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Passos N.134, Fevereiro 2012

RUBRICAS

Cartas

UNIVERSITÁRIOS/ A NOITE ANTERIOR À VIAGEM
Caro Carrón, na noite anterior à viagem, depois de uma briga com minha mãe, decidi que não iria aos Exercícios dos universitários. Diante da minha mãe, com quem tenho normalmente um relacionamento dramático, tudo aquilo de que precisava, brutalmente voltou à tona. Apareceu aquela urgência que tinha decidido eliminar um instante antes. Dizia a mim mesma: real é positivo quando ele quer! Se não se mantém diante do fato de que eu quero ser olhada e abraçada, então não se mantém diante de nada mais. Não me importa que minha mãe me foi dada, se Tu que a deu a mim não se mostrar no relacionamento com ela para que eu, então, descubra que me foi dada. Amanhã não vou aos Exercícios porque o título é uma mentira e meu coração não quer ser consolado esquecendo aquilo que aconteceu e ouvindo alguém dizer mentiras”. Depois, lembrei-me da frase de Santo Agostinho: “Meu coração permanece inquieto enquanto não descansa em Ti”. Pensei que nunca descansei neste mundo, vendo a minha necessidade na comparação inútil e desproporcionada com os fatos que tinham me acontecido nos últimos dias. Com efeito, minha decisão estava quase completamente clara porque de manhã, não fui ao local de saída dos ônibus. Quase, porque às 18h30, estava em Rímini. De um lado, me irritava o fato de não ter outra possibilidade para dizer que tudo era uma mentira e, por outro, aquela urgência da noite anterior tinha desaparecido e, por isso, fui de carro com uma amiga. Foi uma das escolhas maiores e mais verdadeiras da minha vida. Você falou sobre mim muito mais do que já fiz, ou faço. Abraçou-me totalmente. Na sexta-feira, quando você começou citando Eliot: “Onde está a vida que perdemos vivendo?”, eu disse a mim mesma: “Como este homem pode acertar o ponto, falar de mim desde a primeira frase?”. E foi assim durante os três dias. Sábado de manhã você me matou. Saí do salão muito provocada e com muitas perguntas. Que, no almoço, vieram à tona. Por um instante, pensei que não interessariam realmente a ninguém, que fossem uma objeção àquilo que você tinha dito. Depois, a Assembleia e a manhã seguinte me aliviaram. Positivo! Você não deixou de fora sequer um pedacinho daquilo que sou, me tomou com toda minha necessidade de entender, de ser amada, de ser feliz, com o meu mal e os meus limites. E quando, por fim, no domingo, você falou daquela “possibilidade, como se fosse possível abrir uma fresta no meio do muro do nosso ceticismo”, abandonei-me completamente ao que estava diante de mim: você, que me falava de um caminho possível. Voltei para casa com o mesmo pedido da quinta-feira à noite, quando estava diante da minha mãe. Mas, diferente daquela noite, estava inteira, aberta e amando-a. As perguntas que tenho são importantes e é isso o que me torna grande, são a evidência, a prova de que foi um Outro que me fez. Domingo agradeci por ter um coração inquieto, tão inquieto que precisei repousar naquele exato instante, diante de você. A experiência que fiz foi esta: a descoberta de que aquilo que desejo é real, e inexoravelmente positivo. E, por fim, descobri que preciso de um lugar e de amigos que me ajudem a manter desperta essa consciência. Preciso de amigos que me ajudem a enfrentar a vida, cada “hora” da vida, como você fez fazendo-me chegar a um juízo assim sobre aquela quinta-feira, sobre aqueles três dias e sobre aquilo que sou.
Gloria

