Notas dos depoimentos de Davide Prosperi e Julián Carrón no Dia de Início de Ano dos adultos e dos universitários de CL da região italiana da Lombardia. Fiera Rho-Pero, 26 de setembro de 2009
JULIÁN CARRÓN
Conscientes de nossa carência, peçamos ao Espírito que responda ao desejo que nos trouxe até aqui – escancarando-o totalmente.
Ó vinde, Espírito Criador
Sejam todos bem-vindos, e um abraço a nossos amigos que nos acompanham ao vivo de várias regiões da Itália e do exterior. É uma “tentativa irônica” – como tudo o que fazemos – realizar um Dia de Início de Ano transmitido ao vivo de Milão. Mas, para que este seja um gesto, não basta estarmos fisicamente presentes; é preciso que cada um de nós, no lugar em que se encontra, esteja presente com todo o seu eu, para que o que acontece possa encontrar a abertura, a fenda através da qual seja possível entrar a graça que o Senhor nos quiser dar.
DAVIDE PROSPERI
Iniciamos o encontro deste ano pelo ponto em que concluímos o do ano passado. No ano passado, nós nos concentramos na testemunha, na importância essencial da testemunha, no caminho que nos leva à maturidade da fé, à certeza da fé. Como nos lembrou Carrón na carta que escreveu à Fraternidade assim que voltou do Sínodo, nossa principal contribuição à Igreja e ao mundo não está numa ação cultural, cívica ou política (essas coisas são frutos que amadurecerão como e quando Deus quiser), nem muito menos em alguma forma de hegemonia, por mais nobres que sejam seus fins, mas está precisamente nisto: o testemunho do acontecimento que invadiu a nossa vida, e, invadindo-a, tornou-a e a torna, dia após dia, diferente, mais humana, mais capaz de gratuidade, de letícia, capaz de letícia a tal ponto que se torna invejável, às vezes até para quem, por mil razões, sempre nos criticou... Nós o vimos muito bem no Meeting. Uma das coisas que mais impressionou as pessoas que visitavam a feira pela primeira vez foi a paixão e a gratuidade dos “voluntários” – voluntários que vão até lá dar seu tempo e suas energias, às vezes arcando com todas as despesas, para poder contribuir com esse gesto que expressa, numa dimensão cultural, o coração, a capacidade expressiva da nossa experiência. É um fato que não pode ser explicado pelas simples categorias com que estamos acostumados a conceber as coisas de todos os dias. Permitam-me citar o editorial que saiu em Il Tempo, assinado por Roberto Arditti: ele conta que foi ao Meeting cético, em consequência de uma antiga aversão ao movimento de CL, “que nasceu e cresceu ao longo dos anos em que era estudante. Um dia que passei em Rímini me obrigou a mudar de ideia radicalmente”. Diante daquilo que viu, ele se questiona: “O que foi que o mundo leigo do final do século XX deixou aos mais jovens? Que força ‘útil’ nós soubemos construir? Não encontro respostas convincentes para essas perguntas, mas vejo que os jovens do Meeting são livres e fortes (sem fazer deles um mito, pelo amor de Deus). Às onze da noite, eu voltava para o estacionamento para pegar meu carro. Lá estava uma garota, sentada sozinha num banquinho de plástico. Ela me cumprimentou toda sorridente e me acompanhou até o carro. Era funcionária (voluntária) do estacionamento, vejam só que privilégio. Estava lá, com a sua camiseta do Meeting, contente com o que fazia. E sorria para uma pessoa que encontrava por poucos segundos. Na noite anterior, eu tinha jantado no Billionaire [um dos clubes de veraneio mais exclusivos da Europa]. Ninguém ali sorria como aquela menina do estacionamento”. Lembro também daqueles que vieram a Rímini para se confrontar com grande lealdade com a proposta que fizemos a eles, e que deram um testemunho corajoso de como o acontecimento cristão se torna um juízo cultural novo, como nos mostraram, por exemplo, Tony Blair e Mary Ann Glendon, para citar dois deles. E isso porque a testemunha não indica apenas uma maneira de fazer as coisas, mas uma concepção nova da realidade e da relação com a realidade.
Mas a experiência deste ano trouxe também ao primeiro plano o risco de uma superficialidade, de um concepção reduzida, sentimental, do que significa “olhar para a testemunha”. Nós corremos o risco de reduzir a testemunha a um exemplo positivo, a alguém que me faz experimentar um sentimento de exaltação, ou de consolo precário, um sentimento que, porém, logo depois vai embora do mesmo jeito que veio, de modo que o que sobra é apenas uma insatisfação, a sensação de estarmos sempre de volta ao ponto de partida. Mas, afinal, quem é a testemunha, literalmente? Este ano, nós nos fizemos muitas vezes essa pergunta. A testemunha, em sentido estrito, é alguém que me conta um fato verdadeiro, do qual está segura, porque o viu, porque fez experiência dele. A testemunha é alguém que me atesta que o fato de Cristo é verdadeiro, pois fez experiência dele, sabe disso por experiência, tem certeza dele porque esse fato mudou sua vida e está presente aqui e agora, sempre, como diz o título do novo livro com a transcrição dos encontros de Giussani com os responsáveis universitários (Qui e ora. 1984-1985 Milão: Bur, 2009). A testemunha, portanto, é alguém que conhece a Verdade. E é isso que a torna um sujeito diferente: o fato de se apoiar naquilo que é sólido, no único que venceu a morte. Sempre me impressionou a insistência de Giussani no fato de que, na Bíblia, a ideia da verdade é expressa pela imagem da rocha. A verdade não é um pensamento, não é um conceito intelectual. É uma Presença sobre a qual eu posso ficar firme, sobre a qual posso apoiar todo o meu eu. Uma Presença que permite que eu não afunde, como diz o Salmo 40: “Retirou-me de um charco de lodo e de lama. Colocou os meus pés sobre a rocha” (Sl 40,3). A testemunha é alguém que vive tudo fincado sobre a rocha. Por isso, você fica com vontade de se ligar a ela.
Mas diante disso surge, então, uma primeira pergunta: se a testemunha é isso tudo que dissemos, por que é que a certeza, em nós, continua a ser tão fraca, mesmo cercados como estamos por tantas testemunhas? Em agosto, você começou a insistir no fato de que a testemunha não basta. Se é assim, qual é o passo que devemos dar, onde é que ficamos presos?
