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Passos N.135, Março 2012

SAÚDE / RIBEIRÃO PRETO

Experiência preciosa

por Silvia Regina Brandão

Em meio à agitação de final de ano letivo chega um convite inesperado do Doutor Sergio e da Professora Carmem de Ribeirão Preto (SP): participar do XIV Encontro Anual dos Grupos Comunitários de Saúde Mental, no qual são apresentados depoimentos e reflexões sobre o tema “Descobertas preciosas: pessoas e acontecimento”. Uma proposta surpreendente e irresistível


Numa manhã ensolarada e quente de sábado, cerca de 300 pessoas reúnem-se num anfiteatro do campus da USP de Ribeirão Preto e Doutor Sérgio inicia os trabalhos convidando todos a cumprimentar quem está ao lado, a exemplo dos médicos japoneses que antes de socorrerem as vítimas do terremoto as cumprimentavam curvando-se diante delas, como é costume no Japão. Recordar que estamos diante do outro como uma presença é o início do tratamento. Ele diz que todo o sentido do trabalho que iríamos fazer é que em algum momento pudéssemos ser surpreendidos por algo, pelo outro como uma presença para mim. Estão presentes pacientes dos ambulatórios de Saúde Mental, do Hospital Dia, seus parentes, pessoas da comunidade, médicos, psicólogos, profissionais de saúde e estudantes. Eles partem da atenção à experiência cotidiana e de um exercício de generosidade para compartilhar o que se considera relevante, construindo uma rede de amigos em torno deste trabalho que aposta no valor da pessoa humana e da realidade.
Na primeira parte do Encontro acontece o Sarau Comunitário. De modo muito simples, pessoas que não são artistas, vão à frente do auditório e partilham canções e poemas preciosos para cada uma delas. Uma senhora conta que estava muito triste porque teria que passar mais um final de semana no hospital e encontrou forças para viver esses dias quando descobriu um poema em um livro ali no hospital. Um grupo de terceira idade, que se reúne uma vez por semana, no Centro de Saúde, canta a canção A Praça, explicando que na história deles esse era um espaço importante, lugar de encontros, conversas, namoros e festas. Um estudante de medicina canta a música Paciência, de Lenine, e comenta: “Por meio dela eu entendi que a gente precisa ter paciência pra encarar os momentos da vida, mas a vida continua sempre passando e a gente precisa dar respostas pra vida, pra que ela consiga levar a gente junto com ela”. Uma senhora conta que quando estava internada ficou amiga dos estudantes de medicina e junto com eles convidou outros pacientes, ex-pacientes e funcionários do hospital para um Canto Comunitário, que aconteceu no corredor do hospital, onde todos cantavam, seguiam cantando e isso a deixou muito feliz.
Logo em seguida tem início a mesa redonda: “Descobertas Preciosas: Pessoas e Acontecimentos” : são oito pessoas que se dispõem com generosidade a partilhar experiências pessoais valiosas. Como exemplo do que ocorreu, destaco algumas intervenções. Um paciente disse: “Eu fui criado com os meus pais e meus avós. E o carinho que os meus avós tiveram comigo era recíproco. Ainda muito jovem, na minha infância, com três, quatro anos, antes de ir pra minha cama os meus avós me colocavam na cama deles e entre os dois, ali, a gente rezava. Rezávamos o Pai Nosso. E passados muitos anos, quando meus avós já tinham falecido, um dia eu estava recobrando todas as passagens com os meus avós e veio essa, e eu tive a sensação de sentir – porque todos nós temos um cheiro característico – o cheiro dos meus avós. É pra mim muito emocionante, porque a cada momento que eu lembro eu sinto a presença, e quando acontece afirma pra mim que eles não morreram, eles estão no meu pensamento. E a alegria pra mim hoje é saber que eu também faço parte de uma certa importância na vida de uma pessoa. É a minha filha, e ela fez na formatura de doutora, uma homenagem, dizendo da importância que eu também tive na vida dela”. Outra pessoa fez seu depoimento e contou: “Eu vou falar um caso precioso que aconteceu na minha casa. No mês passado o meu vizinho, que tem 18 anos, decidiu revelar pra mãe que ele era homossexual. Só que a mãe dele não aceitou e expulsou ele de casa. Como a gente se conhecia desde criança, desde o tempo da escola, ele foi na casa da minha mãe pedir pra ela se ele podia ficar lá por uns tempos. Aí minha mãe falou: ‘Você vem a tarde que eu te dou a resposta’, porque ela queria conversar com os filhos primeiro. Aí nós três meninas aceitamos que ele ficasse lá em casa por uns tempos, só que a última palavra lá em casa é do meu irmão, que é o único homem da casa. Quando ele chegou do serviço minha mãe comentou o que estava acontecendo. Ele falou bem assim: ‘Mãe, eu vou dar uma opinião, mas não é que sim, nem que não. Você só olha pra trás e lembra do nosso passado’. Por que do nosso passado? Porque quando a gente morava na Bahia deu uma enchente e perdemos tudo o que a gente tinha. A barbearia do meu pai, a nossa casa, tudo. Nós só ficamos com a roupa do corpo. Aí meu irmão que morava aqui em Ribeirão ligou pra minha avó pra pedir notícias da gente, pra saber o que tinha acontecido. E ele mandou 5 mil cruzeiros, que era o dinheiro da época. A gente achou que ia dar pra vir da Bahia até aqui, só que o dinheiro não deu. A gente teve que pedir esmola na rua pras pessoas, teve que dormir em casa abandonada, sem porta e sem janela, teve que pedir carona. Mas a maior parte fizemos a pé. Aí minha mãe ficou pensando nisso tudo. Ela é muito reservada, e ela gosta das coisas certas. Aí o meu irmão falou que, por ele, ela podia aceitar o rapaz. A gente achou que ela não ia aceitar, porque falamos que ela tem o coração de pedra, mas assim de brincadeira, sabe. Depois ela mandou a minha irmã ligar por menino, e hoje ele está morando na minha casa. E isso foi uma coisa muito preciosa pra mim porque eu imaginava que a minha mãe ia dar um não. Mas eu acho que se o meu irmão não tivesse falado pra ela pensar no nosso passado ela não teria aceitado. Depois disso eu consegui ver minha mãe com outros olhos. Não aquela mãe rígida que quer tudo certinho, mas aquela mãe que tem hora que quer um carinho, quer um abraço, quer um beijo, mas não consegue falar pros seus filhos. Minha mãe é assim. Mas eu estou muito orgulhosa dela”.