A ATRAÇÃO IRRESISTÍVEL DE UM ENCONTRO
Caro Julián, por causa do meu trabalho, conheci um grande musicista. Por vários fatores, fui convidado por um amigo para ir a casa dele. Vivemos uma noite memorável. Ele é um homem muito culto, e vê a cultura como um fato popular. Durante o jantar, percebendo a sua surpresa em relação a algumas observações nossas, eu lhe disse: “Nós aprendemos essas coisas com um gênio humano que se chama Giussani”. A partir daí, ele começou a fazer perguntas. Quando se despediu de mim, me abraçou e perguntou qual era o livro mais importante de Giussani. Eu não pensei nem um segundo: “O senso religioso”, respondi. Na manhã seguinte, eu lhe enviei um exemplar do livro com um bilhete de agradecimento. Alguns dias depois, ele me escreveu dizendo que Dom Giussani já tinha se tornado “um ponto de referência nos seus pensamentos”. Quando nos encontramos novamente, me disse que tinha lido O senso religioso três vezes e que ali achou uma fonte surpreendente de compreensão das coisas. Em particular, me disse: “Lendo o livro, descobri um homem que ensina a usar a razão para que compreendamos que a razão não é suficiente”. Então, pediu os outros dois livros do PerCurso. Veio à minha casa, onde conheceu minha família e outros amigos nossos. E o diálogo continua. Não para de agradecer pela humanidade que vê em nós, pelo calor, pela profundidade com a qual estamos no mundo. Eu encontro nessa amizade inesperada uma confirmação surpreendente e respeitável daquilo que você repete insistentemente, que o senso religioso é a verificação da fé. A surpresa, para mim, de ver renascer constantemente uma requisição total sobre o instante, sobre a nossa vida – que não nos deixa tranquilos e não nos deixa resignados –, nos torna sedentos e amigos de todos aqueles que vivem a mesma busca; uma presença que nos desperta, nos lança e nos faz retomar o caminho, indo contra as nossas objeções, cedendo àquilo que meu amigo musicista, a respeito da beleza da música, define como “atração irresistível”.
Alberto

GRATIDÃO ÀQUELE QUE ME GEROU EM CL
Caro amigo e pai Dom Filippo, coloquei este título porque foi assim que me senti quando te encontrei. Com quatro anos de sacerdote, ainda não tinha saboreado o sentido de ser padre, quando o padre Paulo me levou até você para que eu conhecesse a fraternidade dos padres de CL. Naquele dia, em pouco tempo, pude perceber homens apaixonados por serem padres e que tinham você como ponto de referência dessa paixão. Não tive dúvida de que ali naquela casa, naquela mesa, havia uma convivência, um modo de ser cristão totalmente diferente do modo “clerical” de se viver, eram, de fato, amigos que se encontravam para falar da vida, do dia a dia. E isso entre uma piada e outra. Ali podia-se ao mesmo tempo perceber a seriedade da proposta: uma companhia de amigos ligados pelo mesmo ponto; e um fato presente: Cristo. Voltei para casa pensativo, algo ali desmontou todo o meu “já sei” com relação ao “modo” de como os padres habitualmente se encontravam para estarem juntos. Comecei a frequentar as reuniões desses “estranhos padres”. Aos poucos minha vida, minha mentalidade de ser padre, tudo foi colocado em xeque! Mas não fui embora porque era evidente que me correspondia. Não sabia como, mas correspondia. No meu primeiro retiro da Fraternidade, em 1999, o tema era: “O milagre da mudança”. Foi aqui que comecei a querer mudar, chorei como criança! Não precisei dizer nada, você não me perguntou nada. Encostei no seu ombro e você só me disse: “Calma, é o milagre da mudança!” Lembra? A partir desse dia tudo na minha vida se tornou intenso. Virei santo? Não! O que mudou? Mudou o juízo, a mentalidade foi mudando aos poucos, porque não se muda uma mentalidade do dia pra noite. Agora eu carregava, graças a você, uma ferida aberta! Quando eu errava você metia o dedo na ferida (me corrigia amando) e eu voltava para o ponto certo. É assim, caindo e levantando, às vezes me atrasando dentro desta estrada, mas nunca tomando outro caminho, como diz Eliot no seu poema. Agradeço a esse carisma que me alcançou através de você que um dia também foi alcançado. Como diz Dom Giussani: É como mão de cola! Veio dele Giussani e agora Carrón. Como Cristo é vivo, dinâmico, presente nestas pessoas. Essa é minha gratidão a você. Já se passaram quatorze anos e poderia elencar tantos fatos que uma carta não comportaria, por isso fico por aqui. Obrigado pela tua paternidade! Teu filho em Cristo.
Padre Gilson, Rio de Janeiro (RJ)

