Encontro organizado pelo Centro Cultural de Milão na “Semana da Cultura 2009”, promovida pela Diocese de Milão.
Auditorium de Milão, Itália, 20 de maio de 2009
Um novo início
A família tem estado no centro dos debates públicos nos últimos tempos. A tentativa de legalizar novas formas de convivência diferentes do matrimônio concebido como relação definitiva e fecunda entre um homem e uma mulher desencadeou discussões acaloradas. Não se trata de algo totalmente novo; na verdade, é o ponto culminante de um processo que começou anos atrás.
Esse debate evidenciou, de um lado, que toda a propaganda produzida por uma mentalidade contrária à família, por intermédio da mídia (cinema, televisão, imprensa), mesmo tendo a sua disposição meios tão poderosos, não impediu que muitas pessoas continuem a ter uma experiência positiva da família. Diante dessa impressionante arregimentação de forças midiáticas e ideológicas, poderia parecer inevitável que a família deixasse de interessar. Ao contrário disso, dá-se um fato que somos obrigados a reconhecer quase com surpresa: esse aparato impressionante demonstrou não ser mais forte que a experiência elementar que muitos de nós viveram em sua família, a experiência inextirpável de um bem. Um bem pelo qual somos gratos e que queremos transmitir às futuras gerações, para compartilhá-lo com elas.
Por outro lado, porém, esse bem que experimentamos não conseguiu deter socialmente as tentativas de transformar o matrimônio em formatos diferentes. Devemos acrescentar a isso um dado não menos significativo: esse processo teve início num momento em que a esmagadora maioria das leis relativas ao casamento defendia a concepção tradicional derivada do cristianismo. Toda essa legislação não impediu que se difundisse uma mentalidade contrária ao matrimônio; não foi capaz de evitar a mudança.
Como isso pôde acontecer? Como é possível que a clareza alcançada a respeito da natureza do matrimônio, que se confirmou ao longo de séculos, tenha sido posta em discussão em tão pouco tempo e de uma forma tão generalizada? Procurar entender a situação em que nos encontramos parece-me particularmente decisivo para que possamos dar-lhe uma resposta.
Em sua última encíclica, Spe salvi, Bento XVI ofereceu-nos uma chave para a compreensão do que vem acontecendo, ao afirmar que “um progresso por adição só é possível no campo material. Aqui, no conhecimento crescente das estruturas da matéria e nas correlativas invenções cada vez mais avançadas, verifica-se claramente uma continuidade do progresso rumo a um domínio sempre maior da natureza. Mas, no âmbito da consciência ética e da decisão moral, não há tal possibilidade de adição, simplesmente porque a liberdade do homem é sempre nova e deve continuamente tomar as suas decisões. Nunca aparecem simplesmente já tomadas para nós por outros – neste caso, de fato, deixaríamos de ser livres. A liberdade pressupõe que, nas decisões fundamentais, cada homem, cada geração seja um novo início” .
Novo início. Será difícil encontrar uma expressão mais adequada para descrever o presente. Se cada momento é um novo início pelo fato de a liberdade estar nele implicada, o nosso é propriamente um novo início porque aquilo que era transmitido sem discussão de uma geração a outra já não existe. É um novo início, porque não podemos dar por óbvio nada do que até pouco tempo atrás era considerado claro para todos. É preciso recomeçar do princípio.
Pensando bem, nossa situação não é muito diferente da do início. Basta lembrar a reação dos discípulos na primeira vez em que ouviram Jesus falar do casamento. “Então alguns fariseus aproximaram-se de Jesus, e perguntaram, para o tentar: ‘É permitido ao homem despedir sua esposa por qualquer motivo?’ Jesus respondeu: ‘Nunca lestes que o Criador, desde o início, os fez homem e mulher, e disse: por isso o homem deixará pai e mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne? De modo que eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe’. [...] Os discípulos disseram a Jesus: ‘Se a situação do homem com a mulher é assim, não vale a pena casar-se’” . Não nos devemos surpreender, portanto. O que parece impossível a muitos de nossos contemporâneos hoje, e muitas vezes a nós mesmos, parecia impossível também para os discípulos.