Muitas vezes, é como se parássemos, por comodidade ou, no fundo, por falta de estima por nós mesmos, na vibração diante da beleza dos efeitos do fato, ou seja, na vibração diante da beleza dos frutos que pertencer a Cristo gera em alguns momentos ou em algumas pessoas. Nós nos detemos no gozo do fascínio da humanidade de algumas pessoas, sem que isso dê início – como eu poderia dizer? – a um ardor, a um desejo, e, portanto, a um trabalho, a um caminho, enfim, a um movimento rumo à origem escondida dessa diversidade humana.
Em agosto, alguns de nós assistiram ao vídeo da palestra de Dom Giussani sobre Leopardi (na Assembleia Internacional de Responsáveis de CL – La Thuile, 18 a 22 de agosto de 2009 – foi projetada a filmagem amadora de um encontro com estudantes universitários do Instituto Politécnico de Milão, realizado em 1996; ndr). Diante disso, pessoalmente, fiquei sem palavras, arrebatado por esse modo de sentir, de olhar e sentir o humano. Mas, passados dois dias, percebi que já nem pensava mais nisso. Este é o ponto: é como se corrêssemos sempre o risco de parar num reflexo sentimental, estético, mesmo diante do maior testemunho, e eu entendo que o passo a que você nos vem chamando incansavelmente é na direção de um outro nível, de modo que algo desse olhar, desse modo como Giussani falava do humano, entre na maneira como nós fazemos todas as coisas, como vou para o trabalho de manhã, como me encontro com os amigos, como cumprimento meus filhos e minha esposa quando volto para casa à noite. É semelhante àquilo que o diretor de Il Tempo deve ter visto naquela menina no estacionamento do Meeting. Do contrário, mesmo cercado por uma multidão de testemunhas, eu continuo a ser sugado pela confusão, nem mais nem menos do que quem não fez o encontro que eu fiz.
Esta, então, é a segunda pergunta, que num certo sentido contém a primeira: o que é que vence a confusão?
JULIÁN CARRÓN
1. A vitória sobre a confusão é uma experiência
O que vence a confusão é uma experiência, e o que caracteriza a experiência é o juízo, não – como vemos muitas vezes em nós – o reflexo sentimental que as coisas nos provocam. É o juízo que torna experiência alguma coisa que fazemos. Por isso, Dom Giussani nos testemunhou constantemente que, se não queremos sucumbir à confusão, se cada um de nós “quer tornar-se adulto, sem ser enganado, alienado, escravo de outros, instrumentalizado”, devemos nos acostumar “a comparar tudo com a experiência elementar”, com aquele conjunto de exigências e evidências que constituem o nosso eu. Mas Dom Giussani tem plena consciência de que o que propõe é “uma tarefa impopular e nada fácil. Normalmente, tudo é enfrentado segundo uma mentalidade comum, que é sustentada e propagandeada por quem detém o poder na sociedade. Desse modo [atenção!], a tradição familiar ou a tradição de um contexto mais amplo no qual cada um de nós foi criado sedimentam-se sobre as nossas exigências originais e constituem como que uma grande crosta que altera a evidência daqueles critérios e significados primeiros”, que constituem essas exigências (O senso religioso. Trad. Paulo Afonso E. Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 28-29). E nós devemos ter consciência disso, porque, no fim das contas, aquilo a que damos o nome de “coração” nada mais é que essas sedimentações, essas expressões da mentalidade de todo o mundo; por isso, muitas vezes nos encontramos, como todo o mundo, perdidos, confusos (basta olhar à nossa volta). Dom Giussani, amigos, tinha plena consciência do tipo de desafio que nos faz: “O desafio mais audaz à mentalidade que nos domina [atenção!] e incide sobre nós em tudo – desde a vida do espírito até o vestuário – é tornar habitual em nós o juízo sobre tudo à luz das nossas evidências primeiras, e não à mercê de nossas reações ocasionais [justamente: o reflexo sentimental das coisas]” (ibid., p. 29). Por isso, se queremos realmente vencer essa confusão, devemos decidir aceitar o desafio de tornar o juízo algo habitual. “O uso da experiência elementar, ou do próprio ‘coração’, é, portanto, impopular sobretudo quando estamos diante de nós mesmos, pois é justamente o ‘coração’ a origem do indefinível incômodo do qual somos presa ao sermos, por exemplo, tratados apenas como objeto de interesse ou de prazer” (ibid.). É algo impopular diante de nós mesmos: é mais fácil repetir o que todos dizem e não ter de lidar com esse mal-estar indefinível que carregamos conosco. Julgar é o início da libertação da confusão. Mas por que é impopular? Dom Giussani responde: “A recuperação do existencial profundo [desse profundo que está debaixo de toda essa crosta], que permite essa libertação, não pode evitar o esforço de nadar contra a correnteza. Poderíamos chamá-lo trabalho ascético, onde, com a palavra ascese, indicamos a obra do homem enquanto este visa ao seu amadurecimento, enquanto está diretamente centrado no caminho rumo ao destino. É um trabalho, e não é um trabalho óbvio [como pensamos tantas vezes]; é algo simples, mas não óbvio [de jeito nenhum!]. Tudo o que até agora dissemos deve ser reconquistado; vivemos numa época em que a exigência dessa reconquista é mais clara do que nunca, ainda que em todas as épocas o homem tenha precisado trabalhar para reconquistar a si mesmo. Em termos cristãos, esse esforço faz parte da ‘metanoia’, ou conversão” (ibid., pp. 29-30).
Que impressionante reler essas páginas no contexto em que nos encontramos atualmente! Nada descreve melhor o que nos acontece. É difícil encontrar palavras mais pertinentes sobre essa confusão.
Mas qual é a dificuldade, amigos? Que aquilo que Dom Giussani nos propõe, julgar, para nós é algo que sentimos colado por cima, intelectual, que só serve para pessoas que complicam a vida. Na realidade – pensamos – viver é uma outra coisa, fazer experiência é diferente, julgar é apenas para gente complicada ou confusa. E por isso nem levamos em consideração, nem assumimos o incômodo de aceitar esse desafio e afirmamos: “Mas o que é que estamos dizendo! Julgar? Ora essa... Sejamos sérios!”