OBSERVANDO-ME EM AÇÃO...
Deus realmente me ama. Eu estava tomada por uma tristeza inexplicável, uma insatisfação intensa diante de algumas coisas desagradáveis em minha vida. Eu não estava deprimida. Eu não estava vendo as coisas piores, ou apenas enxergando o lado cinza. Eu estava vendo bem a dimensão do que eu tinha de bom e de negativo. Mas mesmo reconhecendo que o positivo era infinitamente maior que tudo que estava acontecendo de ruim e desagradável, o meu “eu” estava triste, estava opaco, sem ânimo diante da vida. Era como se eu estivesse vivendo pela metade. Mas eu sabia que não havia nada que realmente justificasse o meu estar assim. Reconhecia ter tudo que sempre sonhei: uma família, um bom marido, uma filha, amigos, bons amigos, uma profissão, uma casa, um lar, afeto, bons relacionamentos e um envolvimento pessoal com a Igreja por meio do Movimento. Mas era como se tudo isso não fizesse a minha alegria, o meu contentamento. Reconhecia que tudo isso era sinal concreto desse Deus que me ama apaixonada e incondicionalmente. No entanto, o coração não vibrava diante de disso tudo. Minha afetividade flutuava. Diante disso, numa adesão Àquele que me faz, passei a olhar o que Ele estava me dizendo mediante o Carrón, o Bracco, o Otoney, o Ignazio... Se eles vibram diante do real e me dizem que eu posso vibrar, desejei fazer o caminho que eles estavam me indicando. E neste percurso me foi dado, de repente, um momento de silêncio. Por uma questão de trabalho precisei esperar mais um dia em outra cidade e, assim, Deus me colocou por algumas horas longe de tudo e de todos. Neste distanciamento, pela primeira vez pude entender o caminho que esses amigos estavam me apontando. Nestes minutos de silêncio, não pude negar a evidência de que o Senhor me dava este momento para olhar as coisas... Lendo o texto do Carrón do Dia de Início de Ano (“Viver intensamente o real”), e lembrando-me da apresentação do Bracco, comecei a experimentar o que é olhar as “coisas”. Eu poderia não me dar conta do que estava sendo me dado, então desde aí, eu percebi a graça de Deus me fazendo despertar do sono em que me encontrava, do coma da minha afetividade diante da vida. Deus me deu aquelas horas de silêncio e eu era capaz de perceber isso e ficar grata, e mais, de ficar feliz com isso. Eu, de repente, vi o meu eu vibrar com aquele silêncio, naquele solitário quarto de hotel que eu não escolhi estar, mas eu sabia que Ele me queria ali. Neste momento eu entendi, na experiência, o que Dom Giussani escreve: “... é a percepção original de um dado” e que Carrón complementa: “Tudo me é dado, presenteado... o que seria a vida se vivêssemos as coisas como ‘dado’, como dom, e se reconhecêssemos assim qualquer coisa presente, e ela nos fizesse vibrar? Todas as circunstâncias seriam diferentes”. Esta viagem foi um presente cuidadosamente preparado para responder ao meu pedido de vida. Padre Ignazio me lembrava dias antes: “Vibrar diante do real é um dom e por isso deve ser pedido”. E eu pedi. Cada detalhe encerrava um cuidado para o meu “eu”, para que eu não deixasse de perceber de maneira absolutamente evidente a ocasião para entender o percurso proposto. Deixar de ser refém das circunstâncias para me dar conta, de fato, que dentro do real está, mesmo com todas as dificuldades e limites, a fonte do ser que é providencial, que é misericordioso, que é mais, muito mais do que eu posso imaginar ou ver. O Ser, o Senhor é a fonte de onde flui a minha vida agora e isso não pode ser óbvio e não está sendo óbvio, graças a este momento dado por Deus.
Regilene, Salvador (BA)