Isso não significa que de nada vale tudo o que aprendemos ao longo de uma história milenar; mas essa riqueza acumulada não se transmite mecanicamente. Prossegue o Papa: “Certamente as novas gerações, tal como podem construir sobre os conhecimentos e as experiências daqueles que as precederam, podem haurir do tesouro moral da humanidade inteira. Mas podem também recusá-lo, pois este não pode ter a mesma evidência das invenções materiais. O tesouro moral da humanidade não está presente como o estão os instrumentos que se usam; ele existe como convite à liberdade e como sua possibilidade” . A transmissão, no campo moral, não é tão fácil, pois seus conteúdos não podem ter a mesma evidência das descobertas científicas. O tesouro moral é um convite à liberdade.
Por isso, devemos deixar de sonhar com “sistemas tão perfeitos em que o bem seja de todo dispensável” . Isso serve antes de mais nada para nós, que não somos diferentes da maioria. Dolorosamente, constatamos como há muitos amigos entre nós que não conseguem ficar firmes diante das muitas dificuldades externas e internas que atravessam. Quanto a nós mesmos, não é suficiente conhecer a verdadeira doutrina sobre o matrimônio para resistir a todos os desafios da vida. O Papa também nos recordou isso: “As boas estruturas ajudam, mas por si sós não bastam. O homem não poderá jamais ser redimido simplesmente a partir de fora” .
Recuperar o eu
Sendo assim, como pode acontecer esse novo início desejado por Bento XVI? O caminho não pode ser outro, senão o sugerido pelo Fausto de Goethe: “O que herdaste de teus pais, recupera-o, para possuí-lo” . Para recuperar a experiência amorosa, é preciso voltar a sua origem, de modo a redescobrir sua verdadeira natureza. Só essa experiência pode ser um ponto de partida adequado para que consigamos perceber dentro dela mesma o valor que a proposta de Cristo tem para o amor entre os esposos.
Os esposos são dois sujeitos humanos, um eu e um tu, um homem e uma mulher, que decidem caminhar juntos rumo ao destino, rumo à felicidade. A maneira como vivem seu relacionamento, como o concebem, depende da imagem que cada um tem de sua vida, da realização de si. Isso implica uma concepção do homem e de seu mistério. Afirma o Papa: “A questão da justa relação entre o homem e a mulher afunda as suas raízes dentro da essência mais profunda do ser humano e pode encontrar a sua resposta só a partir dela. Isto é, não pode estar separada da pergunta antiga e sempre nova do homem sobre si mesmo: quem sou? O que é o homem?”
Por isso, a primeira ajuda que pode ser oferecida a todos os que querem unir-se em matrimônio é no sentido de que tomem consciência do mistério de ser homens. Só dessa maneira poderão focar adequadamente sua relação, sem esperar dela algo que, pela própria natureza, ninguém pode dar a um outro. Quanta violência, quanta decepção poderiam ser evitadas na relação matrimonial, se fosse compreendida a natureza própria da pessoa!
Essa falta de consciência do destino do ser humano leva a fundamentar todo o relacionamento num engano, que podemos formular sinteticamente desta forma: a convicção de que o tu possa tornar feliz o eu. A relação entre um casal, dessa forma, se transforma num refúgio, tão desejado quanto inútil, para resolver o problema afetivo. Quando o engano se manifesta, a decepção é inevitável, pois o outro não cumpriu a expectativa. Mas a relação matrimonial não pode ter outro fundamento, senão a verdade de cada um de seus protagonistas.
Como é que estes podem descobrir sua verdade, o mistério de ser homens?
A dinâmica do novo início:
beleza, sinal, promessa
A própria relação amorosa contribui de maneira precípua para a descoberta da verdade do eu e do tu; e, com a verdade do eu e do tu, manifesta-se a natureza da vocação comum.
O que somos nos é revelado com clareza pela relação com a pessoa amada. Nada nos desperta tanto, nos torna tão conscientes do desejo de felicidade que nos constitui, quanto a pessoa amada. Sua presença é um bem tão grandioso, que nos faz perceber a profundidade e a verdadeira dimensão desse desejo: um desejo infinito. Podemos aplicar à relação amorosa, por analogia, o que Cesare Pavese diz do prazer: “O que o homem busca nos prazeres é um infinito, e ninguém jamais renunciaria à esperança de alcançar essa infinitude” . Um eu e um tu limitados suscitam, um no outro, um desejo infinito e se veem lançados por seu amor na direção de um destino infinito. Nessa experiência, revela-se a ambos a própria vocação.
