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Passos N.135, Março 2012

LEITURA - O MESTRE E MARGARIDA

E o diabo disse: “É um fato”

por Adriano Dell´asta

Romance complexo, como nenhum outro, de criações fantásticas, O Mestre e Margarida tem traços excepcionais já na própria história; escrito e reescrito ininterruptamente durante dez anos, entre o final da década de 1920 e a morte do escritor, só pôde começar a ser publicado no final da década de 1960, depois de correr o risco de desaparecer, condenado ao esquecimento pelas mesmas razões que levaram seu autor a ser mal visto pelo sistema. Numa impressionante carta a Stalin, em março de 1930, ele se definia como um escritor “místico” e que necessitava da liberdade como os peixes precisam de água.

A complexidade do texto já aparece em sua estrutura, um cruzamento de três histórias com tom e colocação espaço-temporal radicalmente diferentes. O primeiro núcleo narrativo é constituído pelas aventuras de uma brigada de diabos na Moscou comunista e ateia dos anos 30. Parece que Bulgákov teve a primeira ideia do romance depois de ter assistido, pelas ruas de Moscou, dia 7 de janeiro de 1923 (dia do Natal ortodoxo), a uma estranha procissão na qual era celebrada uma nova festividade, o “Natal da Juventude Comunista”. O segundo núcleo – quase que em contraposição direta a essa violência, que não se contentava em blasfemar contra Deus, pois queria até excluí-lo da história – é justamente a história do processo de Cristo e da sua paixão contada como o relato de uma testemunha ocular excepcional, o próprio diabo. O terceiro núcleo é a narrativa do amor de Margarida pelo Mestre, um escritor que começou a escrever um romance histórico sobre esse tema e foi banido, chegando quase a enlouquecer e a queimar tudo o que havia escrito até então. Mas... graças ao amor de Margarida e à intervenção dos diabos, “os manuscritos não queimam” e, ao final de uma série de aventuras, nós temos a possibilidade de reler a história.

O tema que percorre todo o romance e o torna fascinante é justamente esse desafio para reencontrar a história, tanto o texto do romance como a realidade mesma e todo o seu mistério, desafio que só pode ser vencido por quem ouve, por quem tem a curiosidade de ver, renunciando à pretensão de saber e possuir tudo a partir de um esquema pré-definido. É o que nos é sugerido na cena de abertura do romance, quando dois intelectuais comunistas procuram convencer um estranho personagem – que ainda não sabem que é o diabo – sobre a inexistência de Deus. É uma disputa acirrada, cujo sentido é dado pela troca de golpes finais, quando um dos dois rebate o diabo, que havia acabado de lhe dar uma série de elementos racionais (filosóficos, históricos, científicos, astrológicos...) para reconhecer a existência de Deus: “Desculpe, professor, mas a respeito dessas coisas nós temos um ponto de vista diferente”; e o diabo, renunciando a todas as suas capacidades, vai ao coração da questão e conclui que “não precisamos de nenhum ponto de vista”, pois, como dirá mais adiante: “É um fato. E o fato é a coisa mais teimosa do mundo”. E assim começa a narrar a história da Paixão como uma testemunha ocular, que conta os fatos que acompanhou pessoalmente, o acontecimento do qual foi contemporâneo. E “acontecimento” em russo se diz sobytie, literalmente “estar com”.

O Mestre e Margarida

Mikhail Bulgákov
Ed. Alfaguara, 2010
pp. 456