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Passos N.112, Fevereiro 2010

CULTURA - ALBERT CAMUS

Um homem rebelado

por Luca Doninelli

Há cinquenta anos morria um dos maiores escritores do século XX, marginalizado pelos intelectuais de sua época (sobretudo pelo “amigo” Sartre), por sua posição contrária a todas as ideologias. Relendo as suas obras, encontramos “uma abertura indomável” à realidade inteira, além de uma luta apaixonada para preservar tudo o que é humano. A começar pela necessidade de perdão

Eu hesitava entre duas frases de Albert Camus, extraídas de suas Cadernetas, para abrir este artigo dedicado aos cinquenta anos da prematura e repentina morte do grande escritor, ocorrida em 4 de janeiro de 1960, causada por um acidente rodoviário. No fim, decidi usar as duas; os leitores haverão de entender o porquê.
A primeira é de 1951 e diz assim: “Começar a doar-se significa condenar-se a nunca dar o suficiente, mesmo quando se dá tudo. E nunca damos tudo”.
A segunda é de alguns anos após: “A literatura dos países totalitários não morre tanto pelo fato de seguir uma via obrigatória, quanto porque vive separada das demais literaturas. Um artista impossibilitado de se abrir para a realidade inteira fica mutilado”.
Bastariam essas duas frases para definir a importância insubstituível de Albert Camus não só na literatura do século XX, mas em toda a literatura.

UMA GRANDE CHANCE. No século mais niilista e trágico de toda a história, em que o homem foi considerado menos do que nada (carnificina que teve o apoio de muitos intelectuais), Camus foi um dos artistas que mais ferrenhamente se opuseram a essa tendência: não em nome de uma religião – que não puderam conhecer adequadamente – nem de uma ideologia, mas em nome da experiência humana; nós diríamos: da experiência elementar. L´homme revolté, o homem “revoltado”.
Naquelas duas frases está expressa, com a simplicidade de que só os grandes são capazes, a dupla lei da vida. Antes de tudo, para Camus (como para nós) o homem não é homem até o fundo se não se abrir “à realidade inteira”, total. Essa é a nossa verdadeira vocação, a verdadeira natureza da razão: “Um artista (ou seja, o homem) impossibilitado de se abrir para a realidade inteira fica mutilado”.
Sempre dissemos isso, mas talvez algumas vezes o fizemos sem firmeza, sem consciência das consequências: e eis que um escritor descrente repete-o com a força da simplicidade. Num século em que a razão foi usada para contar, dividir, reagrupar, calcular, medir, num século em que a razão foi o instrumento abstrato de um mero cálculo, de uma burocracia da alma, que levou ao extermínio, Albert Camus, em sua solidão intelectual crescente e indesejada, afirma que a razão é uma outra coisa.
Mas há um segundo elemento que emerge das duas frases citadas acima: o fato de que o homem não é capaz dessa totalidade, não sabe se colocar à altura da própria vocação. Isso se chama pecado original, e é algo de que nem todos temos consciência: é preciso ter procurado subir mais alto, ou ter tido uma grande chance, sorte, como diz Camus, para tocar esse limite. Se a gente não procurar ir cada vez mais fundo, não entenderá também o próprio limite. O maior dos crimes, para Camus, não é Auschwitz ou Hiroshima, mas essa mutilação antecipada da possibilidade de fazer a experiência do nosso desejo e do nosso limite.