E, no mesmo momento em que nos são reveladas as dimensões ilimitadas do nosso desejo, nos é oferecida uma possibilidade de realização. Mais ainda: vislumbrar na pessoa amada a promessa da realização acende em nós todo o potencial infinito do desejo de felicidade. Por isso, não existe nada que nos faça compreender melhor o mistério de sermos homens que a relação entre um homem e uma mulher, como nos lembrou Bento XVI na Encíclica Deus caritas est: “O amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo [...]; comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam” . Nessa relação, o ser humano parece encontrar a promessa que o faz superar seus limites e lhe permite alcançar uma plenitude incomparável, uma vez que “na raiz de toda a realidade viva está a esponsalidade. É a esponsalidade que torna tudo promessa, como a própria palavra diz: esponsal significa uma realidade promissora, que promete” . Assim, a história da humanidade – mesmo com todas as suas diferentes expressões – sempre instituiu uma relação entre o amor e o divino: “O amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e totalmente diferente do dia a dia da nossa existência” .
Trata-se exatamente da experiência que Giacomo Leopardi expressa de um modo inesquecível em seu hino a “Aspásia”: “Mulher, ao meu pensar se deparou/ Qual um raio divino a tua beleza” . A beleza da mulher é percebida pelo poeta como um raio divino, como a presença do divino. Por meio da beleza da mulher, é Deus que bate à porta do homem. Se o homem não compreende a naturalidade desse chamado e não arrisca segui-lo, dificilmente pode compreender profundamente seu destino de infinitude e de felicidade.
A mulher, com seus limites, desperta no homem, também limitado, um desejo de plenitude desproporcional à capacidade que ela tem de responder a esse desejo. Suscita uma sede que é incapaz de extinguir. Suscita uma fome que não encontra resposta naquela que a despertou. Daí vem a raiva, a violência, que muitas vezes despontam entre os esposos, e a decepção a que acabam por se render, se não compreendem a verdadeira natureza de seu relacionamento.
A beleza da mulher, na realidade, é raio divino, sinal que remete para além, para outra coisa maior, divina, incomensurável em relação a sua natureza limitada, como descreve Romeu no drama de William Shakespeare: “Mostra-me uma mulher que é mais que bonita; sua beleza só me servirá de lembrete, um lembrete em que poderei ler a beleza daquela que é ainda mais linda que a mulher que me mostraste” . Sua beleza grita: “Não sou eu. Sou somente um lembrete. Veja! Veja! O que é que lembro a você?”
Essa é a dinâmica do sinal, da qual a relação entre o homem e a mulher constitui um exemplo comovente. Quanto mais estes vivem a presença do amado como sinal de outra coisa – que é a verdade do amado -, mais esperam e anseiam por essa outra coisa.
Se o homem não compreende essa dinâmica, cai no erro de deter-se na realidade que suscitou o desejo. Como se a mulher que recebe um buquê de flores, encantada com sua beleza, se esquecesse do rosto de quem o mandou, e do qual as flores são sinal, perdendo o melhor que as flores trazem. Não reconhecer no outro o seu caráter de sinal leva inevitavelmente a reduzi-lo ao que aparece aos nossos olhos. Cedo ou tarde, se manifesta a sua incapacidade de responder ao desejo que suscitou.
Por isso, se cada um não encontra aquilo a que o sinal remete, o lugar em que pode encontrar a realização da promessa que o outro suscitou, os esposos estão condenados a serem consumidos por uma pretensão da qual não conseguem se libertar, e seu desejo de infinito, que nada desperta tanto quanto a pessoa amada, está fadado a permanecer sempre insatisfeito. Diante dessa insatisfação, a única saída que muitos enxergam hoje é trocar de marido ou de esposa, dando início a uma espiral em que o problema é adiado até a decepção seguinte.
Mas entrar nessa espiral não pode ser a única saída. Este é o paradoxo do amor entre o homem e a mulher: dois infinitos se encontram com dois limites; duas necessidades infinitas de ser amados se encontram com duas frágeis e limitadas capacidades de amar. Só no horizonte de um amor maior eles não se consomem na pretensão e não se resignam, mas caminham juntos para uma plenitude da qual o outro é sinal. Só no horizonte de um amor maior é possível evitar que a pessoa seja consumida pela pretensão, carregada de violência, de que a outra, que é limitada, responda ao desejo infinito que desperta, pretensão que torna impossível a realização de si e da pessoa amada. Para descobrir esse amor, é preciso que estejamos dispostos a seguir a dinâmica do sinal, ficando abertos à surpresa que esta pode nos reservar.
