A reflexão sobre o segundo volume do livro do Papa “Jesus de Nazaré” reuniu 450 pessoas em São Paulo para as apresentações do teólogo Francisco Catão e do abade Dom Bernardo Bonowitz. Um convite a estabelecer uma relação pessoal com Jesus
A centralidade da fé católica está na pessoa de Cristo e sua encarnação. Qual a importância desse acontecimento na vida contemporânea? Do desejo de aprofundar o tema do segundo volume do livro do Papa Bento XVI “Jesus de Nazaré” nasceu um evento em São Paulo que reuniu 450 pessoas no último dia 11 de agosto no auditório do Mosteiro de São Bento, realizado pelo Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
“Jesus nos salva pelo mistério da sua encarnação. A fé nasce desse encontro, sempre pessoal, com o Mistério: Deus vem até nós”, define o cardeal da Arquidiocese de São Paulo, Dom Odilo Sherer.
Como classificar o Jesus de Nazaré de Bento XVI? Longe de ser um livro histórico, teológico ou cristológico, o Papa se propõe a falar de Jesus e de Deus a partir do encontro pessoal, da experiência de Alguém que nos ama, que vem até nós e nos quer a seu lado, como amigos e testemunhas, aponta o professor e teólogo Francisco Catão. No livro o Papa busca encontrar o Jesus “real”, a figura e a mensagem de Jesus, tal como o encaram os Evangelhos. Para tanto, não basta falar do Jesus histórico, pois a história é incapaz de se dar conta da grandeza própria do homem Jesus.
Na visão de Dom Bernardo Bo-nowitz, abade do mosteiro trapista Nossa Senhora do Novo Mundo, judeu convertido ao catolicismo, é o sacrifício o centro da obra de Bento XVI. O Papa reconhece que hoje a ideia de expiação é considerada como mitológica e “indigna de Deus” por muitos teólogos e exegetas. Todavia, “o mistério da expiação não deve ser sacrificado a algum presunçoso racionalismo”. Por que não? Porque é através do sacrifício que Cristo toca, transforma e salva a todos nós: “A Encarnação, pela qual essa nova forma de ser de Deus como homem se realizou, torna-se, por meio do seu sacrifício, um acontecimento para a humanidade inteira” (p. 6).
No primeiro volume de Jesus de Nazaré o Papa tratou dos grandes momentos da vida de Jesus, narrados pelos Evangelhos. Começa no batismo e culmina na confissão de Pedro, na Transfiguração e nas diversas afirmações de Jesus sobre si mesmo. Descreve o panorama do contexto em que o Filho de Deus se manifestou. O segundo volume, tendo como subtítulo, “da entrada em Jerusalém até a Ressurreição”, concentra-se na realidade histórica da última semana de Jesus, incluindo os sinais de que está vivo, presente à realidade que estamos vivendo. Jesus de Nazaré II constitui o diálogo central, no qual a reflexão se concentra na cruz e na ressurreição, que constituem a realidade histórico-escatológica da ação salvadora de Deus.
“Para Bento XVI, a fé se dá no encontro pessoal com Jesus. Situa-se, portanto, além das expressões, embora sejam essas as que fundamentam historicamente a unidade dos fiéis numa mesma Igreja. Não podemos, por isso, nos acomodar na unidade histórica da Igreja, mas devemos ir além e viver, de modo todo especial no mundo de hoje, em busca da unidade em Cristo, uma unidade ecumênica, em face de um mundo que vive como se Deus não existisse”, afirma Francisco Catão.
Em sua apresentação o teólogo destacou que os documentos históricos que possuímos sobre Jesus, apesar de sua riqueza, não nos podem fornecer senão dados sobre Jesus como homem, por maiores que sejam seus sofrimentos ou sua glória. “A realidade profunda de quem é Jesus, como de cada um de nós, aliás, não pode ser alcançada unicamente pela história. Reside no mais íntimo de nós mesmos e só pode ser adivinhada por nós mesmos, e ainda de maneira precária. Só Deus nos conhece de dentro de nós mesmos, na sua imanência, marca de sua transcendência. Somente a partir da Palavra de Deus, acolhida na fé, podemos saber quem é Jesus de modo a estabelecer uma relação pessoal com Ele”.
