Duzentos e trinta peregrinos. Sessenta quilômetros de Campos do Jordão até Aparecida. Uma peregrinação para ajudar a ter diante dos olhos, a cada dia, pessoas vivas que testemunham Cristo
Camilo, de Aracaju, encontrou por acaso o livro É possível viver assim?, ficou fascinado por Giussani e depois de algum tempo procurou por Comunhão e Libertação na internet, chegando à comunidade de Salvador. No último dia 15 de julho, ele, junto com sua esposa Ana Paula e os conterrâneos Ailton e Lucas, partiram de Campos do Jordão, junto com o grupo de 230 pessoas, rumo a Aparecida do Norte. Foram 60 km de caminhada. No segundo dia, ele contou toda a sua história e o que lhe aconteceu depois deste encontro. Falou sobre como, a partir daquela leitura e, depois, na amizade com Otoney, ele se descobriu mudado e mais feliz. Hoje, Camilo se encontra regularmente para fazer Escola de Comunidade na sua cidade e quarenta pessoas já frequentam as reuniões. A sua história foi um dos testemunhos que acompanharam a primeira peregrinação promovida pelo Movimento no Brasil, para os universitários e jovens trabalhadores. As pessoas chegaram de todas as partes do país, desde Manaus até Belo Horizonte, de Brasília a São Paulo... totalizando treze cidades. Também participaram dezoito amigos do Paraguai, a maioria estudantes do ensino médio, que disseram sim ao convite de padre Aldo, desejando ficar perto de seus amigos Cleuza e Marcos Zerbini.
DISPONIBILIDADE A SEGUIR. Guiando o caminho, estava padre Julián de La Morena, o responsável nacional pelos universitários, que este ano, para as férias de julho, desejou realizar um gesto educativo para os jovens. Propôs a peregrinação: quatro dias de caminhada, com missa cotidiana, silêncio, oração, cantos e testemunhos. Todos os dias se repetiu a canção É bella la strada (É bonito o caminho), de Claudio Chieffo, e no final da noite cantava-se em coro o Non Nobis (Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Teu nome seja dada a Glória). Para as refeições, o grupo contou com o enorme trabalho gratuito de Cleuza e uma dezena de amigos da Associação dos Trabalhadores Sem Terra. Eles preparavam o café da manhã, arrumavam os lanches para o almoço e cuidavam também do jantar. Outros amigos da comunidade de São Paulo também ajudaram a organizar o camping e o transporte das malas em um caminhão. Na partida, nem todos se conheciam e cada um caminhava por si. Mas chegaram formando um único povo, unidos em direção ao Santuário para se colocarem de joelhos diante de Nossa Senhora. Felipe, de Petrópolis, conta: “No domingo, cruzamos o Rio Paraíba e entramos em Aparecida. Todos nos olhavam, pois mesmo com a grande quantidade de romeiros na cidade, algo saltava aos olhos naquele grupo que continuava a marchar: a felicidade! Continuávamos a mancar, bolhas nos pés, alguns com varas nas mãos, todos com mochilas nas costas, bandeiras ao alto, cruz à frente e lá estávamos nós no pátio da Basílica de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Aquela que guiou nosso caminho, Aquela que rezou por cada um de nós, Aquela pela qual a Salvação entrou no mundo e Aquela que entendeu tudo com uma única e simples palavra, o ‘sim’. Foi uma grandiosa aventura até chegarmos ao Santuário de Aparecida. Tudo de belo já tinha acontecido, tudo a nós já fora dado no caminho. Eu quero viver. Quero deixar latente em mim a imensidão desses dias. Quero lembrar sempre e continuar a grande peregrinação da vida sem medo. Quero ter a dor como amiga, a vida como drama e aceitar as dificuldades, sabendo que até delas a Presença que nos move vai trazer um bem.”
