os meus bens em partes iguais entre nós? E se for assim, com qual “próximo” farei a divisão? E depois precisarei escolher um outro “próximo” para dividir com ele o que restar? E assim até quando? E o que será daqueles em relação aos quais tenho responsabilidades mais diretas? Deverão suportar em silêncio a minha filantropia?

FUGINDO DA DÚVIDA. Devido à presença, no cristianismo, desse elemento que parece um desamor aos bens pessoais, tem-se a impressão de que será difícil conciliar o cuidado com os bens materiais com uma vida religiosa autêntica. Como se só pudéssemos contar com o favor de Deus se nos tornássemos pobres. Mas, então, como posso justificar a posse dos frutos do meu trabalho num mundo que é objetivamente desigual, e que escapa à minha possibilidade de influenciá-lo ou modificá-lo? Quanto mais soam os “tradicionais” tambores moralistas cristãos, mais aumenta a fragmentação da humanidade. Para alguns, essa contradição insolúvel cria uma justificativa para se abdicar do desafio imposto pela fé, e se render à fuga individualista: “Não sou capaz, é inútil continuar tentando!”.
A disparidade de recursos, mesmo numa sociedade próspera, pode indicar que o remorso endereça a ação pelo bem na direção de uma escolha não entre manter o que se possui e dá-lo a quem precisa, mas entre o aderir a uma fé que convive com o mal-estar e a decisão de abandoná-la, de não crer mais. A fuga individualista, assim, é em parte expressão do que aparece como um racional amor próprio: o desejo de escapar da contradição entre um teor de vida conquistado e o que Cristo parece exigir de nós.
Em resposta às objeções racionais do cidadão moderno, padre Carrón ofereceu uma afirmação racional: o individualismo não é só uma escolha “errada”, mas uma escolha que vai contra o interesse da própria pessoa, porque não considera alguns dos fatores em jogo na definição da igualdade entre os homens. Não é uma verdadeira solução, pois elimina a necessária tensão entre o “eu” e os “outros”, insinuando que a felicidade do indivíduo pode estar nas “coisas”.
A modernidade, portanto, manifesta também a sua incapacidade de responder ao desejo do homem; ao multiplicar as oportunidades de expressão do indivíduo, ao mesmo tempo multiplica as normas necessárias para impor limites ao “lobo oculto dentro de cada um de nós”. Os lobos – assegura-nos Carrón – não se amansam com normas.
Mas as respostas também não se encontram numa solidariedade sentimental. A caridade/amor requer um impulso, que é ativado pela razão. Tem início no coração do homem, que deve continuamente reencontrar a própria harmonia, para além da utilidade ou da obrigação; ela tende para algo maior, percebido de maneira imprecisa; é a atração pela beleza, pela verdade, pela justiça, que em nós toma a forma de um desejo de “pertencer”. Nossa necessidade de amizade torna-se uma pedra de toque, e isso deveria nos prevenir contra o impulso de criar estruturas centradas no poder, no sucesso, num credo ideológico, porque não são capazes de perdurar no tempo, tal como é o anseio da amizade.

DESAPEGO DAS COISAS. Pode ser verdade tudo isso? Que o desejo de satisfazer as próprias necessidades, no nível mais profundo, impele o homem a encontrar no nível mais profundo o chamado de Cristo a “amar o próximo como a si mesmo”? Fantástico! Mas, a fim de não nos deixarmos encantar com a simplicidade dessa hipótese, precisamos ser alertados para o fato de que não se trata de uma afeição qualquer.
É Afeição com “A” maiúsculo, a única que nasce do desejo de totalidade. Ela só se torna possível na aceitação do dom total que Cristo faz de si, porque só n’Ele essa afeição total tornou-se visível. Com a sua vinda, morte e ressurreição, Ele nos mostrou o ideal no qual podemos encontrar um eco da Sua graça, o modelo sobre o qual se baseia a nossa busca pessoal. Sem o amor de Cristo, não saberíamos como nos amar reciprocamente. O amor entre os homens, a caridade, não pode existir sem a consciência de Deus, dos gestos, dos dons e da presença de Cristo. Essa pode ser a chave para entender por que a tradicional abordagem moralista da “caridade cristã” parece não funcionar. Não nos amamos mutuamente porque Cristo mandou, mas porque Ele nos ama e, consequentemente, nos torna capazes de amar em abundância. A cruz nos recorda que o amor de Cristo supera a dor, a perda, a morte, porque ela dá testemunho da redenção.
Consciente da Sua presença, sou livre de me doar, sabendo que nenhum gesto verdadeiro, nenhum dom será desperdiçado ou se perderá. Só assim o individualismo pode ser derrotado, porque essa via é a única que permite que nossos dedos desapeguem-se das coisas às quais estão agarrados, por medo ou por alguma exigência indefinida ou ignorada.
E aqui Carrón, citando Giussani, aprofundou uma reflexão sobre como a estrutura da nova vida pode mudar ao ponto de suscitar essa nova relação com a realidade, cancelando as incertezas e tornando claro o caminho. Evidentemente, é justo que eu trabalhe sobre os meus projetos e procure melhorar a minha condição e da minha família; mas aí é preciso que eu procure imitar a Cristo, de quem me virá o estímulo para me preocupar com as necessidades do meu próximo. Essa é a verdadeira caridade.
E se entendo corretamente o verdadeiro teste da caridade, aí então ela mostrará todas as formas da gratuidade. Não dará justificações objetivas de si, não se explicará em termos morais, parecerá à primeira vista uma espécie de loucura. Só assim as minhas ações evocarão para os outros a presença desse Outro, o único capaz de nos dar o que todos nós desejamos.
O homem não vive só de pão. Já ouvimos essas palavras milhares de vezes. Mas toda vez nos esquecemos do termo “só”, ou o vemos a partir de um único ângulo. Na Eucaristia, comemos juntos o pão, e não sem motivo: compartilhamos algo que é importante. E apreciamos – talvez inicialmente de maneira confusa – algo que desejamos verdadeiramente.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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