O maior obstáculo que temos diante da proposta do carisma – e isso nos acontece há anos; faz anos que temos isto bem diante dos nossos olhos – é entender qual é o problema, reconhecer qual é a questão. Nós sempre lembramos a frase que Chesterton dedica a nós, que somos sábios: “O problema dos nossos sábios não é que eles não consigam ver a resposta; é que eles não conseguem sequer ver o enigma” (Chesterton, G. K. Ortodoxia. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 55). Nós não entendemos qual é a questão, e assim nos vemos muito bem descritos nesta frase de Barbara Ward, citada em O senso religioso: “Raramente o homem aprende aquilo que crê já saber” (p. 136).
Por conseguinte, não é em primeiro lugar um problema de conteúdo, mas de reconhecer uma dificuldade que trazemos em nós, cujas consequências sofremos: é como se não conseguíssemos entender a origem desse mal-estar, dessa confusão que vemos em nós mesmos, dessa dificuldade para estar na realidade, para viver nas circunstâncias. Por isso, de um lado, repetimos gestos e, de outro, padecemos o cotidiano que nos esmaga. Leio-lhes uma carta: “Dom Giussani disse, e você relembrou várias vezes, que as circunstâncias pelas quais Deus nos faz passar são um fator essencial e não secundário da nossa vocação, da missão a que Ele nos chama, e isso é algo que rompe com a nossa vida distraída e apressada e nos enche de satisfação. No entanto, eu, depois de anos e anos de Movimento, tenho dificuldade para viver o cotidiano [graças a Deus, digo eu, porque podemos construir todos os castelos deste mundo na nossa cabeça, mas tem sempre alguma conta que não fecha]: as pequenas coisas, a simplicidade de um gesto comum com meus filhos, a alegria de um momento casual em família são sempre vividos por mim como um ‘menos’, como se a coisa mais importante daquele momento fosse outra (o encontro de Escola de Comunidade, a assembleia de fulano ou sicrano, participar das Tendas de Natal ou oferecer meu tempo para trabalhar na Coleta de Alimentos), e eu me dou conta de que agindo assim vivo uma outra realidade, quase como se fugisse das circunstâncias que me são dadas para viver todos os dias”.
Quando leio essas coisas, me dá vontade de chorar. Que tudo o que fazemos pelo Movimento não nos sirva para viver o cotidiano... Mas, então, para que serve o Movimento? Assim, dá para entender como Dom Giussani tinha razão quando nos instigava a passar “de uma lógica de grupo para uma dimensão de consciência pessoal” (Qui e ora. 1984-1985. Milão: Bur, 2009, p. 320): realmente, o grupo, pertencer somente ao grupo, não basta para que o cotidiano não se torne insuportável. E por isso propunha, como fórmula: “Passemos do fazer o Movimento para a experiência do Movimento” (Certi di alcune grandi cose.1979-1981. Milão: Bur, 2007, p. 149).
Qual é o problema, então? É uma falta de experiência, ou seja, de juízo; mas isso nos parece estranho, exagerado, pois nós pensamos que estamos fazendo experiência, falamos sempre disso, mas confundimos a experiência com algo que não é experiência, pensamos estar julgando, mas na maior parte das vezes paramos muito antes que o juízo esteja realmente completo, nos contentamos com a reação ou com o preconceito.
O exemplo mais evidente disso é o que nos acontece muitas vezes diante da testemunha, pois a testemunha não escapa a essa maneira de viver a relação com a realidade; nós podemos reduzir até mesmo a maior testemunha a um reflexo sentimental – como Davide dizia antes –, e, dois dias depois, nos vemos de volta ao ponto de partida: porque a experiência que outra pessoa fez não é suficiente. A testemunha nos mostra uma possibilidade real, mais humana, de viver as circunstâncias em que somos chamados a viver, mas, se isso não nos impele a fazermos nós mesmos experiência pessoal do que a testemunha nos mostra, cedo ou tarde a testemunha já não nos interessa – eu fico cheio de tantos testemunhos –, porque aquilo nunca se torna meu. Por isso, como Dom Giussani sempre nos disse, “se eu não me esforço por verificar o que intuo ou pressinto como valor graças a um testemunho, ao testemunho de um outro, cedo ou tarde vou-me embora” (cf. ibid., p. 158); se eu não o vejo reacontecer em mim, com o tempo aquilo não me interessa. E dava este exemplo: “A pessoa, aos sessenta anos, pode ter provado de tudo o que pode ser provado, mas nem por isso é necessariamente uma pessoa ‘experimentada’ [que fez realmente uma experiência]; [pois] a experiência é a capacidade de comparação com o ideal. Do contrário [atenção!], não fazemos experiência de nada, temos a atitude característica de tantos e tantos velhos, cheios de um vazio, de nada” (ibid., p. 148).
Este é o nosso destino, se nós só provamos, provamos, provamos... sem fazer realmente uma experiência: viraremos velhos vazios. É por isso que Dom Giussani insistia na passagem do fazer o Movimento para a experiência do Movimento, para aquilo a que chama “personalização”. E o ponto crucial dessa passagem é o juízo – essa mesma coisa que nós consideramos colada por cima, estranha à experiência –, pois é o juízo que torna experiência algo que fazemos.
2. As reduções da experiência
Ajudemo-nos a entender quais são as reduções da experiência que normalmente fazemos.
O problema é que custamos a fazer realmente uma experiência, e dá para ver isso pela confusão. A confusão evidencia justamente a redução que nós fazemos na experiência, uma redução que é grave, muito grave. Por que é muito grave? Porque enfraquece e anula o método fundamental do desenvolvimento humano. Pois é isto que Giussani considera experiência: a experiência não é uma palavra ao vento, a experiência é o caminho do desenvolvimento da pessoa, é o instrumento que temos em nossas mãos para o nosso desenvolvimento, para o nosso crescimento. Logo, se nós o usamos mal ou o reduzimos, tudo o que acontece na vida é inútil (como lembrei no Meeting, citando Galati), é estéril, não serve, não incrementa o nosso eu, não desenvolve a nossa pessoa, e podemo-nos tornar velhos vazios mesmo tendo vivido muitas coisas, pois não fizemos realmente uma experiência.
