Um povo. Conduzido por uma só razão. Um milhão e meio de pessoas atraídas pela vida de um homem que foi agarrado por Cristo. Eis o que aconteceu na Praça de São Pedro. Confirmando
o que muitos de nós tinham acabado de ouvir nos Exercícios da
Fraternidade
A certa altura, pouco antes da Missa, olhamos em torno. Até a praça Risorgimento – recanto escolhido às seis da manhã, depois de duas horas de fila, sem esperança de chegar ao alto da rua Conciliazione – estava lotada. Em volta, colegiais romanos e senhores elegantes vindos das Filipinas. Uma comitiva de libaneses e mulheres croatas com roupas típicas. Bandeiras espanholas, argentinas, chilenas. Poloneses por todo canto. E jovens, muitíssimos jovens. Uma amostra do que havia num raio de vários quilômetros.
Um milhão e meio de pessoas. Cada uma com um motivo particular, com uma sua razão para ser agradecida a João Paulo II, o Papa beato que realmente mudou a história ao transformar os corações. Motivos escancarados, analisados, lembrados nas dezenas de páginas nas quais os jornais evocavam a queda do Muro e as grandes viagens, o atentado e as Jornadas da Juventude. E também os movimentos, Loreto, Assis, os pedidos de perdão. O sofrimento dos últimos anos. Cada um tinha o seu Karol Wojtyla impresso na memória a quem render homenagem. Na praça, de certo modo, tudo isso era evidente.
Mas bastava esperar um pouco, justamente no final das primeiras palavras de Bento XVI, para perceber que no fundo dessas razões pessoais havia apenas uma. A mais poderosa, que marcou cada instante de um Pontificado extraordinário desde as primeiras palavras ao último silêncio: a fé em Cristo, “centro do cosmo e da história”. Esse homem foi uma testemunha disso durante toda a vida. Assim como esse outro Papa, o amigo que todos viam intimamente contente por poder dizer que “o dia esperado chegou depressa, porque assim aprouve ao Senhor: João Paulo II é beato!”. E é beato, prosseguiu Bento XVI, “pela sua forte e generosa fé apostólica”.
A fé, portanto. Antes de tudo e dentro de tudo. O único fio condutor capaz de ligar todas as coisas e sustentar a vida, do novo beato, do seu sucessor e de quem estava ali na praça. E capaz de dar um rosto a essa praça, uma fisionomia precisa. Não era uma massa: era um povo. Um povo estranho, sui generis, caótico e multiforme, mas não confuso. Capaz de caminhar, de superar o cansaço, a noite sem dormir, as horas de carro ou de ônibus, o desconforto, a multidão, a dureza da caminhada. O que na vida diária muitas vezes nos deixa em crise, ali não. Havia o cansaço, os limites, mas isso não era um problema. O coração era outro. E estava ali, presente. Justamente no sentido do tempo verbal.
De Rímini a Roma. Há uma passagem da homilia de Bento XVI que nos fez estremecer: “Pedro exprime-se não no modo exortativo, mas indicativo. De fato, escreve: ‘Isto vos enche de alegria’; e acrescenta: ‘Vós amais Jesus Cristo sem O terdes conhecido, e, como n’Ele acreditais sem O verdes ainda, estais cheios de alegria indescritível e plena de glória, por irdes alcançar o fim da vossa fé: a salvação das vossas almas’ (1 Pd 1, 6.8-9). Está tudo no indicativo, porque existe uma nova realidade, gerada pela ressurreição de Cristo, uma realidade que nos é acessível pela fé. ‘Esta é uma obra admirável – diz o Salmo (118, 23) – que o Senhor realizou aos nossos olhos’, os olhos da fé”.
Releiam isso com calma. Aí dentro está tudo. A contemporaneidade de Cristo, a conveniência da fé, a vida nova, gerada pela Ressurreição. Os próprios temas, o próprio fio condutor que muitos dos presentes tinham ainda bem firme na mão, porque chegavam de um lugar onde, nos dias anteriores, se falara profundamente disso mesmo.
O eu e a história. Para quem desembarcou em São Pedro vindo de Rímini, dos Exercícios Espiri-tuais da Frater-nidade de CL, encerrados um dia antes para permitir que os 26 mil participantes descessem a Roma (junto com outros adultos do Movimento, universitários, jovens trabalhadores e colegiais), a beatificação de João Paulo II foi uma graça especial. Voltaremos ao assunto, sem dúvida. Mas de cara foi como ver, em carne e osso, muito do que havíamos escutado nos Exercícios. Desde o início, com a “criatura nova” de São Paulo, justamente. Até o final, àquele aceno à autoridade como “mão que nos apresenta o acontecimento agora”, onde “a comprovação da profecia é vivida” e “Cristo é experimentado como resposta às exigências do coração”.
Quem estava na praça, estava ali por isso, não por outra razão. E o que pode ser essa autoridade, no testemunho da “vida de um homem que se deixa cativar e atrair por Cristo” (como disse padre Julián Carrón ao falar do novo beato, numa entrevista do Osservatore Romano) estava ali – está – diante dos olhos de todos.
Assim como foi imponente – para quem se lembrava daquele aceno dos Exercícios a um poder que “não pode impedir o despertar do eu no encontro com Cristo”, mas procura “impedir que se torne história” – ver-se diante de uma testemunha que desafiou e construiu a história. Justamente partindo da evocação contínua daquele Fato: “‘Não tenhais medo! Antes, abri, escancarai as portas a Cristo!’. O que o recém-eleito Papa pedia a todos, ele próprio o fez por primeiro: abriu para Cristo a sociedade, a cultura, os sistemas políticos e econômicos, invertendo com a força de um gigante – força que lhe vinha de Deus – uma tendência que podia parecer irreversível”. Recordou também Bento XVI: “Deu ao cristianismo uma renovada orientação para o futuro, o futuro de Deus, transcendente respeito à história, mas que também incide sobre a história. Essa carga de esperança que havia sido cedida, de certo modo, ao marxismo e à ideologia do progresso, ele a reivindicou legitimamente para o cristianismo, restituindo-lhe a fisionomia autêntica”.
O mesmo fio condutor. As mesmas palavras-chave. Mas até o silêncio que dominou a praça em dois longos momentos de oração – um silêncio pleno, total, humanamente impossível, dado o contexto – era eco do outro silêncio, que preenchia o coração nos ônibus em Rímini. Era o sinal dessa Presença.
Depois, claro, o silêncio terminou. Retorna-ram os cânticos, as bandeiras. E um ar de festa que nos fez pensar de novo naquela frase de Dom Giussani: “A vitória de Cristo é o povo cristão”. Esse povo que deixava Roma aos poucos, caminhando devagar para os trens, os ônibus, a enorme fila de veículos que encheu a cidade. Na segunda-feira, um trabalho para retomar e aprofundar. A vida, enfim. Mas nova.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón