Vai para os conteúdos

Passos N.130, Setembro 2011

África - Uganda

Agora queremos Tudo

por Paolo Perego

Nós os encontramos no Meeting de Rímini, no ano passado. Soubemos da dor de suas histórias, do encontro com Rose, das mulheres de Kireka... E daquele olhar que os levou ao Batismo. Agora fomos até suas casas, no coração da África. Onde, entre um passeio ao Nilo e uma noite de cantos, vimos o que pode se tornar uma vida que tem apenas uma medida: a fé

Sonia abre o portão ao ouvir a buzina. Mão na testa, como soldado, e um sorriso incomum para aquela postura. “É uma das minhas mulheres de Kireka”, diz Rose cumprimentando-a, enquanto estaciona a Toyota no pátio. “Estes são os escritórios administrativos, o Meeting Point verdadeiro está em Naguro e em Kireka”. Rose Busingye abre a porta de seu pequeno escritório, cheio de papéis, onde está um computador e uma foto de Dom Giussani pendurada atrás da cadeira. As imagens de uma história que começou em 1992, como caritativa, e que se tornou uma Ong no ano 2000, com a abertura de casas de acolhida para mulheres soropositivas das favelas da cidade.
O edifício foi construído há poucos anos e tudo é novo. Uma volta pelo pátio, olhando o céu da África, o verde de Uganda, a paisagem de Kampala... O rosto semicoberto de uma jovem que aparece na porta chama a nossa atenção. Ela fala com Rose, tira o véu. O olho está inchado, na maçã do rosto um corte profundo. Foi um rapaz, do lado de fora da escola, com uma tábua cheia de pregos. Estava acontecendo uma greve, ela perguntou se a escola abriria... E ele bateu nela e em sua amiga. Também a roubou. Seu nome é Winnie. Rose olha para ela. Não tem nada a dizer, pode apenas abraçá-la. “Bem-vindo a Uganda”, me diz.
De um escritório saem dois rapazes, Caesar e Kenneth. As aulas terminaram e, nas férias, ajudam Rose com a papelada da adoção à distância: cadastro de dados, planilhas, arquivos. No ano que vem, provavelmente estarão na universidade, embora ainda não tenham decidido o que fazer. Aí estão eles, dois jovens daquela multidão que, em uma tarde de junho de 2007, escutava padre Julián Carrón falar em Kireka, sobre felicidade, desejo, insatisfação: “O que realmente falta a vocês?”. Com eles, também estavam Luigi, Deo e Fredy. Cinco jovens, nos seus vinte anos. Unidos por um passado difícil e pela vida naquele lugar cheio de barro e folhagens que é a favela de Kireka. E por um estranho encontro com aquela enfermeira, Rose, que há alguns anos colocou a comunidade de pernas para o ar, cuidando das mulheres doentes e fazendo os jovens irem à escola. Uma história que não é novidade para os leitores de Passos. Alguns deles estiveram no Meeting no ano passado. Assim, fomos ver de perto o que está acontecendo nesse pedaço do mundo, no coração da África.

Crocodilos e música. Jinja fica a 70 Km de Kampala, às margens do rio Nilo. Dois turistas japoneses em visita às fontes e às primeiras cascatas do rio, olham incrédulos aquele grupo de ugandenses sentados no dique. Cantam em italiano. Os noventa meninos das duas classes do primeiro ano do ensino médio da escola Luigi Giussani saíram de manhã da capital com quatro micro-ônibus. São os mais velhos da escola, que abriu há apenas dois anos em Kireka, bem perto do Meeting Point, aos pés da colina. No ano que vem, começarão o segundo ano e conseguirão fechar um ciclo de três. “Era um desejo que eu tinha há muito tempo: antes, matriculávamos os jovens adotados à distância nas escolas locais, também católicas. Mas ter uma escola assim, em Kireka... Havia esse terreno abandonado, então comecei a levantar as paredes”, explica Rose.
O prédio foi construído tijolo por tijolo e agora corta a colina com um grande gramado na frente. No terreno, várias construções: sala para a creche, a cozinha onde as mulheres do Meeting Point preparam o almoço para 300 meninos do ensino médio e fundamental. Fredy e Deo dão aulas aqui, embora ainda estejam terminando a universidade: o primeiro estuda economia, o outro, literatura. Eles também estão no Nilo, acompanhando os estudantes. Junto com eles, também estão outros jovens da comunidade: os “alpinos de Kirega”, grupo nascido da paixão pelo canto que os acompanhou desde o início do encontro com Rose e que, depois da visita de Carrón, cresceu a ponto de criarem um coro de respeito. Estão de pé, cantando La montanara de costas para o rio, enquanto um crocodilo escorrega em uma pequena ilha que aflora da água.
É surreal ver aqueles cinco jovens que cantam olhando-se nos olhos: Fredy, Deo, Kenneth, Caesar e Luigi. Este último, desde criança sem ninguém, foi trazido por Rose, “a tia”, e pôde ir à escola graças às adoções à distância, como muitos aqui. Os gritos da mãe, naquele ônibus cheio de gente e em chamas, não saíam de sua mente. Órfão de uma guerra que terminou só em 2005 e que encheu de sangue os vilarejos nos arredores de Gulu, Kaberamaido, Kitgum, Pader... “Eu vivia em um túnel sem saída, esperando apenas morrer. Depois, me levaram até Rose. Junto com aquelas mulheres doentes, mas felizes”. Naquele lugar, renasciam. “Perguntei-me se alguma vez tinha acontecido uma coisa tão boa na minha vida”, conta Luigi. História parecida com a de Fredy, Deo, Kenneth, Caesar... E com a dos outros sete que depois do encontro com Carrón correram até Rose para pedir o Batismo: “Porque tinham entendido que para segui-lo precisavam pertencer àquilo que ele pertencia”, explica Rose.
Eu os ouço e canto com eles, aqui, debaixo de uma mangueira, as palavras aprendidas na Itália, aos pés do Monte Bianco. E basta olhar em volta para entender que aquilo que toca e preenche não é apenas isso, mas são todos aqueles rostos. De Barbara, Jacqueline, Vincent, Moses, Onispro, Patrick, Matthew. E dos outros jovens do Movimento que conheci em Kampala no dia anterior, durante uma noite de cantos.