E de que forma essa experiência é reduzida? Muitas vezes, para nós, a experiência é reduzida simplesmente ao impacto que as coisas provocam em mim. Contamos fatos, mas tudo continua ali onde está, e depois não sobra nada daquilo. Isso acontece porque também entre nós geralmente a experiência é identificada apenas com o impacto que as coisas provocam em mim, com as impressões que eu tenho, que são todas reais – não é que nós usamos palavras à toa: não, nós contamos fatos, partimos de coisas reais –, mas são apenas impressões. A experiência, portanto, é cega, mecânica. O que nós chamamos experiência muitas vezes nada mais é que um mero provar, uma simples sensação, sem inteligência, sem juízo, ou então é uma coisa subjetiva, no sentido pejorativo, ou seja, algo sentimental. Dom Giussani descreveu-nos isso nos mínimos detalhes: “Daqui surgem tantas inadequadas, ainda que frequentes, acepções da palavra experiência [reduzida]: entende-se por experiência [ouçam a lista que vem a seguir, em que cada um de nós é radiografado] a reação imediata perante coisas que são propostas, ou a multiplicação de vínculos por mera proliferação de iniciativas, ou o súbito fascínio ou desgosto pelas coisas novas, ou a afirmação de uma elaboração ou de um esquema próprios, ou uma lembrança do passado que não revive como valor do presente, ou até mesmo um acontecimento citado para bloquear uma aspiração ou para mortificar ideais” (Educar é um risco. Trad. Neófita Oliveira e Francesco Tremolada. Bauru: Edusc, 2004, p. 89).
E assim Dom Giussani nos ajuda a entender como muitas vezes fazemos essa redução: “Sem uma capacidade de avaliação, o homem não pode fazer nenhuma experiência. [...] A experiência coincide, certamente, com ‘provar’ alguma coisa, mas coincide sobretudo com o juízo dado a respeito daquilo que se prova” (O senso religioso, cit., p. 23). Por isso, em agosto, eu disse: “A incompreensão da palavra ‘experiência’ fica evidente na forma como costumamos opô-la a ‘juízo’ (ou ‘conhecimento’): onde está uma não está o outro, são alternativos. É o sinal mais claro de que estamos confusos quanto a um ou ao outro termo. Assim, muitas vezes, se para nós a experiência é reduzida a essa espécie de impacto, de choque mecânico, o juízo nos parece algo intelectual, quase colado por cima. E justamente por isso muitas vezes sentimos o juízo como algo forçado, como algo que nós impomos à realidade, que nós mesmos criamos. [...] Mas, se temos de julgar até as coisas boas, as coisas intensas, isso acaba com o encanto daquilo que vivemos, de certa forma ‘despoetiza’ a experiência, quase como se a arruinasse para nós. Assim, quando as coisas foram interessantes, belas, persuasivas, que necessidade temos de julgá-las? Afinal, ficamos satisfeitos com elas. Muitas vezes, então [...], nossa instigação a julgar parece a daquelas pessoas que só sabem amolar. Vivemos uma coisa boa e mesmo assim temos de julgá-la? Parece-nos, em outras palavras, que realizamos uma operação artificiosa e difícil” (Experiência: o instrumento para um caminho humano. Assembleia Internacional de Responsáveis de Comunhão e Libertação, La Thuile, agosto de 2009. Trad. Durval Cordas. Disponível em http://www.clonline.org/articoli/ita/lathuileBRAS0809.pdf, pp. 12-13). Se pudermos nos poupar dessa operação, melhor.
O que é que perdemos com isso? A resposta a essa pergunta nos diz até que ponto temos dificuldade para entender. Pois o ponto crucial é justamente este: que, fazendo essa experiência tão reduzida, ficando “satisfeitos” e, não sentindo a necessidade de julgá-la, temos a impressão de que não nos falta nada. O verdadeiro problema é que temos a impressão de não nos faltar nada! É uma redução do humano de dar pena! Tudo se transforma em formalismo, superficialidade, conformismo. Como no caso dos nove leprosos, que citamos outras vezes: eles não se perguntam nada, não lhes falta mais nada, não sentem a urgência de mais nada. O fato de sentirmos o juízo como uma coisa estranha significa que não nos falta mais nada, e isso mostra o quanto a redução do humano é espantosa! Pois não julgar é perder o melhor, é parar antes de chegar ao que realmente me interessa; mas nós não sentimos falta disso, achamos que é algo para “intelectuais”.
E aí é impressionante que a coisa mais nossa (que deveria ser mais nossa), o desejo de plenitude diante da realidade, é a coisa que nos é mais estranha. Que separação de nós mesmos! Somos impopulares a nós mesmos, como dizia Dom Giussani na passagem que citei. Mas o que acontece quando despertamos do sonho? Depois que passa a “satisfação”, o que é que sobra? Sobramos nós, sozinhos, com o nosso nada, cada vez mais perdidos, cada vez mais céticos. Dá para entender por que a confusão cresce?
Mas que diferença, que diferença em relação ao que Dom Giussani nos testemunhou lendo Giacomo Leopardi – como Davide lembrava antes. Porque é impossível que uma pessoa veja essa humanidade e não deseje esse olhar, não deseje participar dessa maneira de se relacionar com a realidade; porque o que vemos nesse vídeo é um homem, uma testemunha que mostra como alguém pode estar diante da realidade e ler Leopardi de um modo tal que o permita descobrir, testemunhar esse “Mistério eterno/ Do nosso ser” (“Sobre o retrato de uma bela mulher esculpido em seu jazigo”. In: Poesia e prosa. Trad. Affonso Félix de Souza et al. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p. 276), ou seja, aquilo que somos. E que mistério é esse? “Ó natureza humana,/ Se em tudo és frágil, vil,/ Se és pó e sombra, como no alto vagas?” (ibid., p. 277) Você, sendo assim tão frágil, tem esses desejos tão grandes. Mas esse desejos – temos dito muitas vezes – já não existem, é como se tudo desaparecesse. Dom Giussani, porém – e é impressionante ouvi-lo empunhando Leopardi –, diz que não, de jeito nenhum, que este é o pensamento dominante: “Dulcíssimo, potente/ Dominador da minha funda mente” (“O pensamento dominante”. In: Ibid., p. 260). Esse grito, essa exigência de felicidade, volta à tona depois do naufrágio universal, pois “a vaidade infinita que há em tudo” (“A si mesmo”. In: Cantos. Trad. Mariajosé de Carvalho. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 131) não consegue erradicar a semente desse pensamento dominante, dessa sede, dessa paixão pela felicidade: “Como torre/ Em campo solitário/ Apenas tu, gigante, ali estás” (“O pensamento dominante”. In: Poesia e prosa, cit., p. 260). Podemos nos encontrar em meio a esse naufrágio universal e a essa confusão total, mas o pensamento dominante implacavelmente volta à tona. Você pode estar confuso o quanto quiser, mas, quando alguém lhe faz uma injustiça, volta à tona toda a sua exigência de justiça; você pode estar cansado o quanto quiser, mas, diante da beleza, não pode evitar que apareça toda a surpresa. E aquilo a que chamamos coração, esse pensamento dominante, é uma realidade “que pode ser esquecida, adulterada, contestada, mas é inextirpável” (Uomini senza patria. 1982-1983. Milão: Bur, 2008, p. 256). É disto que Dom Giussani é testemunha: dessa lealdade com a experiência, que encontra um companheiro em alguém como Leopardi. Em meio ao desastre, existe essa realidade inextirpável que se ergue impetuosa, grandiosa. Se nós seguíssemos isso de vez em quando...