Outra paciente ainda, nos relatou o seguinte: “A princípio, para mim foi um desafio participar do grupo comunitário, visto que o nome do tema do ano era ‘Descobertas Preciosas’, e naquele momento da minha vida eu não estava conseguindo ver nada de precioso, mas mesmo assim fui. No decorrer dos encontros eu comecei a aprender a descobrir coisas preciosas no meu próprio cotidiano, e isso foi muito interessante. Vou relatar um fato que está relacionado com a minha irmã. Ela é solteira, e quando se mudou de cidade desenvolveu um quadro de depressão e também começou a desenvolver anorexia. E não aceitava ajuda, não aceitava que estava doente. Mas chegou um ponto que ficou muito grave. Um dos meus três irmãos a trouxe para Ribeirão Preto. Levei minha irmã para o Hospital das Clínicas. Ela não queria entrar, achando que iam dar comida pra ela, falando que eu estava traindo ela, e eu falei: ‘Aqui não é restaurante, é um pronto-socorro’. Mas ela ficou brigando comigo. E, de repente, ela disse assim: ‘Eu vou me matar’, e levantou. E todas aquelas pessoas que estavam esperando pra ser atendidas – que vocês sabem que não são poucos –, levantaram e fizeram uma parede humana sobre ela, impedindo que passasse ali. Aquilo me chamou a atenção, porque naquele momento percebi que há momentos em que as pessoas esquecem os seus próprios interesses para se interessar pelos outros, e foi isso o que elas fizeram, esqueceram suas dores e se levantaram para proteger a vida da minha irmã. Então eu vi que ainda existem pessoas assim, que mesmo com dor, com interesses pessoais, colocam de lado para se interessar por uma pessoa. Então esse foi um acontecimento. Continuando, ficando lá oito horas, o médico deu um encaminhamento pra ela falar com outra médica, pois quem sabe ela poderia ajudar. Quando a médica atendeu a minha irmã foi muito amorosa, explicou pra minha irmã que ela não trata de anorexia,... mas que ela ia pedir os exames pra agilizar. E explicou pra minha irmã, conversou muito com ela. Bom, nesse ínterim o meu irmão conseguiu que fizesse os exames. E, quando os exames ficaram prontos, a minha irmã me pediu para levá-la naquela doutora. Eu falei: ‘Olha, é o seguinte: a doutora tem uma agenda lotada, lá ela não atende pessoas com anorexia’. Mas, pra não contrariar ela, pra não achar que eu tava com má vontade, eu falei ‘levo, tudo bem’. Quando nós chegamos lá, nós sentamos na recepção junto com os outros pacientes, e a atendente falou: ‘olha, infelizmente a doutora não se encontra no consultório’. Mas, para a sorte dela, a médica entrou pela recepção, chegando lá no consultório e nos viu. Aí ela nos cumprimentou e a minha irmã se levantou e falou: ‘doutora, eu queria muito fazer um pedido pra senhora. Eu gostaria que a senhora cuidasse de mim, porque a senhora me ajudou a novamente ter vontade de viver, e eu senti confiança na senhora. Eu queria muito que a senhora me ajudasse’. Ela falou: ‘Ganhei o dia! Olha, você não sabe a alegria que você está me dando. Eu vou cuidar de você sim, e com muito carinho. Vamos lá dentro, vamos agendar um dia’. A minha irmã era simplesmente mais uma ali com aquele monte de pacientes, mas a doutora fez a diferença. Ela disse ‘ganhei o dia’ porque um paciente quer ser tratado por ela. Então aquela atitude da doutora mexeu muito comigo. Quando saímos de lá eu disse para a minha irmã: ‘Sabe, se ontem alguém falasse assim pra mim defina o que é um médico pra você, eu diria que o médico é aquele que salva vidas. Mas depois da atitude que essa doutora teve o meu conceito mudou, e a minha definição também mudou. Hoje eu diria que médico é aquele que ama a vida a ponto de dar de si mesmo para salvar vidas’. A atitude dessa doutora me fez mudar a minha opinião e ver que existem coisas muito preciosas ao nosso redor. Pessoas de quem a gente nem imagina vêm preciosidades, atitudes maravilhosas, amorosas, humanitárias, que faz a gente se tornar uma pessoa melhor, e ver nos outros algo melhor”.
Ao final da mesa redonda, Doutor Sérgio agradeceu a generosidade das pessoas que, prestando a atenção em suas vidas, aprendem com ela e compartilham com todos. Lembrou comovido que são tantas histórias belas e preciosas, mas que bastaria uma desde que não a esquecêssemos e seu valor ficasse conosco, presente para nós. É impossível não se comover diante daquelas pessoas, “eus” constituídos, que vibram diante da realidade, da vida que pulsa nos acontecimentos concretos, imprevistos: na circunstância dramática da doença, no acolhimento do vizinho ou dos avós, no amor de alguém que supera seu limite para ajudar o outro, na verdade que comunica um poema ou uma canção. A realidade está plena de preciosidades que atraem e movem quem presta atenção e se deixa tocar por ela. Em cada relato que ouvi naquela manhã há alguém – um “eu” – que está presente e que percebe na sua circunstância um convite, um chamado que vai além do que aparece imediatamente, daquilo que o olho capta. Há um mistério, uma beleza que está dentro do que acontece e nos é dado. É um presente que faz o coração vibrar de gratidão, que nos corresponde, nos alimenta, nos gera. Somos gerados e podemos gerar, somos cuidados e podemos cuidar.
Voltei para casa com muita gratidão por ter encontrado uma realidade tão viva, um espaço de saúde, de respiro, enfim, uma morada no mundo, na qual é possível experimentar uma familiaridade, sentir-se em casa entre centenas de pessoas, conhecendo apenas uma dezena delas. Fiz novamente a experiência de que a realidade é positiva. É positiva – mesmo quando existe a dor, a doença, a precariedade – porque guarda um Bem que se revela de modo tão misterioso e fascinante por meio de pessoas ou momentos de pessoas muito precisos e preciosos.