A medida do real. Contaram como estão vivendo, falaram sobre o estudo, o trabalho. E de como a Escola de Comunidade está se tornando cada vez mais um sustento para a fé. Rostos nos quais se percebe que o juízo sobre a realidade coincide com a experiência que vivem. Nada é eliminado. Cristo é a medida do real. Todos foram conquistados e mudaram. Matthew era um rebelde, que matava pessoas. Anos depois, sofreu dificuldades na escola. Porque ele olhava para as escolas em chamas depois de tê-las incendiado. “Fui batizado no ano passado”, sorri orgulhoso. Volto-me para Rose: um amigo padre me explicou que o Batismo limpa todo o nosso mal, que aquilo que fizemos não existe mais. “Porque a justiça de Deus não é uma balança, mas duas mãos com as palmas para cima, que mendigam”, diz Rose. Mendigam o coração, o meu coração, o coração de todos aqueles que entram naquela “banheira” turística que nos leva para visitar o Nilo. O coração de Caesar, com colete salva-vidas fosforescente, que tem uma vontade louca de mergulhar, mas não sabe nadar, e de Patrick, com um 1,90 m de altura, filho de uma das mais ativas, “loucas”, mulheres de Kireka: Judith, ou melhor, “Ronaldo”, como a chamam os amigos da favela. Porque ela gosta de futebol e é a treinadora do time feminino do Meeting Point. Veio fugida do norte, com quatro filhos de pais diferentes. Soropositiva, como as duas mil mulheres que frequentam os Centros de Kirega e Naguru, em outra colina de Kampala. Com um colete de pescador, óculos de sol e uma velha máquina fotográfica, imita os jornalistas fingindo tirar fotos da comitiva de mulheres que nos acompanha na visita à pedreira, o grande “buraco” na colina, no meio das casas de barro.
Aqui, quebram pedras debaixo do sol para reduzi-las, sem explosivos, com um pequeno martelo. Pedra após pedra. “No entanto, são felizes; olhe para elas: debaixo do sol do meio dia quebrando pedra e cantando...”, diz Rose. E à chegada do grupo barulhento de mulheres, todos fazem festa. Também na margem da caverna, mais no alto, onde parece que os barracos irão cair de um momento para o outro, todos saem para vê-las.
Do meio da pilha de pedras, aparece um menino. Teddy, Joyce e Jacqueline se aproximam: não é um deles. Está desnutrido. Param-no, e conversam. Os três se interessam por ele. Eles, que até poucos anos atrás teriam querido morrer, desesperados, como contam cantando e encenando suas histórias, entre tambores e sementes de abóbora que soam como maracás: “Eu estava mal, depois, encontrei Rose, o Meeting Point, os voluntários: você tem valor, me diziam. Agora estou em paz”, diz uma jovem resumindo a vida de todos. Da ex-rebelde à renegada pelo marido, a viúva... Não “agora estou bem”, mas “estou em paz”. Como dizendo que não precisam apenas de remédios ou de duas refeições por dia. Com eles, a favela inteira mudou de rosto. Chego a pensar que é bonito caminhar assim, entre o barro e os córregos negros que escorrem entre os barracos arruinados.
Criaturas novas, pessoas renascidas que mudam diante dos seus olhos, como os meninos sentados à beira do Nilo cantando como alpinos. Entre eles está Mauro, dos Memores Domini como Rose. Está em Uganda pela Fundação AVSI, trabalhando em um Centro Permanente pela Educação que organiza cursos de atualização e outras iniciativas para professores e dirigentes de ONGs: “Um lugar onde se propõe a ideia educativa de Dom Giussani, a partir de Educar é um Risco. Esse Centro foi idealizado por Giovanna Orlando e Clara Broggi, duas Memores que moravam com Rose, que também estiveram aqui através da AVSI. Giovanna morreu antes de ver a obra terminada, inaugurada em 2009”, me disse Mauro no dia seguinte nos corredores ainda com o cheiro da última demão de tinta branca.
Tudo bem, as obras. Mas é evidente que a presença dos Memores, de Lucia, Corrado, Marco, Lina e os outros, é algo mais. A vida comum, o trabalho, a oração. Foi olhando para eles e depois de visitar a Mostra do Meeting de Rímini sobre os beneditinos que Fredy, Luigi e outros resolveram morar juntos em um apartamento. “Intuíram que na maneira que os monges viviam havia a possibilidade de ir mais a fundo naquilo que tinham começado a experimentar”, diz Rose. “A mudança deles começou a mudar também aqueles que estavam perto deles”. E todos pediram para ser batizados, dezenas por ano depois daquele junho de 2007. Só este ano, foram batizadas 48 pessoas em janeiro.
É o caso de Vincent que, em Jinja, não pode deixar de se levantar da grama e se unir ao coro, embora não seja particularmente afinado, dizem os outros. Mas ele se lança. Sua história explica o porquê. Fugiu do Norte e chegou a Kireka ainda menino. O Meeting Point pagava sua mensalidade da escola, mas a madrasta o mandou de volta para sua cidade e disse a Rose que o menino tinha morrido. Certo dia, dois anos depois, telefonaram da escola chamando Rose para ir ver um menino que era um “demônio”. Ela o reconhece: “Olha, você tem um valor...”. E Vincent cede.