Leopardi teve a coragem de correr esse risco. Com uma intuição penetrante da relação amorosa, o poeta italiano vislumbra que o que buscava na beleza das mulheres por quem se apaixonava era a Beleza, com B maiúsculo. No ponto mais alto de sua intensidade humana, o hino “A sua dama” expressa todo o seu desejo de que a Beleza, a ideia eterna da Beleza, assuma uma forma sensível. Foi o que aconteceu em Cristo, o Verbo feito carne. Por isso Luigi Giussani definiu essa poesia como “uma profecia da Encarnação” .
Neste contexto, podemos compreender a inaudita proposta de Jesus, que tem por finalidade que a experiência mais bonita da vida, apaixonar-se, não decaia até se transformar em algo sufocante.
Essa é a pretensão de Jesus, que encontramos em algumas passagens do Evangelho que à primeira vista podem nos parecer paradoxais. “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer a paz, mas sim a espada. De fato, vim separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua sogra. E os inimigos do homem serão os seus próprios familiares. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim. Quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim. Quem não toma a sua cruz e não me segue não é digno de mim. Quem procura conservar a sua vida vai perdê-la. E quem perde a sua vida por causa de mim vai encontrá-la. Quem vos recebe a mim recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou” .
Nesse texto, Jesus se apresenta como o centro da afetividade e da liberdade do homem. Pondo a si mesmo no âmago dos sentimentos naturais, assume o lugar que lhe é de direito, como sua verdadeira raiz. Dessa forma, Jesus revela o alcance da promessa que sua pessoa constitui para todos os que o deixam entrar. Não se trata de uma ingerência de Jesus na esfera dos sentimentos mais íntimos, mas da maior promessa que o homem já pôde receber: sem amar a Cristo (ou seja, a Beleza que se fez carne) mais que à pessoa amada, a relação com a pessoa amada definha, pois Cristo é a verdade dessa relação, a plenitude a que um remete o outro, e na qual sua relação se realiza. Somente permitindo que Cristo entre nesse relacionamento é que é possível que a relação mais bonita que pode existir na vida não se corrompa e, com o tempo, morra. Essa é a audácia da Sua pretensão.
Como foi que Jesus respondeu ao espanto dos discípulos diante da verdade sobre o matrimônio que Ele lhes estava anunciando? Podemos dizê-lo com uma fórmula: fazendo o cristianismo. Ele não parou no anúncio da verdade do matrimônio, mas introduziu uma novidade na vida deles que lhes tornou possível vivê-lo de acordo com aquela verdade.
Podemos ver o quanto essa novidade é algo real e correspondente à natureza do homem pelo fato de podermos apostar nela a vida inteira. É a isso que a tradição cristã chama virgindade.
Matrimônio e virgindade
Diante da reação estupefata dos discípulos ante a natureza original do matrimônio, que vimos antes, Jesus responde com uma frase que pode parecer ainda mais enigmática: “Jesus respondeu: ‘Nem todos são capazes de entender isso, a não ser aqueles a quem é concedido. Com efeito, existem homens incapazes para o casamento, porque nasceram assim; outros, porque os homens assim os fizeram; outros, ainda, se fizeram incapazes disso por causa do Reino dos Céus. Quem puder entender, entenda” .
Nessas palavras, Jesus acrescenta uma nova categoria de eunucos às que já eram conhecidas: a dos que se fazem eunucos pelo Reino dos Céus. Obviamente, trata-se da livre escolha de renunciar a casar-se que fazem aqueles a quem foi concedido reconhecer o valor único do Reino dos Céus. Ao comentar esse trecho, João Paulo II teve a oportunidade de se expressar assim: “No chamado à continência ‘pelo Reino dos Céus’, os próprios Discípulos, em primeiro lugar, e toda a viva Tradição, em seguida, logo descobrirão o amor que tem por referência o próprio Cristo como Esposo da Igreja e Esposo das almas, às quais doou a si mesmo até o fim, no mistério da sua Páscoa e na Eucaristia. Assim, a continência ‘pelo Reino dos Céus’, a opção pela virgindade ou pelo celibato para a vida inteira, tornou-se, na experiência dos discípulos e dos seguidores de Cristo, um gesto de resposta particular ao amor do Divino Esposo, e por isso adquiriu o significado de um ato de amor esponsal, ou seja, de uma doação esponsal de si, com a finalidade de retribuir de modo especial o amor esponsal do Redentor; uma doação de si, entendida como renúncia, mas feita sobretudo por amor” .
