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A urgência do juízo

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Apontamentos da síntese de Julián Carrón no encontro de responsáveis dos universitários de Comunhão e Libertação. Milão, 26 de março de 2011

1. A GERAÇÃO DE UM SUJEITO NÃO ALIENADO
Dom Giussani captou o ponto crucial. “Pela minha formação na família e no seminário, primeiro; posteriormente, pela minha meditação, estava profundamente convencido de que uma fé que não pudesse ser descoberta e encontrada na experiência presente, confirmada por esta, útil para responder às suas exigências, não seria uma fé em condições de resistir num mundo onde tudo, tudo, dizia e diz o contrário” (Educar é um risco, Edusc, 2004, p. 16). É por isso que ele sempre insistiu na necessidade, para cada um de nós, de partir da experiência, de constantemente pôr em foco a experiência. Caso contrário ninguém poderá resistir num mundo onde tudo, tudo mesmo, diz o contrário. É a mesma necessidade que, em outros termos, é apontada nas primeiras páginas de O senso religioso, como descobrimos relendo juntos o texto nestes meses: “Não partir de uma investigação existencial seria como pedir a um outro a consistência de um fenômeno que eu vivo. Se não fosse confirmação, enriquecimento ou contestação como consequência de uma reflexão que eu pessoalmente já fiz, o parecer de oltrem seria somente a substituição de um trabalho que me cabe e um veículo de opinião inevitavelmente alienante” (O senso religioso, Ed. Universa, 2009, p. 22). Dom Giussani quer fazer de nós adultos, sujeitos capazes de juízo, não nos quer alienados. É muito significativo, portanto, o que nos diz numa outra passagem de Educar é um risco: “O objetivo da educação é o de formar um homem novo; portanto, os fatores ativos da educação devem tender a fazer com que o educando aja cada vez mais por si mesmo, e sempre mais por si enfrente o ambiente. É preciso então, de um lado, colocá-lo constantemente em contato com todos os fatores do ambiente; de outro, deixar-lhe a responsabilidade da escolha, seguindo uma linha evolutiva determinada pela consciência de que o jovem deverá chegar a ser capaz de, perante tudo, ‘fazer por si’. O método educativo de guiar o adolescente ao encontro pessoal e sempre mais autônomo com toda a realidade que o circunda é tanto mais aplicado quanto mais o jovem se torna adulto. O equilíbrio do educador revela aqui a sua importância definitiva. Com efeito, a evolução da autonomia do jovem representa, para a inteligência e o coração – e também para o amor próprio – do educador um ‘risco’. Por outro lado, é justamente do risco da comparação que nasce no jovem uma personalidade própria no relacionamento com todas as coisas – que a sua liberdade acontece” (Educar é um risco, op. cit, p. 72). É isto que motiva a insistência permanente no juízo, na necessidade de uma comparação entre aquilo que vivemos e o coração. E trata-se de um trabalho tão simples quanto impopular, como vimos. É muito fácil, com efeito, repetir fórmulas ou andar de frase em frase, por mais correta que seja, ou recorrer a outrem para que me dê o suplemento de certeza que eu não tenho. Mas, como sempre lhes digo, têm de decidir se tornam-se adultos ou não, ou seja, se fazem uma experiência que lhes permita encarar o real em virtude do juízo que emerge dessa mesma experiência, ou se ficam cada vez mais à mercê de todos os medos logo que a realidade não coincida com a imagem que se tem na cabeça.

2. A INEVITABILIDADE DO JUÍZO
A primeira coisa que se evidenciou claramente esta manhã é que nós julgamos sempre. Como é que isso se vê? Pelo fato, por exemplo, de termos medo, de ficarmos desorientados ou, pelo contrário, de experimentarmos uma liberdade, vemos em nós uma capacidade de entendimento diferente. Por detrás de todos estes estados de espírito ou efeitos – chamem-lhes como quiserem – no fundo está sempre um juízo: pode ser um juízo que nem a nós mesmos confessamos, mas está lá, a vida “canta-o” a cada momento. O bom da situação que estamos vivendo é que sentimos sempre mais insuportável não fazer caso do juízo: julgar começa a ser uma urgência existencial. Houve portanto uma passagem: de conceber o juízo como uma coisa que se cola, uma complicação acrescentada, uma coisa de que, no fundo, não temos necessidade, da qual podemos prescindir sem que aconteça nada de especial, a conceber e viver o juízo como uma urgência existencial. Vamos partir de alguns exemplos desta manhã.
