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Passos N.127, Junho 2011

SOCIEDADE - Leis e vida

O laboratório Canadá

por Peter Stockland

Como e por que um país refém das ideologias progressistas está se tornando terra de conquista (e de experimentação) para os chamados “novos direitos”. Do aborto à eutanásia, passando pela identidade de gênero e pelas tecnologias reprodutivas: relato de uma batalha que está longe de terminar. E que tem muitos pontos em comum com a travada em solo brasileiro

Por ser um escritor que publicou dois livros intitulados The Trouble With Canada (O problema do Canadá) e o mais recente The Trouble with Canada Still (Ainda o problema do Canadá), Bill Gairdner é de fato um otimista.
“Sou um otimista incorrigível. Quando ouço a conversa de meus filhos e seus amigos, percebo muita raiva a propósito do que cabe a eles acertar. E há também muito menos medo de falar disso”, diz Gairdner de sua casa nos arredores de Toronto.
A sua percepção da mudança pode soar forçada, apenas poucos dias depois que os parlamentares canadenses aprovaram uma lei que estenderá a tutela federal dos direitos civis a travestis, transexuais, e a qualquer um que se “autoidentifique” como pertencente ao sexo oposto.
Há pouco tempo a Suprema Corte canadense também estabeleceu que, em parte, as autoridades federais podem usar o código penal para controlar as novas tecnologias reprodutivas.
Enquanto isso, Robert Latimer, um homicida a quem foi concedida recentemente a liberdade condicional, dá aos mais importantes órgãos de imprensa entrevistas nas quais ataca os “sádicos religiosos”, a quem acusa de tê-lo mantido atrás das grades por dez anos. Este agricultor de Saskatchewan prendeu sua filha deficiente numa câmara de gás feita em casa e a asfixiou; mas a mídia canadense o procura e o aclama como o Nelson Mandela da boa morte.
A libertação de Latimer poderá ser o fator decisivo para a criação de um comitê multipartidário em Quebec, que se instaura após a conclusão de um ano de debates públicos, nos quais se discutiu sobre a possibilidade de a eutanásia e o suicídio assistido serem reclassificados, passando de infrações penais a tratamentos médicos padronizados dentro do sistema sanitário da província. Muitos opositores de tal revolução – sob os aspectos jurídico, político e social – foram difamados durante tais debates como fanáticos católicos que procuram “impor seus princípios morais” à população de Quebec.
Fé e Verdade. Paradoxalmente, alguns pais numa escola católica particular de Montreal foram obrigados a recorrer à Suprema Corte canadense para defender uma decisão de primeira instância que permitia o ensino da religião católica. O governo de Quebec rejeitou a decisão de primeira instância e insistiu em sua legitimidade para impor seus programas em matéria ética, religiosa e cultural, a todas as escolas, públicas ou particulares. Tal programa baseia-se no conceito de que o ensino da religião deve ser desenvolvido a partir de uma base de “neutralidade”, ou seja, que nenhuma fé religiosa pode ser considerada verdadeira. Gairdner está plenamente consciente das espantosas consequências dessas e outras inovações na política, na moral, na cultura e na vida do Canadá. É autor de diversos livros que advertem para esses riscos e se confronta em primeira pessoa contra tais desenvolvimentos há mais de duas décadas.
Ex-atleta olímpico de decatlon, com um mestrado em linguística estrutural e um doutorado em literatura inglesa na Stanford University, foi tratado como um pária intelectual pela cultura de esquerda canadense, pela sua crítica aberta aos dogmas “progressistas” do país. Sua resposta foi escrever best-sellers nos quais incita os canadenses a continuar a luta contra o movimento cultural atual.
Sua mensagem, na realidade, tem como fundamento a bagagem cultural de linguística, que, como ele próprio afirma, lhe ensinou a olhar a “estrutura profunda”, em vez de se deixar distrair por indícios superficiais. O problema do Canadá, na sua opinião, não pode ser resolvido por algo substancialmente superficial como a política eleitoral. O Canadá, observa Gairdner, não se transformou no único país do mundo sem uma lei que regulamente o aborto, ou um dos primeiros países do mundo a ter plenamente legalizado o casamento homossexual, só porque um determinado partido político estava no poder. A Carta dos direitos e das liberdades, de 1982, que é em grande parte responsável pela substancial dissolução do tecido social do país, era obra de um governo federal liberal. Mas a descriminalização do aborto, a legalização do casamento homossexual e até a atual legislação sobre a identidade de gênero, tudo isso aconteceu sob governos federais conservadores. Nesse processo, destaca Gairdner, os canadenses foram contidos por uma ideologia intrinsecamente incoerente, que se define como “socialismo libertário” – absoluta autonomia individual no seio de um Estado onipotente. “Tudo o que se refere ao seu corpo é considerado como uma zona libertária. É tudo centrado num individualismo totalmente soberano. Tudo o que está fora do seu corpo é considerado (território) do Estado. Como nação, estamos travando uma guerra de fidelidade entre o Estado e a sociedade civil”.