DE MONDOVI A PARIS. Bastaria isso para nos levar a dizer com certeza que de modo algum podemos pensar na literatura do século XX sem nos confrontar com Albert Camus. Ele pertence a uma geração de escritores que não pôde se expressar em grandes obras, como a geração anterior.
Se compararmos as obras saídas nas três primeiras décadas do século XX (Kafka, Joyce, Mann, Proust, Musil, Hemingway, até Faulkner, último rebento dessa época) com aquelas dos autores mais jovens, nascidos em pleno século XX – de Pavese a Camus e ao norte-americano Saul Bellow –, não podemos deixar de constatar uma fratura, uma diversidade cultural que chega mesmo ao coração da forma. É como se a liberdade humana tivesse sido reduzida e o homem estivesse se acostumando com essa redução. Os escritores mais velhos, embora tendo modificado radicalmente a estrutura do romance, ainda criam no romance, tal como o haviam herdado do século XIX. Joyce é um autor experimental, mas não – creio eu – como Honoré de Balzac, e muito menos como Alessandro Manzoni.
Para a geração de Camus, não há tempo para o romance, não há tempo para as belas histórias de amor ou para as grandes epopeias históricas (que em geral ocultam muita ideologia). A literatura está a serviço de uma reflexão acalorada sobre o homem e sobre seu destino, sobre o homem nu, descontextualizado, desenraizado. Na idade do totalitarismo – que ainda não terminou – o homem parece sem raízes, porque a própria história, o poder que faz a história, não quer saber de suas raízes. E deixa de lado as raízes cristãs porque elas são, hoje, as raízes humanas.
Albert Camus, nascido em 1913, em Mondovi, na Argélia, manteve sempre a África como lugar das raízes, como a orla nativa, a guardiã da origem, da sua complicadíssima pátria, a França. A África foi a sua rive gauche. Neste continente se desenrolam as aventuras dos seus romances mais famosos, O Estrangeiro e A Peste. O Estrangeiro (Ed. Record, Rio de Janeiro, 1997) é, talvez, a obra-prima literária de Camus. Sua abertura é das mais célebres de toda a literatura do século XX: “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei”, e desse início brota, por um ato de obediência absoluta, toda a história de Mersault, um homem que perde a mãe e que, depois do funeral, estabelece uma relação sem amor com uma mulher, mata um árabe, é condenado à morte, rejeita a visita de um padre e, no processo, não se defende, pegando afinal a pena de morte.
Mersault é uma novidade absoluta na literatura. Jamais apareceu na cena um personagem como ele. Sua indiferença não tem nada de semelhante com a de Morávia, que se refere, substancialmente, ao tédio dos ricos burgueses que têm tudo e não sabem mais o que é a paixão. Sua indiferença é radical: Mersault sai da história, que de repente percebe como estranha, e a sua vida se transforma numa série de momentos separados entre si, de atos que nascem do nada e levam ao nada.
A razão dessa saída é bem ilustrada no ensaio que Charles Moeller dedicou a Camus, que liga a aventura de Mersault à busca de um estado de pura inocência. As ações de Mersault são ações puras, seu homicídio é leve, Mersault não experimenta culpa alguma, o sangue derramado parece não afetá-lo. Tudo isso é absurdo, mas o absurdo – Camus parece dizer – tornou-se a única via, ainda que impossível, através da qual o homem do século XX, contemporâneo de todos os horrores, pode tentar recuperar o sentido do próprio nascimento.
Da mesma época é seu texto teatral mais famoso, Calígula, que desenvolve temática semelhante: quanto mais o protagonista toma consciência de que o homem foi feito para o infinito, mais compreende que obtê-lo é impossível, por isso enlouquece. Numa das primeiras versões do texto – várias vezes revisado – aparece a famosa expressão “Sejam realistas, peçam o impossível”, que tanto apreciamos.
A Peste(Ed. Best Bolso, Rio de Janeiro, 2008) é uma grande metáfora da guerra e da loucura que contagiou os homens e as nações. Na cidade argelina de Orano espalha-se, lentamente, uma peste que acabará por exterminar grande parte da população. A ela fazem frente poucos homens, que respondem à dor aparentemente sem fim com a tenacidade da sua concreta solidariedade.
O que impressiona, ao relermos hoje esse grande livro, é a oposição feroz de Camus a todas as formas de ideologia. A solidariedade que ele propõe é sólida, não nasce da teoria, mas apenas do fato real da necessidade, o que obriga os homens que podem fazê-lo a reagir, não por senso de dever, mas pela necessidade de se defrontar com a própria humanidade.
Camus escreveu muitos textos identificados como “ensaio filosófico”, entre os quais O mito de Sísifo e O homem revoltado (Ed. Record, Rio de Janeiro, 1996). No entanto, apesar da importância hoje unanimemente reconhecida dessas obras, Camus conheceu um período de esquecimento por causa da sua não adesão ao apelo dirigido à nação por Jean-Paul Sartre, o mais célebre intelectual francês.
Para Sartre, o intelectual não pode se considerar alheio à narrativa e à política, deve se engajar, trabalhar temas mais quentes, não calar a própria voz diante das injustiças, fazer ouvida a própria indignação: Auschwitz e Hiroshima não poderão nunca mais se repetir.
Esse apelo coincidiu com a adesão (temporária) de Sartre ao Partido Comunista, do qual o próprio Camus fez parte algum tempo e, sobretudo, com a adoção da ideologia comunista e da análise marxista como instrumento desse engajamento. Foi, vista depois, uma grande operação de poder, nascida a partir da onda de fascínio despertada pela propaganda soviética e que, depois, prosseguiu por força própria, até – podemos dizer – os dias de hoje. Atualmente também o intelectual é, quase que por definição, de esquerda. E as muitas chacinas – do Camboja a Srebrenica – demonstram que foram, sobretudo, uma questão de poder e de casta.