Lembram-se do que disse o nosso amigo, falando da morte da sua avó e das últimas semanas que passou com ela? Dizia: “As vezes em que tive de passar a noite no hospital, fui invadido por um medo atroz de que tudo aquilo que eu tinha dela à minha frente e, indiretamente, também de mim, pudesse desaparecer no nada. Assim, eu fazia de tudo para fugir de certas perguntas sobre a vida, sobre a minha consistência e, logo que podia, fugia também do hospital. Nos dias seguintes houve uma tentativa inicial de esconder o que tinha acontecido, mas depois não aguentei mais: eram perguntas que continuavam a reaparecer. Finalmente dei-me conta de qual tinha sido o problema: na vida é inevitável estabelecer uma comparação entre o que acontece e algo de si mesmo, mas eu, vendo a minha avó, fazia essa comparação com o medo que tinha e inevitavelmente…”. Foi aqui que eu contestei: “Não, você não fazia a comparação com o medo, porque o medo era já o sinal ou o efeito de uma comparação que tinha feito entre o que se passava com a sua avó e as suas exigências”. O medo não era a origem, mas sim a consequência do juízo que ele tinha feito, quer dizer, a consequência de uma comparação entre as suas exigências e o que acontecia. E o resultado era que aquilo que estava acontecendo – a doença e a morte – para ele era tudo. Mas é precisamente isto que temos de pôr em questão: aquilo que estava acontecendo diante dos seus olhos, ou melhor, aquilo que ele via era tudo? Nós damos por óbvio que sim, sem sequer perceber, e depois pensamos que a comparação é com o medo. Não, o medo é consequência de um juízo, e a verdadeira resistência está em pôr em discussão o juízo, o nosso juízo sobre a realidade, sobre aquilo que existe, quer dizer, se existe ou não alguma outra coisa. Perante uma situação em que a nossa exigência do eterno – referida à pessoa a quem queremos bem – está sem resposta, invade-nos um grande medo, como é normal que aconteça (isto diz, portanto, que somos normais). Se o que você vê é tudo quanto existe, o medo é a consequência última. Mas é aqui que reside a questão: é verdadeiro ou não este juízo? Por onde se vê que não é verdadeiro? Comecemos pelos sintomas. De onde podemos partir para ver se um juízo é verdadeiro? O que um juízo verdadeiro implica? A libertação. Um juízo verdadeiro liberta, e aquele juízo não liberta. Temos, pois, a evidência na experiência de um juízo verdadeiro ou falso.
Logo a seguir acrescentou: “Depois destes dias, que para mim foram dramáticos, compreendi verdadeiramente que ou Cristo é tudo ou então eu decaio”. E eu repliquei de novo: antes de dizer que Cristo é tudo ou não é tudo, devo poder dizer se existe ou não existe. Se não existe, efetivamente, posso até dizer que é tudo, mas a minha vida não se mantém de pé; e não é preciso nenhum tsunami para fazê-la ruir, basta um “tom dissonante”. Existe ou não existe? Devemos ter a noção de que isto é um problema de conhecimento. Convém que o enfrentemos, caso contrário temos sempre a suspeita de sermos nós a inventar o objeto da fé. Como você sabe que não é uma projeção sua aquilo que você diz diante do problema da morte, uma projeção que você faz porque não saberia como gerir o problema de outra forma? Estas são as perguntas que encontramos pela frente, que surgem em você e surgem em mim, e em qualquer pessoa que as “acuse”. Se não chegamos ao ponto de dizer por que motivo não é possível que seja uma projeção, temos sempre dentro o vírus, a dúvida, a suspeita de que, no fundo, no fundo, a fé seja uma criação nossa, não um reconhecimento. És tu que te inventas e projetas a resposta? A fé é uma projeção ou é um reconhecimento?