O EU EM AÇÃO. A temática, ao longo do percurso, era a mesma dos Exercícios da Fraternidade, Da fé, o método: um trabalho que foi ajudado com as assembleias diárias em que, livremente, os jovens contavam a experiência que tinham feito durante aquele dia. Jasmin, do Paraguai, tem por volta de 40 anos, quase todos passados no ódio pelo regime ditatorial que assassinou seu pai. Um dia, há seis anos, teve necessidade de ir à Igreja, e decidiu fazer um curso sobre o Espírito Santo. Pouco depois, visitando a paróquia de São Rafael, encontrou padre Aldo, que vendo-a ali fez um convite para a Escola de Comunidade. Ela aceitou e começou a ficar perto dele e da comunidade. Hoje, Jasmin é diretora da “Casinha de Belém”, obra em que se acolhem crianças órfãs e doentes de Aids. Recentemente, um dos generais do ditador Stroessner voltou ao Paraguai e reencontrou as famílias das vítimas. Ela foi vê-lo, acompanhada por padre Aldo. “Eu não tinha mais ódio por ele, mas amor. Tinha pena e dor, mas não ódio. Pedi isso nestes anos e Ele me atendeu, pois somente Deus pode transformar o ódio em amor”, contou durante o caminho para Aparecida. Depois de seu testemunho, se retomou a viagem com a recitação do terço, e uma estudante de Salvador contou que se surpreendeu rezando pelos bandidos que infernizam a sua vida no bairro pobre em que vive: “Eu sempre tive raiva deles, pois me prejudicam, e não pensava que um dia iria rezar por eles”, contou depois na assembleia. “Este é o trabalho”, afirmou padre Julián, “uma pessoa se surpreende com um fato de que acontece”. Ela ouviu a história de Jasmin e o seu coração se moveu de um modo que ela nem sabia que fosse possível. Cristiane, de Belo Horizonte, diz: “Durante a peregrinação, cada testemunho, cada trechinho da Escola de Comunidade, me ajudaram a tirar a anestesia da minha vida. O que mais me tocou foi ouvir o Marcos e a Cleuza no sábado, porque eu me sentia fazendo muitas coisas, as coisas iam até bem, consegui entregar tudo no trabalho antes de viajar, esse semestre tive as melhores notas e minha média foi lá no alto..., mas me sentia só fazendo coisas. E a Cleuza falava que, quando encontrou o Alexandre, eles já estavam cansados, e se sentia um trator desgovernado. E era o que eu sentia. Mas eu podia dizer ‘Que bonito! é assim que me sinto’ e voltar pra casa... Mas, o Marcos disse que não adianta só olhar para a experiência que o outro está fazendo, é preciso parar e se perguntar: ‘E eu, que trabalho tenho feito para viver assim também?’. E depois, enquanto caminhávamos, lemos um trecho que dizia: ‘O que falta não é a Presença (estamos rodeados por sinais, testemunhas), falta o humano’. E me dei conta de que o meu cansaço e desânimo não é porque faço muitas coisas, mas porque falta um trabalho, falta julgar as coisas que faço. E não é fácil admitir isso, porque parece que não estou fazendo experiência de nada; mas, por outro lado, é como acordar para a vida de novo. E agora é um trabalho para não me deixar anestesiar de novo, e viver cada circunstância como uma graça dada.”
O COMEÇO DE UM CAMINHO. No sábado uniram-se quarenta e uma pessoas ao grupo. Neste dia o calor foi muito forte e cerca de trinta pessoas sentiram-se mal e não conseguiram terminar o percurso. Os estudantes de medicina, que já estavam em ação desde o primeiro dia, intensificaram seus trabalhos, junto com algumas enfermeiras mais experientes. E foi um momento de grande maravilhamento quando os peregrinos, com muito esforço, chegaram ao acampamento, tendo levado o pedido de todos os que se sacrificaram parando no caminho, encontraram suas barracas montadas por eles. Luiz, de Manaus, afirma: “Fiquei impressionado como no dia de maior cansaço foi o dia de maior alegria. Naquela noite as pessoas cantaram melhor e tinha um clima de festa”.
Passo após passo, o cansaço fez aflorar o pior e o melhor de cada pessoa, dentro da partilha, também difícil, de cada detalhe, do agasalho para o frio à comida, do remédio às perguntas sobre a própria vida. E na reta final, bem próximo ao santuário, padre Julián pediu a cada um que desse um abraço na pessoa mais próxima, pedindo perdão por tudo. Um gesto da tradição da Igreja, que “não tem medo dos erros”. Nos últimos quilômetros, Bracco, responsável nacional do Movimento no Brasil, carregou a cruz que ia à frente de todo o grupo. Via-se a Basílica ficar cada vez mais próxima e em vez de dois pequenos grupos, como nos dias anteriores, fez-se um único grupo, ao qual se uniram alguns ginasiais de São Paulo, que faziam férias ali perto. Passando pela imagem de Aparecida, todos se dirigiram à missa no Santuário, com o pedido de poder viver cada dia com a mesma intensidade dos dias que se passaram.
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TESTEMUNHO
O milagre do perdão
Durante a peregrinação dos universitários e jovens trabalhadores a Aparecida, em julho de 2009, Jazmín Giuburú, contou sua história. A seguir o seu relato
Em 1954, meu pai era um reconhecido médico traumatologista, no Paraguai. Alfredo Strossner assumiu o poder no país e começou uma repressão muito grande. Todos aqueles que iam contra seu governo eram perseguidos. Meu pai começou a receber, no seu hospital, cadáveres de pessoas que tinham sido torturadas e ele se recusou a assinar os atestados de óbitos como morte natural. Ali começou a perseguição à minha família, que era composta por meus pais e meus dois irmãos mais velhos, que tinham 3 e 5 anos. Os policiais invadiram nossa casa e reviram tudo para os assustar. Assim, meu pai decidiu exilar-se na Argentina, na cidade de Encarnación, bem de frente ao Rio Paraná. Meu pai começou a recolher cadáveres de pessoas torturadas que vinham pelo rio do lado paraguaio. Ele começou a publicar denúncias nos jornais. Strossner se irritou muito e tornou a infernizar a nossa vida.