À luz dessas palavras, podemos entender o que é a virgindade: a nova relação, absolutamente gratuita, que Cristo introduziu na história. A virgindade é viver as coisas segundo a sua verdade. E como foi que a virgindade entrou no mundo? Como imitação de Cristo, ou seja, como imitação da maneira de viver de um homem que era Deus. Nenhuma outra razão pode sustentar uma coisa tão grande como a virgindade enquanto modo de viver a existência, a não ser a identificação com a forma pela qual Cristo possuía a realidade, ou seja, segundo a vontade do Pai.
A pessoa de Jesus é um bem tão grande e precioso, que Ele é o único que corresponde plenamente à sede de felicidade do homem. Essa correspondência única, que a pessoa d’Ele constitui para quem O encontra, torna possível uma relação com a realidade absolutamente gratuita. É por isso que quem abraça a virgindade consegue estar livre para não se casar.
De que forma as pessoas chamadas à virgindade contribuem para o reino de Deus? Os chamados à virgindade foram escolhidos para que “gritem diante de todos, a todo instante – toda a sua vida é feita para isto – que Cristo é a única coisa pela qual valha a pena viver, que Cristo é a única coisa pela qual valha a pena que o mundo exista. [...] Este é o valor objetivo da vocação: a forma da sua vida entra em jogo no mundo por Cristo, luta no mundo por Cristo. A própria forma da sua vida! [...] É uma vida que como forma grita: ‘Jesus é tudo’. Gritam isso diante de todos, de todos aqueles que os veem, de todos aqueles que com eles se deparam, de todos aqueles que os ouvem, de todos aqueles que olham para eles” .
A vocação à virgindade está estritamente ligada à vocação ao matrimônio. Respondendo ao chamado, os virgens gritam aos casados a verdade de seu amor. Acompanhemos novamente João Paulo II: “À luz das palavras de Cristo, como também à luz de toda a autêntica tradição cristã, é possível deduzir que essa renúncia é ao mesmo tempo uma forma particular de afirmação desse valor, do qual a pessoa que não se casa se abstém coerentemente, seguindo o conselho evangélico. Isso pode parecer um paradoxo. Sabemos, todavia, que o paradoxo acompanha numerosos enunciados do Evangelho, muitas vezes os mais eloquentes e profundos. Ao aceitar um significado como esse para o chamado à continência ‘pelo Reino dos céus’, tiramos uma conclusão correta, se afirmamos que a realização desse chamado serve também – e de modo particular – para a confirmação do significado esponsal do corpo humano, em sua masculinidade e feminilidade. A renúncia ao matrimônio pelo reino de Deus evidencia esse significado, a um só tempo, em toda a sua verdade interior e em toda a sua beleza pessoal. Podemos dizer que essa renúncia por parte dos indivíduos, homens e mulheres, é em certo sentido indispensável para que o próprio significado esponsal do corpo seja mais facilmente reconhecido em todo o ethos da vida humana e sobretudo no ethos da vida conjugal e familiar” .
A virgindade é a autêntica esperança para os casados; é a raiz da possibilidade de viver o matrimônio sem pretensões e sem enganos: “Por força deste testemunho, a virgindade mantém viva na Igreja a consciência do mistério do matrimônio e defende-o de todo desvio e de todo empobrecimento” .
“Por isso, a virgindade é a virtude cristã ideal de qualquer relacionamento, até mesmo do relacionamento entre um homem e uma mulher casados. De fato, o ponto mais alto de sua relação, o momento culminante de seu relacionamento é aquele em que se sacrificam, não aquele em que expressam sua posse. E isso porque, em razão do pecado original, agarrar leva a escorregar. É como se a pessoa desejasse uma coisa e corresse para essa coisa e, quando está bem perto, corresse tanto que esborrachasse o nariz contra essa coisa: a pessoa escorrega, tropeça. É por isso que nós dizemos que a virgindade é uma posse que carrega em si uma distância” . A posse verdadeira que experimentamos é uma posse que carrega em si uma distância.
O lugar da família:
comunidades cristãs vivas
Logo, fica evidente, com toda a sua importância, a tarefa da comunidade cristã: favorecer uma experiência do cristianismo, para a plenitude de vida de cada um. Só no âmbito dessa relação maior é possível não se devorar, pois cada um encontra nela a sua realização humana, surpreendendo em si mesmo uma capacidade de abraçar o outro na sua diversidade, a capacidade de uma gratuidade sem limites, de um perdão sempre renovado.