Retomo uma outra intervenção desta manhã, que trouxe à luz um outro aspecto da mesma questão. “Quando voltava para casa, um amigo meu telefonou para me dizer que uma família de amigos nossos tinha tido o terceiro filho com uma grave malformação no coração (já a primeira filha tinha nascido com problemas gravíssimos). Naturalmente que o anúncio desta situação me abalou, mas uma outra coisa me abalou ainda mais: o telefonema com este meu querido amigo decorreu todo num estranho constrangimento devido ao fato de, ao anunciar-me o que tinha acontecido, ele não ter tido a coragem de dizer, no fundo, no fundo, o que pensava; ia rodeando o problema, mas se houvesse um desses balões desenhados para revelar os seus pensamentos, estaria escrito: É uma injustiça”. Veem? Por trás de tudo, há sempre um juízo, quer se queira quer não. É impossível não julgar. Atrás do medo de quem interveio esta manhã, havia um juízo; e, do mesmo modo, no relato do amigo, quer o dissesse quer não, ele sentiu na pele que, escondido no fundo, havia um juízo.
A verdadeira questão, amigos, não é que não façamos juízos; a verdadeira questão é se nós decidimos encarar de frente esses juízos – que, seja como for, nós damos – e se temos coragem para passar a dizer: “Mas é verdadeiro ou não é verdadeiro este juízo que dei?”. Os juízos, realmente, damos sempre. Por onde é que se vê? Pela experiência que fazemos, pelos efeitos que se produzem em nós, tanto assim que o primeiro que nos ouve contar percebe logo o constrangimento. A vida “canta” que existe um juízo: num ou noutro sentido, mas existe, sempre. É impossível viver, nem que seja um só instante, como nos faz observar Dom Giussani, sem que se diga por que é que, no fundo, vale a pena viver esse instante, não existe um minuto em que não se afirme algo de último.
A intervenção prosseguia: “Principiou em mim uma luta, porque achava insuportável aquele telefonema. Comecei a dizer a mim mesmo: “Mas será isto uma injustiça?”“. É esta é a urgência de julgar. Basta que uma pessoa perceba qualquer coisa premente na vida para sentir a urgência de julgar. É insuportável não chegar a um juízo verdadeiro. Quando não vislumbramos esta “insuportabilidade”, quer dizer que a nossa humanidade falhou, que vamos nos assemelhando a uma pedra: o problema não é que julgar seja um acréscimo para pessoas com uma mania qualquer, mas que vamos nos assemelhando a pedras. Quando se é homem e se encara lealmente a realidade, não julgar é insuportável. O juízo não é uma coisa que se cola, para gente que não tem mais nada que fazer senão complicar a vida, como no fundo tantas vezes pensamos (dizemos isto do juízo da mesma forma que o amigo dizia que era uma injustiça a malformação). Pensamos que o juízo é uma complicação monumental, que nos impede de gozar a vida... até que a vida urge! Então as coisas mudam. Mas o que significa que a vida comece a urgir dentro de nós? De que é sinal? Significa que um lampejo de humanidade começa a despertar.