Eu nasci em 1967, quando assumiu no Paraguai o Ministro do Interior, Montanaro. Em 1969, meu pai sofreu o primeiro seqüestro. Ele estava pescando no rio com meu irmão de 11 anos e os dois foram levados. Meu irmão foi devolvido em uma semana, mas meu pai foi levado ao Paraguai e ficou preso durante um ano. Quando ele viu que não seria julgado nem libertado ele conseguiu fugir, sendo ajudado por alguns amigos. A Embaixada do Chile lhe deu asilo e depois ele voltou para a Argentina para ficar com a família. Tentaram me seqüestrar também, minha tia também foi perseguida e acabou tendo o bebê na prisão. A polícia toda noite cercava a nossa casa e eu vivia com muito medo. Então nós fugimos e ficamos escondidos em outra cidade. Retomamos a vida e pensávamos estar a salvo. Não sabíamos que o Governo de Strossner utilizava um plano de intercâmbio de presos políticos na América Latina, que era o Plano Condor, unindo Paraguai, Argentina, Brasil e Uruguai. Então, no dia 9 de fevereiro de 1977, quando meu pai voltava do trabalho, seu carro foi interceptado por outro com quatro homens. As testemunhas relatam que ele foi golpeado na nuca, o colocaram no porta mala e ele desapareceu.
Aí começou a luta de minha mãe pelos Direitos Humanos, na Argentina, e começamos a buscá-lo por toda parte, mas não podíamos voltar ao Paraguai. Um dia, quando olhávamos no jornal a lista dos presos políticos libertados, eu me deparei com uma oração muito bonita em que pedia que perdoássemos a todos.
Hoje eu me dou conta que aquele foi o momento em que Espírito Santo começou a trabalhar dentro de mim. Em 1989 cai o Governo. Montanaro, foi em exílio para o Honduras e Strossner se escondeu em Brasília. Eu voltei a viver no Paraguai junto com minha mãe e meus irmãos e começamos a buscar mais ainda meu pai. Saiu um relatório, chamado “relatório do terror”, com a descrição da perseguição a mais de 140 mil paraguaios mortos ou desaparecidos.
Naquela época eu sentia muito ódio, muito rancor e queria vingança. Eu estava perdida e não sabia o que fazer, até que um dia resolvi ir à missa na Igreja São José Operário e decidi fazer um curso sobre a vida no Espírito Santo. Eu não conhecia nada e sabia rezar só o Pai Nosso. Aquele que conduzia o curso nos disse para olhar Jesus na Cruz e trocar o rosto d’Ele por aquele das pessoas que mais odeiam. Eu fiquei olhando aquele rosto e ele foi se mudando por aqueles que foram os responsáveis pelo desaparecimento de meu pai. A partir deste dia o ódio em mim foi mudando. Comecei a me aproximar da Igreja, comecei a rezar e a aprender.
Há seis anos eu fui visitar a paróquia de São Rafael e conheci o padre Aldo Trento. Ele me olhou, me cumprimentou e sem nem me conhecer me convidou para a Escola de Comunidade. Eu não sabia o que era, mas desde então eu continuo acompanhando os trabalhos da paróquia com padre Aldo. Primeiro com os doentes na clínica, depois cuidando da home page e há um ano e meio sou diretora administrativa da “Casinha de Belém”, que é uma casa que acolhe crianças de 2 a 13 anos. Nestes anos, este rancor e ódio foi se transformando em mim porque, de joelhos, eu pedia que se transformasse em amor. Alguns meses atrás voltou de Honduras o Ministro Montanaro e fui encontrá-lo. Hoje nós sabemos que ele, Strossner e outros oito generais, participaram do sequestro de meu pai e o submeteram a muitos meses de tortura até que o fuzilaram. Quando estava diante dele, padre Aldo me perguntou: “O que você está sentindo?”. E eu lhe disse: “Sinto lástima, sinto amor, não sinto ódio, eu consegui perdoá-lo”. Este é um trabalho muito grande, porque somente Cristo é capaz de transformar um ódio tão grande e a dor de toda uma vida, em amor. Depois, eu disse a padre Aldo: “A partir deste dia eu entendi quem sou e entendi que são as dificuldades da vida que nos transformam em homens. Eu entendi que estes são os caminhos que Ele utiliza para que nós, de joelhos, diante d’Ele, nos convertamos a Ele”. Por isso, estou aqui com vocês para que, compartilhando com vocês, eu possa crescer na fé, e é o que eu peço todos os dias a Cristo: “Senhor, faz-me crescer na fé e no amor”. E posso lhes garantir que quando conseguimos perdoar sentimos no coração uma paz enorme, pois a única paz é a paz de Cristo.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón