O diretor de cinema Mario Monicelli suicidou-se no último dia 29 de novembro, jogando-se da sacada do hospital romano onde estava internado. Não deixou nada escrito sobre seu gesto. Tinha 95 anos. Avaliações presunçosas transformaram o episódio em um ato de coragem. O escritor RUGGERO GUARINI, pelo contrário, fala da “egolatria”, algo que vai tomando o lugar da gratidão. Este, sim, que deveria ser o nosso sentimento ao acordarmos todas as manhãs
Quando ouvimos Ruggero Guarini, logo pensamos que tudo já estava contido numa palavrinha grega escrita há 2.400 anos – “to deinotaton” –, um dos termos mais ambíguos com os quais já se tentou definir o homem. Sua tradução dividiu os estudiosos através dos séculos, e Guarini buscou-a em Heidegger: “Nada é mais inquietador do que o homem” (primeiro coro de Antígona, de Sófocles). O escritor italiano repete em voz alta os versos da tragédia grega. O homem que cruza o mar e que doma as feras selvagens, nunca desprovido frente ao que se espera dele. “Senhor absoluto dos segredos da técnica... Tem o remédio para males irremediáveis...”. Mas, então, por que Sófocles possuía “um olhar alarmado” sobre o homem? Dentre todos os seres, ele é o mais inquietador, escreveu; falou dele como um prodígio, ao mesmo tempo admirável e terrível. Guarini mesmo responde: “Porque percebeu que nada seria capaz de deter o homem”. Guarini diz que Sófocles cultivava uma dúvida: “Não acreditava que tudo o que fosse possível ao homem seria algo bom. Hoje, não temos mais essa dúvida”.
É a razão pela qual ficou furioso com os comentários que encheram as páginas dos jornais sobre o suicídio de Mario Monicelli. “Juízos presunçosos e absolutos”. Nada o deixa mais nervoso. Foi dito que o diretor praticou “um ato de liberdade”, “uma grande demonstração de coragem”, que “o rejuvenesceu uns 50 anos”.
Mas “como podemos falar de suposta coragem de um gesto inexplicável?”. É uma arrogância que para ele não é uma questão de forma, nem de ética ou de ideias políticas; antes, tem a ver diretamente com “o colapso do senso do mistério”. E não está filosofando. Fala da pessoa que “desperta de manhã sem nenhuma capacidade de admiração”.
O que nos leva a lembrar daqueles seus versos, escritos dez anos atrás, que se parece com uma prece: “Enfim, quem quer que sejas/ não me canso de maravilhar-me, / te agradeço por ainda não me teres descartado”.
Frente ao suicídio de Mario Monicelli, o senhor disse: “Em certos comentários vislumbro a falta de pietas, do elemento religioso da vida. Trata-se de um momento da existência humana que exige misericórdia e silêncio”. O que o senhor entende por “elemento religioso da vida”?
Uma coisa simples, a humildade de reconhecer que somos dependentes de forças superiores a nós. Está-se perdendo essa humildade, o reconhecimento desse fato. Isso pode ser visto, por exemplo, na segurança com que se fazem juízos tão presunçosos, que chegam ao ponto de parecer um “elogio” do suicídio do pobre Monicelli. É uma idolatria demencial o que leva a pessoa a raciocinar dessa maneira.
Por que idolatria?
Certas loucuras só podem ser ditas se a pessoa coloca a própria razão, o próprio ego, acima de tudo. É uma idolatria muito comum em nosso tempo e que, por exemplo, se expressa em muitas posições do demi-monde cultural italiano. Creio que hoje não há nada de mais selvagem e supersticioso do que o sentimento de orgulho característico do laicismo italiano.
De onde vem esse “orgulho”?
A raiz é o que eu chamo – talvez sumariamente – de egolatria. O que predomina é uma cultura que pratica um culto das coisas humanas. Para a qual é fundamental reconhecer o direito e a capacidade do homem de determinar-se a si próprio. Aí está a semente da superstição laicista. Da qual provém a segurança com que se sustentam muitas batalhas: as adoções pelos homossexuais, os casamentos gays, a fecundação assistida... Essa segurança é extravagante: não se tem mais nenhuma dúvida de que é justo concordar com todas as possibilidades que estão ao alcance do homem. Uma das formas mais difusas disso encontramos no cientificismo, que não é mais a justa e racional valorização das possibilidades oferecidas pela ciência. Não há dúvida de que a humanidade espera aproveitar todas as possibilidades que a ciência e a história oferecem: mas quem garante que a aceitação cega de todo o “possível” – nos campos científico, técnico, histórico – seja necessariamente algo positivo, e não uma coisa fatal? Até mesmo pensadores pré-cristãos, como Sófocles, tinham sérias dúvidas: o olhar alarmado de Sófocles não tinha como alvo o homo faber enquanto tal, ou as possibilidades desveladas por suas capacidades. Ele duvidava da fé cega na bondade dos resultados.