A testemunha é alguém que usa a razão dessa forma, que tem essa lealdade consigo mesmo, que é definido por esse pensamento dominante, e por isso não pode entrar em relação com coisa nenhuma sem que lhe venha o desejo de tudo. E esse é o juízo. É com essa humanidade que precisamos comparar tudo, é essa exigência que aparece no relacionamento com tudo; mas é preciso ter a lealdade que vemos em Giussani e em Leopardi: só alguém que leva a sério esse pensamento dominante, essa exigência que está nas vísceras de cada um de nós, que aparece na relação com tudo e que não se contenta com menos do que essa exigência de tudo, pode entender realmente o que é a experiência.
3. A implicação última da experiência humana
“Aquilo que caracteriza a experiência é entender uma coisa, descobrir o seu sentido. A experiência implica, portanto, a inteligência do sentido das coisas” (Educar é um risco, cit., p. 88). E quando é que eu entendo as coisas? Quando dou a razão de todos os fatores implicados na experiência. Quando dizemos que julgar é artificioso, dizemos algo que é contestado por nossa própria experiência. É preciso olhar para essa experiência simples que fazemos diante da realidade, diante das montanhas, diante do canto, para reconhecer como logo, simultaneamente, aparece com tudo isso o juízo: “Que bonito”. E há quem diga que é artificioso... Artificiosos somos nós, que não nos damos conta realmente do que acontece quando fazemos experiência.
Aconteceu mais de uma vez nos últimos meses, durante os passeios que nossos grupos faziam nas férias – como me contavam alguns universitários –: vendo oitocentas pessoas subindo em silêncio, os turistas paravam e perguntavam “quem são vocês?” Num desses episódios, chegou um casal e perguntou: “Quem são vocês?” “Universitários.” “Sim, mas quem são? De onde é que vocês vêm?” “De La Thuile.” “Certo, mas de onde vocês vêm?” “De Milão”, “de Palermo”... “Não, não, não: quem são vocês, de onde é que vocês vêm?” “Somos de Comunhão e Libertação.” “Ah! É uma maravilha ver vocês subindo.” Essa insistência que teima enquanto não chega à origem é artificiosa, é algo acrescentado? Ou são pessoas que não detêm o seu humano diante da provocação da realidade, que são leais com essa provocação? Tanto é que os jovens ficaram impressionados com essa lealdade: “Percebemos essa pergunta em nós também, uma pergunta sobre a origem última daquilo que tínhamos bem à nossa frente, e que teria sido artificioso segurar antes de chegar a uma resposta adequada”.
Outros dois amigos escrevem contando a experiência de suas férias: “Gostaríamos de lhe contar um episódio que nos aconteceu no último dia de nossas férias, quando já estávamos preparando as malas. Uma explicação: passamos aqueles dias com alguns amigos num hotel em que cada família tinha seu chalé, mas, no almoço e no jantar, comíamos sempre juntos, além, obviamente, de passar juntos o dia todo. Ao lado dos nossos chalés ficava o de um casal, marido e mulher na faixa dos sessenta anos; eles viam muitas vezes o nosso vaivém de um chalé para outro, como os nossos filhos nos braços ou o filho dos outros, e a mesinha deles, em todo almoço e jantar, ficava sempre perto da nossa mesona de oito adultos e três crianças, que nós montávamos no jardim, de frente para o chalé deles. No dia em que íamos partir, o senhor chegou perto do Ciccio, um dos nossos amigos, e lhe disse: ‘Vou lhe fazer uma pergunta e você precisa me dar uma resposta direta. Nós observamos muito vocês nestes dias, vimos como vocês comem juntos, como rezam, como ficam com seus filhos, mas, além da amizade que vocês têm (não sei se vocês são colegas de trabalho, mas não acho que seja suficiente para explicar o que eu vi), qual é o fio condutor que os une?’ Ciccio respondeu a ele que somos do Movimento, que somos cristãos e que foi isso que uniu nossas vidas e nos tornou amigos. Ele respondeu: ‘Eu sabia!’, e explicou que, em Pistoia, onde mora, teve a oportunidade de encontrar pessoas do Movimento. Disse ainda que ele também é católico e depois nos agradeceu pela companhia que fomos para ele e sua esposa, e nos disse: ‘Vocês são um espetáculo!’” Não existe experiência, enquanto não chegamos a compreender. Mas, para compreender, é preciso não parar até encontrar uma resposta exaustiva ao que vemos: amigos juntos de um jeito tão diferente. E é então que dispara a pergunta: “Mas qual é o fio condutor que une vocês?” É uma coisa própria de um ser humano, basta para isso ser um homem vibrante de humanidade. Prossegue a carta: “Quando Ciccio nos contou esse diálogo, nós nos comovemos, com a mesma comoção de que a Rose, de Uganda, sempre fala, a de ver o Mistério acontecer, operar. Ficamos muito impressionados com o uso da razão feito por esse homem, que, olhando para nós, deixou-se surpreender e sobretudo interrogar; ele observou a simples forma como estávamos juntos (comer, conversar à mesa, rezar) e viu algo diferente que o impressionou, mas não parou nesse sentimento de surpresa, fez a si mesmo uma pergunta: de onde será que vem essa maneira de serem amigos? Qual pode ser o fio condutor que os liga? Tentou buscar uma explicação, e, quando percebeu que nenhuma tentativa sua de resposta podia bastar para dar plenamente as razões dessa diversidade, veio diretamente a nós e nos perguntou, para ter uma resposta clara”.