A EXPERIÊNCIA DA COLETA
A Coleta de Alimentos esse ano me fez compreender a força de um gesto humano que tem sua origem numa experiência autêntica de comunidade. A partir de uma experiência real de comunhão, entre pessoas de tantos lugares diferentes, nasceu a caridade: conosco e com “desconhecidos” a quem os alimentos seriam destinados. Ninguém era estranho: quem abordávamos, as pessoas com as quais trabalhamos ao longo do dia, todas assumiam o rosto de um amigo, tinham no semblante a oferta de uma companhia. A prova disso aconteceu vinte dias depois da Coleta, quando encontrei o motorista do ônibus do meu bairro que foi ao supermercado no dia da Coleta e fez também a sua doação junto com a família – que eu pude ter a alegria de conhecer. Ele me disse: “Dessa vida não levamos nada mesmo, se não é um ajudando o outro”. Fiquei com suas palavras ressoando em mim como gratidão, porque o que de fato importa estava sendo afirmado na beleza daquele dia que ele não tinha esquecido e nem eu.
Giovanna, Ribeirão Preto (SP)

COLETA DE ALIMENTOS NA ITÁLIA: O DOM DOS ÚLTIMOS
Estava um pouco cético em propor a Coleta de Alimentos. Na prisão, durante as festas de fim de ano todos estão tristes e quase sempre respondem mal às propostas, mas eu tentei assim mesmo. Comecei a falar com um pouco de receio, mas logo começou a “rádio prisão”. A maior surpresa veio daqueles jovens que não queriam saber da Coleta. Na manhã de 26 de novembro, a data nacional do evento na Itália, antes de ir trabalhar eles passaram na minha cela e me pediram se quando eu fosse levar nossas doações, poderia passar com o carrinho para pegar as deles. Até ali, pensei que fosse uma brincadeira para nos gozar, porém mudei de opinião e entendi que tinha acontecido algo grande em seus corações. No salão em que a Coleta estava sendo feita, vi chegar pessoas que, mesmo não tendo nada na cela, levavam um pacote de macarrão, de açúcar ou de farinha. Eu e Francesco nos olhamos e, comovidos, dissemos: “Devemos seguir o exemplo deles. Olha de onde veio o gesto mais bonito: do pobre”. Um deles, que não pôde levar nada, disse: “Eu não tenho nada, só posso rezar por eles, para que alguém lhes dê um trabalho”. Espontaneamente eu disse a ele que aquilo que oferecia a Jesus já era muito, nem todos se lembram de rezar pelo outro. Um, que trabalha conosco, descendo as escadas, reclamava que tudo era apenas para aparecer, e disse: “Só os bajuladores participam dessa Coleta, eu não dou nada, nunca dei. Fico pensando naqueles que vivem no quarto andar que não têm nada e ninguém lhes dá nada, esperam a comida que eu faço para eles”. Eu lhe disse: “Você acha que somos bajuladores porque fazemos isso para quem precisa fora daqui, mas você é um bajulador, porque faz comida não só para aqueles do quarto andar, mas para toda a prisão e todos os dias. Você não percebe a sorte que tem? Pense bem no gesto cotidiano que você faz para o seu próximo”. Não nego que ele ficou mais irritado ainda, mas na segunda-feira me olhava com um meio sorriso. Nesta pequena cidade, as refeições são garantidas. Não são como as de um restaurante, mas existem, assim como o mau humor daqueles que estão desempregados e não conseguem chegar ao fim do mês é idêntico, mas uma coisa a mais existe: a esperança de que tudo possa melhorar, de que tudo possa voltar à normalidade. Acredito que se nos lembramos de quem nos criou e nos indica o caminho, se temos fé nEle, tudo se torna mais fácil.
Franco, casa de detenção Due Palazzi, Pádua (Itália)