Sem comunidades cristãs capazes de acompanhar e sustentar os esposos em sua aventura, será difícil, senão impossível, que eles a concluam de maneira feliz. Os esposos, por sua vez, não podem eximir-se do trabalho de uma educação – da qual são os principais protagonistas -, como se pensassem que pertencer à comunidade eclesial os livre das dificuldades. Dessa forma, revela-se plenamente a natureza da vocação matrimonial: caminhar juntos na direção do Único que pode responder à sede de felicidade que o outro desperta constantemente em mim, ou seja, na direção de Cristo. Assim, as pessoas evitarão passar de marido em marido sem conseguir satisfazer seu desejo autêntico, como fez a Samaritana. A consciência de sua incapacidade de resolver seu drama sozinha – nem trocando de marido cinco vezes! – fez que ela percebesse Jesus como um bem tão desejável, que não podia deixar de gritar: “Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede” .
Consciente da situação atual, Bento XVI afirma a necessidade de “que as famílias não estejam sós. Um pequeno núcleo familiar pode encontrar obstáculos difíceis de superar se se acha isolado do resto dos seus parentes e amizades. Por isso, a comunidade eclesial tem a responsabilidade de oferecer acompanhamento, estímulo e alimento espiritual que fortaleçam a coesão familiar, sobretudo nas provações ou momentos críticos. Neste sentido, é muito importante o trabalho das paróquias, assim como das diversas associações eclesiais, chamadas a colaborar como redes de apoio e auxílio à Igreja para o crescimento da família na fé” . Esse convite cheio de ternura e de realismo é ao mesmo tempo a indicação de uma tarefa: a família enquanto tal precisa de um lugar para viver, e esse lugar só pode ser constituído por comunidades cristãs que por sua vez vivam em plenitude contemplativa e ativa a sua fé. Numa entrevista, Giussani utilizava a seguinte imagem: “Um povo nasce de um acontecimento, constitui-se como realidade que quer afirmar-se em defesa da sua vida típica contra quem o ameaça. Imaginemos duas famílias que vivem em palafitas no meio de um rio que vai enchendo. A unidade dessas duas famílias, e depois de cinco, de dez famílias, à medida que vão crescendo as gerações, é uma luta pela sobrevivência e, em última instância, uma luta para afirmar a vida. Sem querer, elas afirmam um ideal que é a vida. Assim, as pessoas que afirmam referir-se a um povo consideram inexoravelmente positiva a vida. Pelo conhecimento racionalmente empenhado que tenho da vida do indivíduo e da sociedade, essas condições da ideia de povo tocam o vértice de concepção e de realização no anúncio do fato cristão, no qual, para nós, se realiza aquilo que caracterizou, ao longo de toda a sua história, o grande ethos do povo judeu e a sua propensão a mudar a Terra” .
O pertencer de um ser humano a sua família se dilata, então, no pertencer à Igreja e, portanto, no pertencer àquele pedacinho de Igreja em que cada um de nós experimenta a presença universal de Cristo. Estreitar uma unidade fraternal, criar moradas acolhedoras: essas constituem a maior contribuição que os cristãos podem dar para favorecer e acompanhar a experiência da família como um caminho que não se esgota rumo à plenitude constituída por Cristo. “A superação da solidão na experiência do Espírito de Cristo não apenas aproxima o homem dos outros, mas o escancara a eles desde as profundezas do seu ser. [...] A comunidade se torna essencial para a própria vida de cada um. [...] O ‘nós’ se torna plenitude do ‘eu’, lei da realização do ‘eu’” .
Sem a experiência de plenitude humana que Cristo torna possível, o ideal cristão do matrimônio se reduz a algo impossível de ser realizado. A indissolubilidade e a eternidade do amor parecem quimeras inalcançáveis. Na realidade, estas são frutos tão gratuitos de uma intensidade de experiência de Cristo, que os próprios esposos as veem com surpresa, como o testemunho de que, realmente, “para Deus nada é impossível” . Só uma experiência como essa pode mostrar hoje a racionalidade da fé cristã, uma realidade que corresponde totalmente ao desejo e às exigências do homem, também no matrimônio e na família.
Esse testemunho é a contribuição que os casais cristãos podem dar hoje ante as adversidades em que se encontram tantos de seus concidadãos. É um testemunho gratuito, que desafiará a razão e a liberdade daqueles que, procurando uma resposta autêntica a sua exigência de felicidade, não conseguem encontrá-la. É um testemunho que procuramos dar conscientes de que “trazemos esse tesouro em vasos de barro, para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós” .
(traduzido por Durval Cordas)
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