É simples: esse é um eu empenhado com aquilo que prova. Quem de nós sente que essa exigência de entender é algo estranho, colado por cima da beleza da experiência, algo que acaba com o encanto da experiência? Questionar-me para entender faz parte da experiência que eu faço, do contrário a experiência é incompleta, não consigo entender, captar tudo o que vejo à minha frente! Assim, quem tem essa humanidade não sente o juízo como algo artificioso ou estranho.
Vou dar o exemplo que Dom Giussani nos deu muitas vezes, elementar em sua simplicidade, para desmontar de uma vez por todas essa ideia de que o juízo é algo artificioso: quem é que sente como artificioso, diante de um buquê de flores, perguntar-se quem o enviou? Não é que essa pergunta arruíne alguma coisa: faz parte, simultaneamente, do contragolpe das flores que eu encontro em casa perguntar quem as enviou para mim. Alguém sente o fato de perguntar a origem última da presença dessas flores como algo intelectual? Cada um pode responder por si mesmo. O “quem” é a implicação última dessas flores que eu tenho à minha frente. Basta apenas não ser uma pedra! Não é preciso fazer nenhum percurso estranho: basta simplesmente acusar o contragolpe, pois dentro do contragolpe já está toda a implicação.
Assim, Dom Giussani nos diz que não existe experiência enquanto a pessoa não reconhece “Deus como a última implicação da experiência humana, portanto, da religiosidade como dimensão inevitável de autêntica, exaustiva experiência” (ibid., p. 89). Comparemos aquilo a que chamamos “experiência” e essa afirmação, e vamos perceber o quanto nós a reduzimos...
Isso é tão simples, que escolhi como título para o nosso encontro esta frase de Leopardi: “Mulher, ao meu pensar se deparou/ Qual um raio divino a tua beleza” (“Aspásia”. In: Cantos, cit., p. 133). É tão simples, que Leopardi não pode evitar, no contragolpe da beleza da mulher que ama, descobrir o raio divino. A experiência, em toda a sua simplicidade, é isto: a beleza da mulher leva Leopardi a reconhecer, ali dentro, o raio divino. É exatamente o que pretendemos dizer quando afirmamos que não existe verdadeira experiência que não tenha dentro o Mistério, que não implique o Mistério como explicação exaustiva. Mas Leopardi diz isso porque precisa dar uma de intelectual? Leopardi não podia viver sua experiência de relação com a beleza da mulher sem que isso o remetesse para o Mistério, sem que o fizesse perceber o raio divino. Mas, para isso, é preciso um homem como Leopardi; ou seja, para não parar antes, é necessária uma lealdade com o pensamento dominante que volta à tona constantemente em meio ao naufrágio universal.
Para nós isso não é imediato, é algo difícil, porque, como explicamos outras vezes, existe uma crosta sobre as nossas exigências elementares, e só se trabalhamos nela podemos ultrapassá-la. Vimos o quanto de dificuldade temos para chegar a descrever a experiência em sua totalidade (em agosto tivemos uma experiência disso, nos gestos que fizemos juntos). Mas é o que Dom Giussani sempre nos disse: que alguém que diz “eu” com toda a consciência de si mesmo, com toda a autoconsciência, não pode evitar implicar o Tu que o faz. “Eu sou ‘Tu-que-me-fazes’” (O senso religioso, cit., p. 150), essa é a fórmula da experiência completa. “Assim, não posso dizer ‘eu sou’ de forma consciente, segundo a totalidade da minha estatura de homem, a não ser identificando o eu com ‘eu sou feito’” (ibid., p. 151). E para entender o quanto estamos distantes disso basta salientar quantas vezes dizemos “eu sou” sem essa autoconsciência.
Sem a percepção e o reconhecimento do Mistério como fator da realidade, não existe experiência, seja lá do que se trate; e isso nos torna conscientes da deficiência que temos, uma deficiência que torna árduo, difícil, não óbvio o percurso da razão até o Tu, até essa última implicação da experiência humana que já se encontra dentro da própria experiência. Não é necessário acrescentá-Lo. É o que nos ensinou Giussani com a imagem dos escaladores: somos “como os escaladores de cem anos atrás, que [para subir ao cume] deviam enfrentar a longa caminhada de aproximação” (Por que a Igreja. Trad. Neófita Oliveira e Durval Cordas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 55). Só conseguimos dar conta disso se sentimos urgir dentro de nós essa exigência de uma explicação total que só o Mistério pode nos dar.
4. A prova da experiência: dar-se conta de crescer
Mas, depois de tantos anos de Movimento, nós ainda vemos a dificuldade que temos, e isso fica evidente em muitas ocasiões. Eu, por exemplo, pude vê-lo claramente na assembleia dos responsáveis dos universitários, em agosto, quando procurávamos entender realmente até o fundo o que é a experiência; pelo menos em três momentos durante a assembleia eles deram a resposta correta, mas, quando eu lhes pedia que repetissem, não conseguiam: tinham dito aquilo por acaso. Essa é a razão pela qual Dom Giussani insiste – e isto é decisivo para nós, porque nós muitas vezes dizemos coisas verdadeiras, mas não nos damos conta delas –: “A ‘experiência’ caracteriza o fato do dar-se conta de crescer” (Educar é um risco, cit., p. 87). Se nós não nos damos conta disso, ainda que muitas vezes o digamos, nós – como Davide dizia antes – voltamos sempre ao ponto de partida. Dá para ver que não fazemos experiência porque a experiência não nos faz crescer na autoconsciência. E então voltamos à confusão.
