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Passos N.131, Outubro 2011

BRASÍLIA - OFICINAS DE LITERATURA

Na prisão, um gosto de vida nova

por Liziane Bitencourt Rodrigues

Duas educadoras aceitam o desafio de promover oficinas de literatura para detentos da capital federal. E eles não precisam esperar sair da prisão para começar a viver. Um acontecimento que, aos poucos, envolve cada vez mais amigos, em busca do mesmo olhar

E la tinha uma boa desculpa para não enfrentar o medo que a proposta despertava: viajaria em julho, o mês programado para a oficina de literatura no presídio. Mas foi cedendo ao convite da colega, que sugeriu antecipar a atividade para antes da viagem, que a jovem mestranda pôde experimentar o que agora define como uma “humanidade nova”.
Fabíula conheceu Luzineide no mestrado em Letras da Universidade de Brasília (UnB). Nenhuma afinidade especial, até que, planejando as oficinas que desejava realizar no cárcere, Luzineide se lembrou da aula que tinha visto a colega dar sobre o romance Meu Nome é Vermelho, de Orhan Pamuk.
Voltar ao presídio, agora que, por conta do mestrado, estava formalmente desligada da tarefa de educadora entre os detentos, era uma provocação para Luzineide. O relacionamento com presidiários iniciou há 17 anos. A então jovem universitária tinha ouvido sobre alguns trabalhos pastorais nas quais as pessoas da sua comunidade eram convidadas a participar. A Pastoral Carcerária foi a que chamou sua atenção. Passou a ir todos os sábados ao presídio, com mais quatro ou cinco amigos. O grupo não passava desse número. Por isso, quando o cansaço ameaçava fazê-la desistir, pensava: “Se eu não for, será um a menos”. Fazia cinco anos que as visitas haviam iniciado e Luzineide, já formada em Letras, aceitou o desafio de fazer do que era voluntariado seu trabalho formal.
“Eu acompanhava, como espectadora, as apresentações de um grupo de teatro do qual participavam detentos, um trabalho que me chamava atenção. Conversando com o diretor, soube que precisavam de professores para reforço escolar com os presos. Por causa da minha experiência em visitas à penitenciária, fui convidada a dar aulas a eles.” A atividade como professora iniciou em 1999, num presídio feminino. Não havia estrutura de sala de aula. “O espaço no qual ensinávamos ficava ao lado da cela de isolamento para detentas que haviam cometido alguma infração já dentro do presídio. Era difícil se concentrar na aula ouvindo o constante lamento das que estavam isoladas. Se queixavam da solidão, queriam conversar, queriam atenção”, recorda. Esta “aventura” de educar nessa situação durou um semestre. No período seguinte, as aulas foram transferidas para o meio do pátio. Tratava-se de reforço escolar para os que prestariam as provas dos sistemas de educação de jovens e adultos. “Numa turma de 30, metade era aprovada, um bom resultado considerando as condições de estudo que tinham”, avalia Luzineide. Com o tempo, o trabalho foi se estruturando, ela assumiu a coordenação pedagógica e as aulas no cárcere passaram a contar com novos atrativos que permitiram estruturar o trabalho, como a construção de salas de aula em todos os novos presídios construídos na Capital Federal.
A licença desse trabalho para cursar mestrado, há dois anos, não deixou Luzineide totalmente livre da educação de detentos. Ela quis estudar esta área, dedicando-se a pesquisar por que o hábito de leitura tem a ver com o confinamento, ou é adquirido num período como este. “A leitura qualifica o tempo que é vivido ali. O leitor do cárcere sente que está fazendo algo útil e vê na literatura uma forma de se ausentar daquela realidade”, conclui a mestranda. Ela costuma encontrar entre os advogados dos presos ex-alunos seus do cárcere, que, depois de cumprida a pena, cursaram nível superior e agora também trabalham ajudando outros presos.
O convite de Luzineide para Fabíula e outros colegas da UnB também chegou com o propósito de uma contrapartida aos encarcerados. “Percebia que o local era só ambiente de pesquisa. As pessoas vão lá, levantam dados e vão embora. Sinto que, ao fazer as oficinas, estou deixando algo em troca”. A proposta de oficinas de literatura, com duração determinada, também tem a ver com um novo perfil de presos, os que cumprem regime semiaberto, saem durante o dia e ficam menos tempo no cárcere. Com este regime, a rotatividade dos alunos detentos aumentou, exigindo uma nova proposta para este público, como os trabalhos mais curtos, em formato de oficinas. Fabíula, que pesquisa o trabalho do escritor brasileiro Ariano Suassuna, que também é xilógrafo, propôs aos detentos trabalhar com xilogravura. Mesmo a limitação de cores a serem usadas (a mistura de algumas pode resultar em camuflagens que ajudam em fugas) e de materiais possíveis de serem levados para dentro das celas, o trabalho foi satisfatório. Nas oficinas realizadas em julho, na Penitenciária do Distrito Federal I, trabalharam literatura de cordel, quadrinhos, poesia e cinema, o que estimulou a produção de textos. “O vocabulário deles melhora com a literatura. Tem aluno que já se percebeu falando de forma diferente da linguagem comum entre os presos, que me disse que consegue conversar com outras pessoas quebrando o estereótipo do bandido. Não parece que ele é dali”, conta Luzineide.
Os encontros, assim como a poesia, os estimula a falarem da vida, dos relacionamentos, dos filhos que os esperam do lado de fora das grades. Preparar as oficinas envolveu detalhes como a entrega de um exemplar dos textos para cada um. “Tudo na cadeia é comum, perdem a individualidade. Mesmo eles não podendo ficar com materiais nas celas, até em função do pouco espaço para guardar objetos pessoais, fizemos questão de dar uma cópia para cada um, ainda que tivéssemos de recolhê-las ao final dos encontros”, conta Fabíula. As atividades do mês de julho envolveram os detentos que estudam e que estavam no período de recesso escolar. A segunda turma é daqueles que não têm atividade alguma e que são considerados os “marginalizados” na cadeia, em função do tipo de crime que cometeram, condenados pelos próprios outros presos. A opção de textos para este grupo se aproxima da realidade da prisão. Luzineide escolheu as obras que escancaram a dureza da vida de reclusos: Recordação da Casa dos Mortos, de Fiodor Dostoiévski, e Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, que fala de uma experiência real e pessoal do autor. “É muito difícil que falem do que estão vivendo. As condições de confinamento impõem uma disciplina e uma forma de ver as coisas”, diz Luzineide para explicar por que resolveu ir mais a fundo.