Anjos em volta. Sonia, do Meeting Point, o acolhe em sua casa e ele continua os estudos. Em janeiro último, foi batizado. Os patrões da casa de Sonia são de uma seita protestante: Vincent precisa ir embora. São as mulheres de Kireka que o ajudam: oferecem a ele um pequeno quarto em um barracão e, juntas, começam a cuidar dele como um filho. “Para mim, é claro, eu vejo isso: Alguém me abraçou e continua a fazê-lo. Também através da Escola de Comunidade”, diz o jovem, que hoje tem 19 anos. “Uma vez, Rose me disse que os anjos estão à minha volta. E que quando buscamos a Ele, nunca erramos. Agora sei que é verdade. Eu vejo todo esse amor. É o cêntuplo. Ou, talvez, apenas uma antecipação. E essa ternura que sinto em mim me desafia continuamente a buscá-Lo, cada vez mais. Eu quero tudo. Tudo”. Ele também tem o desejo de ter uma bicicleta para ir à escola: “Só que, depois, eu me pergunto se isso pode ser suficiente, se realmente pode ser suficiente para o meu coração...”.
“O que é suficiente? Eu também vivia no escuro. Pensava que ir à escola me tiraria da vida que levava”, diz Fredy lembrando quando chegou ao Meeting Point, em 2005: “E depois do Batismo, depois de ter dado o nome de Jesus àquilo que tinha encontrado, tudo começou a ter um significado, um gosto novo”. Incluindo o ensino na escola Luigi Giussani, da qual, diz, “agora se pode dizer que em Uganda existe pelo menos uma escola”.

Seguir engatinhando. O mesmo vale para Deo: “Trabalhar é o aprofundamento do encontro que fiz, da minha fé. Uma comparação contínua com a Escola de Comunidade. Porque os alunos que estão diante de mim, não sou eu quem os faz, mas Aquele que me faz, os faz também. E a única coisa que posso desejar é que eles possam descobri-Lo”. Rose olha para todos os seus meninos, enquanto cantam depois do almoço às margens do Nilo: “Realmente é verdade. O problema é o nosso relacionamento com Cristo”, diz. “E não fazer as coisas, construir obras ou, até, ensinar. Dom Giussani me disse isso antes de me mandar para cá, depois de um período na Itália. Disse que o único problema deveria ser o meu relacionamento com Cristo, onde quer que eu estivesse: ‘Tudo o que acontecer depois são migalhas que caem da mesa do rico, fruto da superabundância, da plenitude daquele relacionamento’. E o que aconteceu depois, você está vendo, é um milagre. Eu não fiz nada... Ao contrário, eu disse a você. Eu estava lá quando Carrón falava e não me dava conta do que estava acontecendo. E agora sou eu quem O vê em ação nesses rostos. E da maneira como posso, engatinhando se for preciso, vou atrás deles”.
No dia seguinte, nos degraus de uma igreja em Kampala, vejo esses jovens, uns quarenta, que acabaram de encher de cantos a missa semanal do Movimento. E continuam fora. Cantam juntos há cinco dias. Em todos os lugares. Nunca termina. Comovidos por aquilo que aconteceu. “Epitalà: olhe para o céu, em um tempo em que tudo leva à confusão, dói-me quando você não está...”, cantam todos, palavras que Deo escreveu.
Não é o mal da África que enche meus olhos de lágrimas diante desses meninos, algumas horas antes de tomar o avião: é a saudade d’Ele. É um rosto, real, que me agarra novamente, mesmo a sete mil quilômetros da minha casa. “Aqui estou, sou eu. Sou eu a quem você busca”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página