Passos N.132, Novembro 2011

DESTAQUE - MAIS FORTE QUE A ESCURIDÃO

Um cromossomo (a mais) que constrói o instante

por Davide Perillo

Histórias de certeza no dia a dia em família. Devia ter morrido. No entanto, Daniel está ali, pequeno e poderoso. E gera. Porque não ficamos parados naquilo que compreendemos

A única certeza parecia aquele cromossomo a mais: trissomia 18. O diagnóstico foi feito quando Daniel ainda estava na barriga de Chiara e os médicos esboçavam hipóteses que giravam todas em torno da mesma palavra: “Vai morrer. Talvez antes de nascer, provavelmente logo após”. No entanto, Daniel está ali, na cozinha da casa, nos braços de Marco. No final de julho, ele deixou o hospital, libertado daquele rosário de tubos, sondas e crises respiratórias que pareciam levá-lo embora a qualquer momento. Em breve completará quatro meses.
Dia 17 de setembro houve uma comemoração em Morimondo, abadia da Bassa Milanese. Igreja lotada, gente de meia Itália: Romanha, Piemonte, Trentino... Um povo. Que nasceu em volta daquele berço. À fé de Chiara e Marco. E à presença mesma daquele bebê magrinho, minúsculo, parcos três quilos de peso, mas uma capacidade de influir sobre o mundo, de construir – de gerar – mais poderosa do que muitas outras vidas juntas. Porque remete imediatamente a uma outra certeza: “Ele existe. Foi querido. Do jeito que é”.
Chiara é simples e transparente. A mesma simplicidade do primeiro dia, quando ouviu o diagnóstico: “Claro que chorei. Nós não queremos um filho doente. Nós esperamos a normalidade, desejamos um filho saudável. Mas eu estava certa de uma coisa: que a chegada de Daniel era algo para nós – para mim. Eu o olhava na ecografia, com as mãozinhas tortas, e dizia para mim mesma: Se o estás fazendo assim, significa que o queres justamente assim. Como me queres com cabelos encaracolados, assim o queres desse jeito”.
Tentem imaginar-se nessa situação, colocar-se no papel de pai e mãe de um bebê que, no momento seguinte, pode não existir mais. Como todos os filhos, claro. Mas Daniel é essa precariedade sob os olhos em todos os momentos, é algo que torna dramático qualquer instante normal: o resfriado de Anna e Eugenio, seus irmãozinhos, um soluço no momento errado... Mas nada de crise. “No entanto, estes últimos meses foram uma caminhada. É como se cada dia nós colocássemos um tijolo a mais nesse muro da certeza”. Por quê? “Muita coisa aconteceu. A mudança das pessoas em volta, os amigos, o fato de que Deus jamais nos deixa sozinhos. Mas sobretudo o trabalho da Escola de Comunidade: um recomeço contínuo. E o meu crescimento, o eu que desperta e aos poucos vai se tornando mais vivo, mais atento a muitas coisas”. Exemplos? “Logo que saímos do hospital, nossa casa era uma agitação só. Vou fazer algo, mas já volto para ficar com você. Tinha que ser rápida. Talvez em seguida não conseguiria mais segurá-lo nos braços. Mas tudo o que fazemos não é suficiente. Um dia me perguntei: por quê? Mesmo que eu te segurasse nos braços de manhã até a noite, para você não mudaria nada. E não resolve a minha vida”. E então? “Em seguida chegamos ao coração: Daniel é um desafio à fé. O ponto é se cremos em Jesus, se reconhecemos a presença do Mistério que dá vida a ele e a nós. E se isso pode nos sustentar. Não é que somos capazes: é que dia a dia aprendemos um pouquinho mais disso”.
É impressionante pensar que tudo, no fundo, nasceu de uma outra dificuldade, uns dois anos atrás. Uma crise, tudo parecia estar a ponto de ruir. Depois, a proposta do padre Eugenio. A mudança de casa e de cidade. O encontro com outros amigos. Mas, sobretudo, o desafio que havia dentro daquela proposta: levar a sério a si mesmo e a Cristo. Levar a sério a fé.
“Nós topamos”, conta Marco. “E quando nos demos conta que entre nós havia renascido algo até mais interessante do que no dia do casamento, dissemos: é isso, Cristo não desiste de nós. Nós lhe damos um pouco e Ele abre portas e caminhos no deserto. É por isso que diante da doença de Dani a reação foi: vejamos aonde nos leva essa estrada, Senhor. Jamais pensei que essa coisa fosse contra mim”. Ele também está colocando os seus tijolos. Feitos de “sim” e de descobertas. “Quando tinha as suas crises, no hospital , às vezes eu me dizia: Ele tem um tempo limitado, você sabe. Precisamos estar preparados. Eu arrumava uma razão. Mas quando ele ficava roxinho, eu rezava para que passasse. É dramático, a gente descobre que não está preparado. Não pode estar. Então a gente grita. Reza: não sei o que fazer, me ajude. Ou: faça-o respirar. Ali, sim, é que estamos inteiros, naquela súplica. Estamos impotentes: recebemos tudo. Mas fazemos tudo o que podemos. Porque pedimos”. E para você, o que pede? “Não me deixe parar antes, parar naquilo que compreendo. Porque é sempre muito pouco. Ajude-me a ir um passo adiante, porque seguramente existe algo para mim”. E o que descobre? “A gente se descobre mais atento às coisas, descobre o nexo que o liga à vida, a sua relação com Deus. E percebe que é o mesmo com a gente. A mesma relação. Ele não exige nada, não se lamenta. Está ali, e vive. E eu desejo uma ligação assim com Cristo: direta, sem filtros. Olhar a realidade que acontece”.
E os outros filhos? “Eu os olhos de maneira diferente”, diz Chiara. “Com Anna, a mais velha, no fundo sempre pensei: faça assim, eu te explico a vida, desse jeito não é certo. Ao invés, Deus a fez como ela é, com o seu temperamento. É mais adequado para ela, e portanto para mim. Não é mais eu te ensino, mas estamos juntas diante do que está aí. Estamos diante deles não como filhos seus, mas confiados a você para crescerem. Se eu não lhes ensino a olharem a vida com esse olhar, o que vou ensinar-lhes?”. E Marco? “Eu tinha mil preocupações. Dani é tão frágil, talvez os outros, sem perceber, lhe fazem mal. Mas são maduros. Eugenio é muito delicado. Quando passa diante de Daniel, para e lhe dá um beijo. Sempre. Depois segue em frente. Penso em quando passamos diante do Santíssimo: a gente se ajoelha, O reconhece”. E vive.
“Veja, estamos descobrindo que o Senhor nunca é imponente no seu modo de se propor. É discreto, se apresenta nas pequenas coisas. Aí é que eu intuo sempre mais que Daniel foi querido. Por exemplo, as ajudas que chegam para as necessidades práticas: os remédios, as despesas do Batismo... É como se o Senhor nos dissesse todas as vezes: Não se preocupem, eu estou aqui. Com ele e com vocês. Cada dia vemos melhor essa Presença que nos acompanha”.
E constrói. No drama, na dor, mas constrói. “É verdade, cada dia vejo que estou mais segura”, diz Chiara. “Você viu, entendeu, aderiu à realidade. Colocou mais um tijolo. E à noite talvez diga a si mesma: menos mal que Dani tem um cromossomo a mais. Porque tudo o que veio daí é grande”.