Apesar do medo. O cheiro da prisão não é agradável. Nem o barulho das grades se fechando. “Toda vez que estou me preparando para ir, sinto medo, mas penso que eles estão nos esperando e vou”, diz Fabíula. O medo que ela enfrenta agora Luzineide já experimentou no passado. Na época, ainda universitária, foi questionada por um dos detentos, já senhor maduro, por que se interessava por aquelas pessoas. “A pergunta dele me ajudou a me perguntar a mim mesma por que fazia aquilo”, recorda Luzineide que ainda se questiona sobre a motivação. “Eles tinham cometido crimes, mas eu aprendi que a humanidade prevalece sempre, apesar de eles terem cometido crimes, apesar dos meus limites. Valorizavam a presença de alguém que se importava com eles”, diz.
“Eu saio do presído, mas o presído não sai de mim”, diz Fabíula. Não se refere ao cheiro ruim ou ao barulho das grades se fechando, mas pela experiência de uma nova humanidade que esta experiência despertou. “Descobri que são homens, com o mesmo desejo de felicidade que eu tenho. Perguntaram se eu achava que eram monstros, alegando que todo mundo pensa assim a respeito deles. Respondi que não achava isso, não, porque já tinha ouvido sobre uma experiência muito bonita com presos na Itália [cf. Passos 117, julho de 2010]. Um deles me agradeceu. Disse ‘obrigado por me olhar como humano’. Descobri que está sendo gerada uma humanidade nova também em mim. Descobri que sou humana, que Deus me fez com um desejo de bondade e justiça tão grande que supero o medo. E que o homem não pode ser definido pela mal que é capaz de fazer”, completa Fabíula.
Ela conta que um dos policiais ficou provocado com a visita das duas professoras: “Com vocês eles são diferentes”. Foram apenas três encontros com um preso que lhe permitiram comprovar isso. No primeiro dia, pegou o livro e se manteve de cabeça baixa. Era sério, nunca falava. No encontro seguinte, uma oficina de xilogravura, não pôde participar, mas mandou pelos colegas o texto que tinha feito. “Isso me comoveu: fez questão de mandar o texto, mesmo sem poder participar”, conta Fabíula. Por isso ela decidiu pedir espaço na aula que o detento teria com outra professora para fazer a xilogravura com ele. “Quando nos encontramos para pedir autorização para publicar seu trabalho, era outra pessoa, olhava nos olhos.”
O trabalho não iniciou só com a vontade das educadoras. A autorização para entrar no presídio e realizar uma atividade como essa leva pelo menos um mês, somando o pedido ao juiz, a manifestação da direção do presídio e a definição do que pode ser feito. A abertura do diretor, Celso Wagner de Lima, e do vice, Marcos Aurélio Sloniak, que apostam nas oficinas como uma possibilidade real de mudança, é uma grande aliada. Os desafios são ajudar na criação de uma biblioteca. A maioria dos volumes é livro didático e de auto-ajuda. Esses livros são levados por familiares e depois são compartilhados.
Neste mês, Luzineide, Fabíula e outros colegas estão trabalhando poemas de Adélia Prado com as detentas do presídio feminino. A conclusão da oficina prevê um sarau, com músicas e declamação de poemas da escritora por parte das detentas e de amigos de Fabíula. No intervalo entre os três atos, seus amigos servirão comidinhas mineiras (café com pão de queijo, goiabada com queijo e caldo de frango), numa alusão a componentes da obra de Adélia Prado. A iniciativa na penitenciária surgiu como parte do trabalho de mestrado Sob Custódia do Tempo: a Literatura no Cárcere, de Luzineide, com orientação do professor Dr. Robson Coelho, e conta com a participação de outros mestrandos e convidados.
São mais de 10 mil detentos no Distrito Federal. O complexo atendido pela iniciativa abriga um quarto deles, e menos de 10% foi atingido até agora pelas oficinas de literatura. Isso faz Luzineide e Fabíula afirmarem: “esse trabalho só começou”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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