“Nesta luta imaginei-me diante da amiga que teve o filho, e que ela me perguntava: ‘O que você diz disto, é uma injustiça?’, e vi-me coagido a prestar contas da experiência que faço”. Às vezes a nossa contribuição mais simples e decisiva é colocar a pergunta que o outro não tem a coragem de colocar. Parece que não é nada, parece banal, mas colocar a pergunta certa, verdadeira, é a primeira contribuição que damos ao outro: não é resolver-lhe o problema, mas começar a colocar a pergunta. “Teve início aquilo que me parece ser o julgar, ou seja, comecei a localizar na minha experiência o que podia me fazer dizer que aquilo não era uma injustiça. E existem imensos casos, do primeiro encontro até à Escola de Comunidade do dia anterior, em que você, no fim, relendo o Cartaz de Páscoa, o que é que fez se não reanunciar-me que este caso não é uma injustiça? Porque, se Cristo ressuscitou, este caso não é uma injustiça. Chegando a este ponto vi uma luta em mim, o medo que é dizer uma coisa exagerada: Cristo ressuscitou! Mas tinha a noção de que aquela afirmação que você fez na sua Escola de Comunidade: ‘Cristo ressucitado é um acontecimento ou não é’, da mesma forma que ‘o meu reconhecimento de Cristo ou é agora ou não é’, estabelecia a diferença radical e ficou impressa em mim. Assim, ao voltar para casa, disse a mim mesmo: ‘Tenho de lhe dizer, tenho de dizer ao meu amigo’. Por isso, escrevi-lhe imediatamente uma mensagem: ‘De qualquer modo, Cristo ressuscitou.’ E que Cristo tenha ressuscitado é uma coisa que a nossa experiência comprova constantemente, e nós não podemos senão partir deste dado, caso contrário seremos incorretos, seremos parciais”. Veem? Muitas vezes as coisas que nos dizemos, mesmo sendo certas, parecem exageradas. Mesmo depois de termos experimentado nos parece um exagero dizer “Cristo ressuscitou”. Nós temos de levar em consideração todo e qualquer vestígio que deixe uma sombra em nós. Se quando eu digo “Cristo ressuscitou” percebo uma sombra e não a olho de frente, a sombra passa a ser o juízo. Podemos depois dizer todas as sacrossantas palavras que quisermos, mas o que fica é a sombra. E onde é que isto se vê? No fato de que determina o meu eu no presente. Por isso, ver como a nossa própria humanidade vibra, ter a noção – como diz Dom Giussani com um expressão belíssima – do “sentimento do eu” que nós temos é revelador: parece quase banal e, no entanto, é pelo sentimento do eu que se percebe o que é que prevalece em nós, qual é o juízo último; pode-se ver se, embora dizendo “Cristo ressuscitou”, prevalece, no fundo, o “É um exagero” (não temos coragem para dizer “É falso”, simplesmente dizemos “É um exagero”), e isso determina o nosso modo de encarar o real, de nos entendermos a nós próprios. Aqui se vê a decisividade do que sublinhei na Escola de Comunidade: se a pessoa não faz uma experiência, se o cristianismo, se a fé não é uma experiência presente – presente! –, se não é algo que encontra a sua confirmação em uma experiência, não vai poder resistir, não apenas perante o tsunami, mas à mínima circunstância adversa.

3. O INÍCIO DA LIBERTAÇÃO
Eis então o ponto que emerge da experiência que vocês documentaram: começamos a sentir dentro de nós que certo modo de viver é insuportável, que não conseguimos avançar sem julgar conscientemente. Isto, amigos, é uma bela promessa para todos nós. Se realmente o juízo é o início da libertação, começar a pressentir a urgência de julgar é a aurora do início da libertação. Vislumbram-se dias felizes, se formos leais com esta urgência, se experimentarmos sempre mais aquela insuportabilidade em nós. Atenção, pressentir a insuportabilidade não é uma “problematização”, mas o início de uma humanidade maior, um sinal do despertar do nosso eu, e por isso é positivo: é o sinal do humano, porque devia ser sempre assim, de tal maneira somos determinados por aquele conjunto de exigências e de evidências a que chamamos coração (ainda que, como sabemos, a noção de tais exigências e evidências possa estar ofuscada).
Se nós, por conseguinte, julgamos sempre, a questão – como se viu claramente esta manhã – é se é verdadeiro o não é verdadeiro o juízo que damos. E temos de verificar se aquilo que dizemos entre nós é verdade face ao tsunami, face à morte, face à doença, face ao tédio. Temos de prestar contas de cada sombra que paira sobre nós. Amigos, já disse para vocês outras vezes: nós não estamos condenados a viver a vida suportando as sombras, não estamos condenados a viver a obrigação das preocupações sem as julgar. Aliás, precisamente por causa dessa insuportabilidade que sentimos dentro, percebemos até que ponto julgar é decisivo e é uma libertação. Com efeito, sabemos que julgamos exatamente pela libertação que vemos vibrar dentro de nós, e não porque tenhamos dito a frase certa. Uma pessoa pode dizer a frase certa e não ter julgado, e portanto não estar liberto.