Não se parte, portanto, nem da história nem da fé, mas do encontro pessoal iluminado pela Palavra do próprio Jesus. Percebe-se sua profundidade pessoal, compartilha-se seu Espírito e vive-se em comunhão com ele. Para Catão, a obra de Bento XVI reflete sobre o mistério de Jesus assumindo, numa unidade superior, história e teologia. Por isso o Papa percorre o roteiro dos mistérios de Jesus, com os olhos fixos na sua fonte transcendente, que não é outra senão o desígnio de amor de Deus, manifestado na história pela comunicação mesma de Deus, através de sua Palavra e de seu Espírito. O livro destaca três pontos que lhe caracterizam a posição teológica: o valor do agir humano de Jesus, seu significado expiatório na cruz e seu triunfo, alma e corpo, na ressurreição, partindo da história e mergulhando na eternidade. Ser cristão, portanto, é se reconhecer salvo por Jesus, vivendo uma aventura de amizade pessoal com Ele, acolhendo o amor com que nos ama, a ponto de dar sua vida por nós, e nos empenhando pessoalmente em amá-lo, vivendo entre nós no amor uns dos outros, o mesmo amor com que Jesus nos ama.
“Do ponto de vista fenomenológico, o segredo de Ratzinger é ter valorizado ao máximo o potencial de nosso encontro pessoal com Jesus. Somente guiados por seu Espírito, compartilhado na amizade, podemos adivinhar a profundidade de seu ser e a significação de sua mensagem. Do ponto de vista da fé, aproximando-se o máximo da melhor tradição cristã, Bento XVI encontrou-se com Tomás de Aquino. Santo Tomás partiu da Pessoa. Quem parte do encontro, valoriza a Pessoa. Só o convívio com Jesus nos leva a perceber em profundidade quem é Jesus de Nazaré e juntamente com ele, no Espírito, viver na comunhão com o Pai”, conclui o teólogo.
Realidade originária. Antes, os eventos registrados pelas Escrituras e as próprias Escrituras em si sempre se orientaram para o Cristo, sempre prefiguraram a Cristo. Ele é, como dirá Bento XVI, sua “realidade originária”. A história sagrada ocorreu e foi registrada em vista do Cristo que estava por vir. Em sua apresentação, Dom Bernardo mostra que os sacrifícios do Antigo Testamento – e para o Papa, estes sacrifícios constituíam o núcleo do culto judaico até a destruição do templo – eram essencialmente limitados não por alguma imperfeição cultual ou moral (que certamente existiam), mas pelo lugar a eles designado na história da salvação. A maior limitação dos sacrifícios do Antigo Testamento é que eles eram substitutivos ao invés de serem vicários (que faz às vezes do outro). “A história inteira aparece à procura d’Aquele que pode verdadeiramente intervir em nosso lugar, que é verdadeiramente capaz de nos assumir em Si mesmo e assim conduzir-nos à salvação” (p.15).
“Mas por que esta preocupação com sacrifício? Para quê ele serve? Por que não deixar o mundo caminhando como ele sempre fez?”, pergunta Dom Bernardo. Além de falar de um mundo corrompido, de um mundo que não mais corresponde aos desígnios de Deus que não deixa a glória de Deus transparecer, mas antes profana e dessacraliza o seu nome, em vez de santificá-lo, Bento XVI fala da ruptura nas duas grandes relações do homem: com o próprio Deus e com o seu próximo. Com relação a Deus, o Papa diz que o mundo antes de Cristo vive numa condição de “alienação”: “O mundo no seu conjunto deve ser arrancado da sua alienação, deve encontrar de novo a unidade com Deus” (p. 18).
A Ressurreição é a resposta acolhedora do Pai ao dom de si mesmo em sacrifício de Cristo, mas não se trata de uma resposta dada somente no Domingo de Páscoa. Jesus sabe que ele está oferecendo ao Pai o sacrifício aceitável e está certo de ser atendido. Este “Eu sei que sempre me ouves” está presente na oração da berakah da instituição da Eucaristia, na oração sacerdotal que Bento vê como a perfeita realização da liturgia do Yom Kippur e na promessa de Cristo ao Bom Ladrão do alto da cruz, “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (p. 33).
Os sacrifícios antigos deixaram o mundo inalterado. “O objetivo constante é atrair para dentro do amor de Cristo todo indivíduo e o mundo, de modo que todos se tornem juntamente com Ele ‘uma oferta agradável a Deus, santificada pelo Espírito Santo’” (Rm 15,16) (p. 36). E Cristo não é somente o sacerdote e a vítima deste novo culto. “Ele mesmo é o novo templo da humanidade” (p. 37); “o Ressuscitado que reúne os povos e os unifica no sacramento do seu Corpo e do seu Sangue” (p. 38). Em seu Corpo nós conseguimos fazer esta viagem, esta impossível travessia, da “individualidade fechada” para a comunhão. “Eis o que é o ágape, a irrupção na esfera divina” (p. 39).
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