Partir da atenção à realidade

Nestes encontros, buscamos oferecer um espaço para relatos de experiências que os participantes consideram valiosas. Trata-se de uma proposta que estamos desenvolvendo há mais de dez anos. Acho que esta obra vem se desenvolvendo desta maneira, nutrida por contribuições de pessoas que por diferentes caminhos vão se agregando. Por um lado, isto é angustiante porque nos eventos tradicionais chamamos um expert e parece que o problema do conteúdo está resolvido..., mas a gente vive a tensão de buscar construir os grupos com a generosidade das pessoas juntas em torno do exercício de atenção à realidade. Muitas vezes isto parece impossível porque o tempo todo esbarramos na precariedade de todos. Acho que o bonito está aí, na experiência de que a própria realidade venha em nosso socorro. Com isso, começa a amadurecer até mesmo uma certa tranquilidade, pela consciência crescente de que a realidade responde ao nosso desejo de felicidade e, ainda mais que isso, supera nossas perspectivas com realizações nem sonhadas.
Neste ponto, penso em toda a gratidão que devemos ter a Giussani porque nos ensinou o caminho de uma humanidade que espera vibrar com a realidade, alargada até o ponto de desejar o que parece impossível e aberta à novidade. Este caminho educativo tem dado sentido à afirmação de Carrón de que “não faltam as coisas, mas um eu capaz de perceber o que existe”. Neste caminho, vejo crescer em mim uma impensável afeição à realidade. Nesta semana, a mãe de uma grande amiga da Carmen, minha esposa, está muitíssimo doente e eu sentia um pesar por não ter conseguido ir visitá-la. Eu sinceramente odeio ver gente sofrendo e morrendo, mas entendia que não devia me descuidar deste pedaço da realidade que estava por perto. Então parece que o destino deste percurso é aprender a amar a realidade mais do que nós mesmos.
Amadurece a intuição, percebida na chegada ao Movimento, de que a graça ofertada pela realidade pode superar minha capacidade de maldade e amargura.

Doutor Sergio Ishara, Médico psiquiatra