Encontrei as notas de uma assembleia que Dom Giussani orientou em 1986, onde fala do juízo e aborda frontalmente a nossa questão: “Vejam que o juízo é o acontecimento do homem que começa; o juízo é o acontecimento do homem que se forma e se completa depois na ação afetiva. Todos reconhecemos que Cristo é a realidade [a frase certa]; mas isto não penetra na existência. Não é um verdadeiro juízo, é uma ideia, não é um juízo; é uma ideia sobre a qual se constrói uma ideologia e uma praxis em função dela, como é para a maior parte da leadership do Movimento [diz isso assim, en passant...]. É uma ideia – a ideia de fé, de cristianismo – sobre a qual se constrói uma ideologia mais ou menos evoluída culturalmente e que, por isso, determina opções práticas. Mas a fé – isto é, o reconhecimento desta presença – não se transforma em juízo no verdadeiro sentido do termo, que é o que a Bíblia usa. [E dá um exemplo:] Você está andando de carro por uma estrada de montanha, vê que ao longe, a um quilômetro, vem rolando um grande bloco de pedra que caiu na estrada. Você diz: ‘Tem um bloco de pedra na estrada!’, e rapidamente freia o carro. O juízo é algo que tem energia e consistência, que desafia o resto da vida. O verdadeiro juízo é algo que tem uma consistência e uma força que põe em xeque o resto, que muda. Talvez não consiga, mas você sente a pressão. Enquanto o que você diz, ‘Cristo é a realidade’, não muda nada, você não sente o ‘tum-tum’ dos mineiros fazendo saltar as minas ou do carneiro querendo arrombar o seu muro; no momento não resulta, mas com o passar dos anos não é possível não obter resultados. E é esse o significado de uma vida enquanto trabalho, enquanto caminho; ao passo que para muitíssimos de nós não existe caminho. Porque existem todas estas ideias abstratas, que não fazem ‘tum-tum’ dentro, não desafiam nada. Uma pessoa pode-se enganar mil vezes ao dia, mas há a dor que não a deixa, não pode deixá-la. E há a recuperação, a seguir, porque a dor é uma recuperação. Que Cristo, que este Homem seja a realidade, eu não consigo perceber como – porque teria de ser Deus –, mas percebo o que quer dizer e reconheço que tudo deve ser determinado e mudado por esta Presença. Ora, isso é um juízo se me muda, se me desafia, se desafia a carne e os ossos: ‘Por Ti suspira a minha carne, como terra árida, seca, sem água’. ‘Por Ti suspira a minha carne’: o juízo é isso. E é esse juízo que muda o mundo. Essa é a penitência, a metanoia; esta é a conversão”.
O juízo põe em andamento a conversão. Por aqui se vê se a fé é um juízo real ou é a repetição mecânica de uma fórmula: é um juízo real, se me muda. É por isso que Dom Giussani volta sempre a João e André. Se realmente não acontece para nós o mesmo que aconteceu para João e André, que foram mudados pelo encontro e pelo reconhecimento daquela presença, não estamos falando da mesma coisa. Ainda que repetindo as frases que descrevem João e André, não estamos fazendo a mesma experiência de João e André. O juízo para eles não foi a repetição de uma fórmula, mas o terem sido agarrados a ponto de mudar. Percebe-se então por que motivo a fé cristã não pode ser uma criação: a fé é um reconhecimento e não uma criação porque João e André não podiam originar por si sós, nem por um minuto, aquele apego. Foi uma surpresa: sentiram-se agarrados, magnetizados. E foi esse estarem agarrados, esse juízo, que dominou toda a sua vida em todos os momentos.