Eu fico maravilhado quando vejo com que clareza, com que evidência Dom Giussani identifica todos os fatores da experiência, e assim pode continuar hoje a nos acompanhar. Muitas vezes, porém, nós dizemos a nós mesmos: “Claro, claro, eu já sei de tudo isso”. Já que ouvimos essas coisas um monte de vezes e as repetimos, parecem coisas que já sabemos. Eu entendo muito bem, pois aconteceu o mesmo comigo: eu pensava que sabia determinadas coisas, e por isso a maior decisão de toda a minha vida foi aceitar começar a entender o que eu pensava que sabia, aprender o que eu pensava que sabia. Não estou reprovando nada a ninguém, porque sei muito bem, por experiência própria, qual é o problema, sei muito bem: eu repetia todas as palavras certas, mas, depois, não ficava na realidade. Ao contrário, o que me fez percorrer um caminho foi justamente aceitar recomeçar. E essa era uma coisa que Dom Giussani tinha muito claro. Eu fico de queixo caído quando releio o que ele diz a respeito de sua primeira aula: “Desde a minha primeira aula, eu sempre disse: ‘Não estou aqui para que vocês considerem como suas as ideias que eu lhes transmito, mas para lhes ensinar um método verdadeiro para julgar as coisas que eu lhes direi. E as coisas que lhes direi são uma experiência que é o resultado de um longo passado: dois mil anos’” (ibid., p. 16). Ele sabia que não podia ajudar ninguém se não pusesse o eu daquelas pessoas em movimento, que não bastava aquilo que ele dizia, não bastava nem mesmo o fato de ser testemunha: ele tinha consciência de que só podia ajudar oferecendo um método para que seus alunos pudessem julgar todas as coisas que dizia. Ou seja, desde o início Dom Giussani desafia o coração daqueles que o Senhor põe à sua frente. É a exaltação da pessoa: você é capaz de julgar porque existe esse “pensamento dominante”, essa “torre” em meio ao “naufrágio universal” que lhe permite julgar, fazer um caminho para sair da confusão. E acrescenta: “O respeito a esse método caracterizou, desde o início, o nosso empenho educativo, indicando com clareza o seu objetivo: mostrar a pertinência da fé com as exigências da vida [ou seja, o desejo de felicidade]. Pela minha formação na família e no seminário, primeiro; posteriormente, pela minha meditação, estava profundamente convencido de que uma fé que não pudesse ser descoberta e encontrada na experiência presente [de cada um], confirmada por esta, útil para responder às suas exigências, não seria [...] capaz de resistir num mundo onde tudo, tudo, dizia e diz o contrário” (ibid., p. 16). Primeira aula!
5. Experiência cristã
Isso que Dom Giussani descreve falando da experiência em geral acontece ainda mais eminentemente na experiência cristã. Por que é ainda mais fácil na experiência cristã? Ele sempre nos disse: porque, quanto mais excepcional é a presença que eu encontro, mais fácil é reconhecê-la. Quanto mais belas são as montanhas, mais fácil para nós é reconhecê-Lo; quanto mais bela é a mulher por quem me apaixono, mais fácil é reconhecê-Lo. A exigência aparece mais facilmente, toma mais você, agarra-o mais, é tão imponente, que nos surpreendemos diante dos fatos excepcionais. Podemos estar distraídos, mas diante de certas coisas é impossível não ter um sobressalto, não nos perguntarmos Quem as torna possíveis. Isso é universal, como eu pressenti quando estive no Brasil e uma moça metodista, a Natália, disse numa assembleia: “Este mês a tarefa que combinamos foi: encontrar algo que corresponda ao nosso coração. Eu encontrei realmente algo que correspondia ao meu coração; são estas pessoas da Associação da Cleuza e do Marcos. Porque, por mais que pareça difícil de acreditar, nós vivemos numa época em que, se você diz que é católico, os evangélicos se afastam, vão embora, e, se você diz que é evangélico, aí são os católicos que se afastam. Eu vim até aqui e disse a que religião eu pertencia. Depois, quando voltava para casa, pensei: você se dá conta do que isso que você disse vai provocar na sua vida? Mas aconteceu o contrário do que eu pensava; quando cheguei aqui, todos sorriam para mim, as pessoas me perguntavam se ia tudo bem comigo. Eu não entendia, mas respondia: ‘Tudo bem’. Vinha um atrás do outro e dizia: ‘Tudo bem? Como é que vai?’ E eu comecei a entender o que é Deus, o que é a fé em Deus: nunca, em nenhum outro lugar, eu me senti tão acolhida, tão amada como aqui. Em tantos anos de vida, nunca me senti tão respeitada”. Para dar as razões da experiência de ser respeitada e amada desse jeito, Natália teve de implicar o divino, de tanto que é uma coisa extraordinária.
Só se aceitamos essa implicação última em cada experiência é que podemos vencer a confusão. A contribuição que Dom Giussani nos dá, testemunhando-nos que Deus é a implicação última da experiência, é a resposta mais adequada à pergunta. Mas nós, muitas vezes, mesmo vendo fatos excepcionais continuamos na confusão, porque seguramos a exigência que aparece, detemos a pergunta inevitável a respeito de Quem torna possível toda essa beleza. Vejam como Dom Giussani o descreve, como o testemunha para nós: “O encontro – do qual parte a imagem persuasiva de Cristo, em que intuímos que Cristo é algo que é pertinente à vida, que interessa à vida – se dá com uma companhia ou mesmo com uma única pessoa, não na medida em que você entende que Cristo está lá dentro, mas na medida em que faz você dizer: ‘Mas como é que estas pessoas são assim?’ [...] Portanto, você começa este caminho encontrando um companheiro, uma companheira, ou vendo um grupinho, que têm algo interessante, e vai atrás. E ouve estes que lhe dizem que o que têm de interessante vem do fato de que ‘o Senhor está presente’; e vai atrás deles um pouco por curiosidade, mas sem ser definida por essa coisa, sem ser determinada por essa coisa. A certa altura, porém, esse chamado de atenção aumenta, [...] você fica mais impressionada com essa ideia, com essa palavra; e fica mais impressionada com o fato de as pessoas lhe dizerem: ‘Nós estamos juntos por aquele lá [o Senhor]’. Esse é um salto qualitativo em relação à impressão inicial; então você começa a levar a sério aquele lá: [...] quanto mais você acompanha com continuidade essa evolução, mais Jesus se torna mais importante que todos aqueles rostos juntos [este é o nó da questão: que Jesus – Jesus! – se torna mais importante que todos esses rostos juntos]. Melhor ainda: Jesus se torna tão importante, que você entende que sem ele os rostos desapareceriam e você se ‘encheria’! Esse é o destino de muitíssimas pessoas que passam por nós e depois vão embora. Como no poema A lareira, de Pascoli: vão embora para o seu destino, porque não levaram adequadamente em consideração, não foram sérios com essa coisa que a companhia que os atraiu dizia ser seu motivo. A companhia diz: ‘Estamos juntos por isto aqui’; a pessoa não leva essa afirmação a sério e se contenta com a companhia, gosta da companhia; não olha para essa motivação. Depois de algum tempo, eu juro que acaba por abandonar a própria companhia [essa é a consequência, se nós não chegamos ao juízo, porque uma realidade sem motivo adequado se dissolve]! O motivo adequado da nossa companhia é outra coisa. Mas isso é o que deveria vibrar em nossos olhos todos os dias, pois todos os dias é realmente assim” (“Tu” (o dell’amicizia). Milão: Bur, 1997, pp. 175-177).