O PRIMEIRO TELEFONEMA. Camus não precisou da visão posterior; compreendeu imediatamente o engano. Inclusive porque uma das primeiras batalhas em que essa nova classe intelectual francesa se envolveu foi pelo fim da colonização da Argélia, que naquele tempo se rebelou contra a dominação francesa. Sartre e companhia declararam-se abertamente a favor dos insurgentes, ao passo que Camus se dissociou, dizendo que nenhuma causa, por justa que fosse, jamais o colocaria contra a sua mãe.
Camus pagou alto preço por essa tomada de posição. Tanto que nem mesmo o prêmio Nobel, que lhe foi atribuído surpreendentemente em 1957 (e foi, talvez, o último ato de verdadeira coragem da Academia sueca), conseguiu rasgar essa cortina de silêncio em torno dele. Quando recebeu a notícia do prêmio, a primeira pessoa para quem Camus telefonou foi seu velho professor primário: isso diz muito sobre o homem e o intelectual.
Numa de suas últimas obras, A Queda (Ed. Record, Rio de Janeiro, 1997), Camus expressa uma nova, genial, síntese do próprio humanismo. Num bar de Amsterdã, um advogado de nome Jean-Baptiste Clamence conta a um quase desconhecido a falência da própria vida e o episódio que a determinou. Uma noite, atravessando o rio Sena, Clamence nota uma figura apoiada no parapeito da ponte. É uma moça, a qual, sentindo que passava alguém, volta-se e mostra um rosto completamente transtornado. Clamence pensa em lhe dizer alguma coisa, mas por timidez, pelo medo de parecer ambíguo, por um mal-entendido senso de discrição, segue adiante sem dizer nada. Depois, quando a moça já estava bem longe, Clamence ouve, no silêncio da noite, um grito seguido de um baque: por causa de alguma dor insuportável, aquela moça jogara-se da ponte, e agora era tarde demais para salvá-la. Aí vem a reflexão. Como pode um homem aderir à ideologia pensando que graças a ela poderá fazer justiça? A única justiça, a única impossível justiça para o advogado Clamence seria poder voltar atrás no tempo, até aquele momento na ponte, rever a moça encostada no parapeito e dirigir-lhe a palavra, tentar salvá-la. Esse milagre impossível é o que se chama de perdão, nada mais que isso. Essa é a verdadeira justiça.
Para mim, Albert Camus significa isso: abertura indomável à realidade inteira, revolta contra tudo o que – a começar pela ideologia – reduz o seu horizonte (o que Dom Giussani chama de “dimensão” de um gesto humano), a necessidade de uma solidariedade concreta entre os homens e uma insaciável necessidade de perdão.

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NOBEL EM PÍLULAS

Albert Camus nasce em Mondovi, Argélia, em 1913. Em 1936, forma-se em Filosofia e começa a colaborar com alguns jornais.
Em 1940, transfere-se para Paris, onde faz parte da Resistência e
entra em contato com a intellighensia de esquerda, com a qual, no pós-guerra, entra em polêmica. Entre suas obras principais estão A Peste, O Estrangeiro, Calígula. Em 1957 vence o prêmio Nobel. Morre em 4 de janeiro de 1960, num acidente rodoviário.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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