Vê-se se o juízo que se chama fé domina a vida por ser este estar agarrados aquilo que ressalta no modo como enfrentamos todas as circunstâncias da vida. Ressalta by default (normalmente), como dizem, como quando alguém, faça a experiência que fizer, aconteça o que acontecer, é invadido pela memória de qualquer coisa que preza, de uma presença que preza. Assim, vê-se que a relação com a Sua presença domina porque reaparece com evidência em cada experiência, não a invento quando tenho necessidade, não a crio face às circunstâncias dramáticas da vida; vem-me à cabeça, impõe-se, face a todas as circunstâncias, boas ou más que sejam. Às vezes são mais significativas quando são boas porque estão menos em “risco de invenção”; quando são más, uma vez que tem de haver algum sentido, pode-se correr o risco de inventar um sentido. Quando a vida é plena este risco cessa: aquele reconhecimento impõe-se, aquela memória ressurge, porque eu não posso ver o pôr-do-sol, ou a beleza das montanhas, ou um jantar entre amigos, sem que ressalte essa urgência, essa tendência exasperada para dizer o Seu nome. Por isso, são os fatos simples que nos contamos, com os quais os outros se surpreendem ainda mais do que nós, é a experiência que nós próprios fazemos que nos confirma que não somos nós que estamos criando o objeto da fé, que a fé é a sã aplicação prática da razão perante aqueles fatos. Se eu não reconheço a Sua presença, se não reconheço a realidade daqueles fatos ao ponto de chegar a pronunciar o Seu nome, não posso dar razão deles, dos fatos que vejo e que todos veem.
Às vezes surge a pergunta: “Mas como é que, depois de determinados momentos, em que reconheço a Sua presença com clareza luminosa, eu decaio?”, e surge como um escândalo. Respondo com o que Dom Giussani nos testemunhou no último ponto da sua intervenção em Roma, diante do Papa, em 1998. É algo a que nós, que vivemos na história e que vemos o nosso contínuo “decair”, devemos voltar sempre.
“A infidelidade surge sempre no nosso coração mesmo diante das coisas mais belas e mais verdadeiras, nas quais, diante da humanidade de Deus e da simplicidade original do homem, o homem pode fraquejar por debilidade e preconceito mundano, como Judas e Pedro. No entanto, a experiência pessoal de infidelidade que surge sempre, revelando a imperfeição de cada gesto humano, clama pela continua memória de Cristo. Ao grito desesperado do pastor Brand, no homônimo drama de Ibsen (“Responde-me, ó Deus, na hora em que a morte me engole: não é então suficiente toda a vontade de um homem para conseguir uma só parte de salvação?”) responde a humilde positividade de Santa Teresa do Menino Jesus, que escreve: ‘Quando sou caridosa é só Jesus que age em mim.’ Tudo isto significa que a liberdade do homem, sempre implicada pelo Mistério, tem como forma suprema, inatacável forma expressiva, a oração. Por isto, a liberdade coloca-se, segundo toda a sua verdadeira natureza, como pedido de adesão so Ser, ou seja, a Cristo. Mesmo dentro da incapacidade, dentro da grande fragilidade do homem, está destinada a perdurar a afeição a Cristo. Neste sentido, Cristo, Luz e Força para todo aquele que O segue, é o reflexo adequado daquela palavra na qual o Mistério aparece na sua relação última com a criatura, como misericórdia: Dives in Misericordia. O mistério da misericórdia ultrapassa qualquer imagem humana de tranquilidade ou de desespero; até o sentimento de perdão está dentro deste mistério de Cristo. Este é o abraço último do Mistério, contra o qual o homem – mesmo o mais distante e o mais perverso, ou o mais obscuro, o mais tenebroso – não pode opor nada nada, não pode opor uma objeção: pode desertá-lo, mas desertando de si próprio e do seu próprio bem. O Mistério como misericórdia permanece como última palavra mesmo sobre todas as terríveis possibilidades da história. Por isso, a existência exprime-se, como ideal último, na mendicância. O verdadeiro protagonista da história é o mendicante: Cristo mendicante do coração do homem e o coração do homem mendicante de Cristo” (L. Giussani, “Na simplicidade do meu coração lietamente Te dei tudo”, Roma, 30 de maio de 1998. Publicado em L. Giussani - S. Alberto - J. Prades, Generare tracce nella storia del mondo, Milão, Rizzoli, 1998, p. VI-VII. Cf. tb. Revista Litterae Communionis, n. 63, maio-junho 1998).