Estado tripartite. Mas o dano vai ainda mais fundo na estrutura social. Em seu site (www.billgairdner.com), Gairdner adverte para o risco de o Canadá se dividir não por causa da jurisdição política (ou seja, a antiga ameaça de o Quebec francófono se separar da parte do país que é anglófona), mas se tornar um “Estado tripartite”, no qual um terço da população produz riqueza, um terço trabalha para o governo e um terço é altamente dependente do governo, com porção significativa da própria renda. “Qualquer um pode facilmente compreender que os últimos dois segmentos da população farão sempre aliança contra o primeiro”, afirma Gairdner.
O efeito será fazer pender inexoravelmente a balança a favor do Estado, em prejuízo das livres associações, como as famílias e as comunidades religiosas. “O socialismo libertário tem como consequência a desintegração das redes sociais, o que deixa os cidadãos indefesos diante do Estado. Pensem no poder de um milhão de famílias contra a fragilidade de um milhão de indivíduos. O Estado vence sempre contra indivíduos isolados”, continua Gairdner.
Sua preocupação encontra eco no pensamento de Douglas Farrow, professor de história do pensamento cristão na McGill University de Montreal, autor de um artigo no último número da revista americana First Things, no qual afirma que o Estado, no Canadá, está estendendo seus poderes até o ponto de querer redefinir a natureza humana.
“Ingressamos nessa estrada... quando agregamos (aos elementos de codificação dos direitos humanos) a orientação sexual, um caráter identificador que não está ancorado no estado biológico ou institucional”, escreve Farrow. “Mas até agora ficamos bloqueados frente a identificadores que combinam explicitamente o subjetivo com o comportamental. Nunca perguntamos, para fins jurídicos, se um canadense se comporta como um canadense, ou um católico como um católico, ou um homem como um homem. Trata-se de questões extrajurídicas, de competência da sociedade civil, e é importante que elas permaneçam assim, antes que a lei, como temia Solzenitsin, absorva tudo”.
Ultrapassando o campo extrajurídico, continua Farrow, o Canadá fica entregue às forças “neognósticas” existentes no seio das classes governantes, que só visam “enraizar na lei a ideia de que (a natureza humana) é essencialmente uma construção social, baseada não na ordem natural, mas em atos mais ou menos arbitrários da autointerpretação do homem”.
Se Farrow inclina-se para o pessimismo, Gairdner aponta para um possível “grande despertar” dos canadenses, a tempo de perceber o perigoso caminho que estão percorrendo antes que seja tarde demais. “Chegamos a esse ponto outras vezes, em nossa história, e houve uma inversão de tendência”, continua. “Baseado no que vejo e ouço, confio que podemos fazê-lo de novo. Não me rendo tão facilmente”.
É uma extraordinária nota de otimismo num país onde toda semana, aliás, todo dia, há abundantes razões para se fazer justamente isso: render-se.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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