O sinal de que estamos percorrendo um caminho – Dom Giussani nos diz – é que Jesus se torna mais importante que todos os rostos juntos, não porque eu esqueço todos os rostos juntos, mas porque esses rostos não esgotam toda a exigência de realização que eu tenho dentro de mim; e, se eu não chego até aí, se não chego até Jesus, me encho e vou embora. Assim, se nós não chegamos até aí e continuamos a dizer que este percurso é artificioso (porque o importante é aquilo o que eu apalpo, vejo, e o resto todo é conversa fiada), cedo ou tarde vamos embora, porque querendo ou não isso nunca corresponderá à exigência que temos por dentro, ao pensamento dominante que se mantém, como uma “torre em campo solitário”, em meio ao “naufrágio universal”.
Como não nos comovermos diante desse testemunho de Giussani? Jesus “é o que deveria vibrar em nossos olhos todos os dias” (ibid., p. 177). Sem essa experiência de Cristo, temos apenas um discurso formal sobre Cristo, mas ficamos perdidos e confusos como todo o mundo, presas do niilismo, “esse hóspede inquietante do nosso tempo”, como o definiu o cardeal Angelo Bagnasco. Sem experiência real de Cristo, olhamos para a realidade como todo o mundo. Para entender que isso não é absolutamente óbvio, bastaria que cada um de nós olhasse para a forma como agiu diante dos acontecimentos que têm sacudido a Itália, que – como diz ainda Bagnasco – é “ciclicamente atravessada por um mal-estar tão tenaz quanto misterioso” (Bagnasco, A. Prolusione del Cardinale Presidente. Conferência Episcopal Italiana, Conselho Permanente. Roma, 21 de setembro de 2009). Como julgamos esses acontecimentos? Com que critério? Tanto barulho parece ter uma única finalidade: evitar que façamos a única pergunta realmente exaustiva, correspondente ao coração, a que é feita por Henrik Ibsen no Brand – “Responde-me, ó Deus, na hora em que a morte me arrebata: pode toda a vontade de um homem obter um único fio de salvação [ou seja: pode o homem, com suas forças, realizar uma única ação verdadeira]?” (Brand. Milão: Bur, 2005, p. 240) Todo o resto é uma tentativa de esconder a nossa incapacidade de uma resposta para o mal, nosso e alheio.
É uma experiência o que torna possível também um gesto como o Meeting, em que cada um se sente em casa. E isso se dá, paradoxalmente, não nos escondendo, mas pondo em foco o que somos, o que temos de mais caro, que é o que nos torna interessantes para todos. Sem essa experiência real de Cristo, não existe educação, pois ninguém é capaz de desafiar o coração.
Por isso, é impressionante o que Dom Giussani disse em 1980, num encontro com os professores do Movimento, depois de ler o testemunho de um expoente do Samizdat russo, grato por ser condenado por sua fé à reclusão no lager (durante a leitura da sentença, seus amigos cantaram o hino pascal de Cristo ressuscitado): “E nós, numa época em que existe uma fé como essa, fazemos a nossa comunidade! O que é a comunidade de vocês? O que é o grupo de jovens de vocês? É você diante do mundo, da escola, dos professores, é você diante dos livros, das ideias que circulam, é você, não os seus jovens, não a sua comunidade, não os professores do Movimento, não CL. Esta é a única forma de fazer ressurgirem os professores do Movimento e o próprio Movimento: a sua fé e ponto final. Esta é a questão: a fé vivida em primeira pessoa [como experiência real]. A questão não é o temperamento que você tem, as circunstâncias do ambiente, os alunos que você tem, a incapacidade que você tem diante dos jovens, a classe em que tem sucesso, e aquela em que não tem sucesso de jeito nenhum. Se você estivesse sozinho e não tivesse sequer um ‘cão’ consigo, seria a mesma coisa, mais doloroso, mas menos ilusório e mais puro. Juro a vocês que cedo ou tarde os outros virão! [...] A questão é a fé vivida em primeira pessoa. Eu nunca vou me cansar, quando uso a palavra fé, de lembrar o que essa palavra significa, porque ninguém sabe o que significa, mesmo quando a definem teologicamente. A fé é o reconhecimento estupefato, grato, intimidado e ao mesmo tempo exaltante, de uma presença; porque Deus veio e está entre nós. [...] A coisa bela e presente é o conteúdo da fé, e eu não sei mais nada além disso. ‘Estive entre vós e não soube nada além de Cristo, e esse Cristo histórico, crucificado’, Deus feito homem. Como é possível ser um testemunho, a não ser graças a essa fé, e não por nossas capacidades mentais ou habilidades particulares ou disponibilidade de tempo” (Arquivo de CL).
Por isso, cada um de nós hoje é chamado a decidir se percorrerá todo o caminho da forma como o propõe Dom Giussani, sendo leal com a experiência, ou se voltará a imobilizar-se. Somente se fazemos uma experiência como essa podemos ver a conveniência humana da fé. E não devemos considerar isso óbvio, pois muitas vezes confundimos a intenção de seguir com o seguimento real, ou seja, com a comparação cerrada com o método que Dom Giussani nos propõe. Devemos, em palavras mais explícitas ainda, decidir se queremos realmente nos tornar filhos, pois é assim que ele poderá cada vez mais ser pai para nós, gerar-nos para a humanidade que vimos nele (que tem no Ícaro de Henri Matisse, que escolhemos como imagem para este nosso encontro, a sua representação artística): o sentimento de nós mesmos definido pela consciência da presença do Pai, de modo que cada expressão nossa seja cada vez mais completa como relação com o grande desígnio, para o nosso bem e o bem de nossos irmãos homens. Esses são o desafio e a escolha que cada um deve fazer e em torno dos quais queremos nos acompanhar ao longo deste ano.
(traduzido por Durval Cordas)
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