4. CRISTO RESSUSCITADO: UM JUÍZO SOBRE NÓS E SOBRE A HISTÓRIA
Na medida em que tudo isto se torna verdadeiramente experiência, podemos perceber o alcance que o anúncio cristão tem para nós mesmos e propô-lo ao mundo como juízo: o que nos faz falta, pela sua objetividade, é o que faz falta ao mundo. Por isso o Cartaz de Páscoa deste ano volta de novo à origem. Como nasceu o Cartaz? Como um juízo sobre a história e sobre nós. O que nós dizemos diante do tsunami, ou diante da guerra, ou diante do enfraquecimento do eu, ou seja, diante daquela ausência de juízo em que se sente o decair do humano? O nosso juízo é o conteúdo do Cartaz, que coloca duas questões fundamentais.
a) A afirmação do Fato: Cristo ressuscitou. Se o cristianismo é menos do que isto, não vale a pena, já não é cristianismo; este ficaria reduzido simplesmente ao patrimônio que uma grande personalidade humana nos deixou. E que faríamos nós deste patrimônio diante do tsunami? Como diz o Papa, estaríamos “abandonados a nós mesmos”, à nossa absoluta incapacidade. “Somente se Jesus ressuscitou é que aconteceu algo de verdadeiramente novo, que muda o mundo e a situação do homem. Então Ele, Jesus, torna-se o critério em que nos podemos fiar”.
b) Mas para que esta afirmação seja um juízo, no sentido anteriormente dito, é preciso que exista uma experiência no presente. Por isso, retomamos um texto de Dom Giussani: “O que se sabe [que Cristo ressuscitou] ou o que se tem converte-se em experiência se aquilo que se sabe ou que se tem é algo que nos é dado agora [agora]: há uma mão que no-lo oferece agora, há um rosto que vem avançando agora, há sangue que se derrama agora, há uma ressurreição que tem lugar agora. Fora deste ‘agora’ não existe nada! O nosso eu não pode ser movido, comovido, ou seja, transformado, a não ser por uma contemporaneidade: um acontecimento. Cristo é algo que me acontece [agora]”. Onde é que eu vejo isso? No fato de eu poder encarar a realidade sem medo, de poder olhar para tudo sem ser em última instância derrotado. Se não sou derrotado, não é porque eu consiga dar todas as explicações, mas sim por uma coisa que está me acontecendo agora e que impede que a minha razão seja tomada pelo medo e se transforme em medida, fazendo-me achar – como nos testemunhava o nosso amigo perante a avó que morria – que tudo aquilo que eu não consigo perceber não existe e não faz sentido. A afeição a Cristo que acontece agora, a Cristo presença contemporânea, facilita à razão a fidelidade à sua autêntica natureza de razão: abertura à realidade. Qualquer outro juízo é falso, simplesmente falso, porque elimina este fator.
O que nos salva não é uma dedução, é um acontecimento que se dá agora: Cristo é algo que me acontece agora. É por isso que me muda, que determina o meu presente, é o fator que mais determina o meu presente, mais potente que qualquer tsunami, que qualquer sofrimento, que qualquer doença, que qualquer morte, porque não o posso abolir agora.
Nós poderemos comunicar esta esperança a todos, divulgando o Cartaz na universidade, se em primeiro lugar for um trabalho para nós, caso contrário fornecemos a doutrina certa sem participarmos da novidade que introduz. Mas nada se comunica sem ser como experiência: portanto, nós só podemos dar a nossa contribuição aos outros se cedermos ao acontecimento que Cristo é agora, se formos suficientemente simples para fazer a experiência do que nos é dado agora. Os outros, depois, decidirão com a sua liberdade. Este Cartaz é a graça que nos toca agora. Mas quem é que, para poder fazer face a tudo o que acontece, tem a possibilidade de ter entre as mãos um instrumento tão decisivo – que nos oferece ao mesmo tempo um método, uma via, um caminho para percorrer – para que aquilo que nos dizemos seja nosso, sem nos desencorajar pelo que ainda falta, mas participando já na vitória que começamos a saborear? A divulgação deste Cartaz é uma oportunidade excelente para todos nós, é o instrumento mais adequado ao nosso momento histórico para participar na vitória que Cristo é na história. Comunicá-la aos outros e ver o que acontece é conveniente para todos, para não perdermos a confirmação da verdade das palavras que nele encontramos escritas. Não temos outra coisa maior para dizer ao mundo. Por isso me parece que é um desafio clamoroso para cada um.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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