É a isso que o senhor se refere quando fala do “culto das coisas humanas”?
Sim. São fatos humanos considerados artigos de fé, defendidos com a fúria própria de um credo religioso. O laicismo italiano é muito diferente da cultura laica de outros países. No mundo anglo-saxão, por exemplo, os ateus, os descrentes, não estão imersos numa cultura que põe acima de tudo esse “culto” das coisas humanas, como acontece aqui, onde se idolatra o Estado e a história.
O que isso tem a ver com o sentimento religioso, a humildade, de que o senhor falava antes?
Estamos falando de temas frente aos quais o homem deveria ser humilde. Ao invés, eles nem são mais considerados problemas. Tanta segurança leva a posições tragicamente superficiais que hoje é agravada por uma novidade. Antes, inclusive aqueles que aderiam a uma posição de progressismo otimista e indiscriminado sabiam que a razão não bastava para justificar essa confiança. Hoje, ao invés, é tudo óbvio, pacificado: o que antes se reconhecia como problema, hoje é visto como uma coisa evidente.
Mas o que permite ao senhor manter essa posição de “humildade”?
Não sei responder completamente a essa pergunta. Com certeza pesam os fundamentos da educação que recebi, que é a educação recebida por toda a minha geração, para a qual contribuíram dois elementos principais: o cristianismo – que chegava a nós por estradas diferentes – e um estudo sério da literatura pagã, que carrega uma riqueza religiosa extraordinária. Aliás, um dos maiores achados pedagógicos de todos os tempos, da Europa cristã, foi a ratio studiorum dos jesuítas; ela não limitava a educação ao aprendizado da tradição cristã; abriu-a também para os clássicos.
Por que esse tipo de educação seria uma resposta ao “orgulho” do vazio cultural de hoje?
Nesses fundamentos, estudados seriamente, não se encontrará nada parecido com a despreocupada complacência idolátrica do progressismo moderno. Porque os antigos reconheciam o enigma que constitui a vida. Hoje, ao invés, o senso do mistério está em colapso: pensa-se que não existe mistério em lugar nenhum. Não nos maravilhamos mais com nada, nem mesmo com o despertar matinal. O problema é a ausência dessa admiração.
O senhor vive esse maravilhamento?
A minha geração guardou pelo menos uma migalha do senso do sagrado. Isso significa fazer uma experiência (simplicíssima e, ao mesmo tempo, alta): trata-se da pura e simples gratidão pelo fato miraculoso da existência. Tempos atrás, a admiração era um traço comum a todos. Hoje, até mesmo na oração, predomina facilmente a dimensão da “súplica”, e não a da gratidão.
O que é que tomou o lugar da admiração?
A banalização universal, da qual os representantes do laicismo italiano “falam” através dos preconceitos da superstição moderna. Como vimos no caso agora comentado, eles têm a presunção de saber o que se passa no espírito de um homem que tira a própria vida e pretendem avaliá-lo aplicando a um evento tão misterioso como esse os míseros conceitos da sua ideologia: liberdade, opção, coragem, e por aí adiante. Essas definições têm a ver com o medo e com a vaidade. Por isso, depois da morte de Monicelli me veio a imagem dos “pavões suicidas”, aqueles que giram em torno da cena pública com as penas dos suicídios alheios. Essa vaidade, essa egolatria, predomina quando se pensa que a história liquidou para sempre o senso do sagrado: é um processo de extinção fomentado pelo movimento da modernidade.
O senhor acredita que a perda do senso do mistério tenha uma ligação com o que a recente pesquisa do Centro italiano de Estudos Sociais (Censis) fotografou como “ausência do desejo”?
Creio que sim. Porque o desenfreado anseio de estar continuamente – como diz uma horrorosa expressão que soa como um imperativo – “entoado com o novo tempo” vai justamente contra o desejo. Aliás, é um esmagamento do desejo, uma espécie de negação, a sua supressão, em favor de um culto da conformidade com o espírito do próprio tempo. De fato, o que é estar entoado com o tempo a não ser, em sentido forte, a característica de um perfeito conformista? Na Rússia stalinista queria dizer aprovar o gulag. E durante o nazismo, o lager... É exatamente o contrário do desejo: se um homem é habitado por um desejo verdadeiro, tem dentro de si algo que tende sempre a se opor ou a resistir ao espírito do tempo.
Por quê?
Porque em cada desejo se afirma a ligação com algo superior. Basta pensar nisto: a qualidade do tempo presente, a qualidade de um momento histórico qualquer, como podemos avaliá-la? Precisamos confrontá-la com alguma outra coisa. Com o quê? Não só com o passado, mas com algo superior. Que não pode ser oferecido pela simples leitura do presente e do passado.
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