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Passos N.144, Dezembro 2012

IGREJA - Entrevista

"O que espero da fé"

por Davide Perillo

“O homem é culto na inteligência quando é culto no coração”. Da educação de sua mãe ao relacionamento com os não crentes, o cardeal GERHARD LUDWIG MÜLLER nos orienta em relação ao desafio que a Igreja vive este ano. Na conclusão do Sínodo pela nova evangelização, um diálogo sobre o único caminho que não reduz o desejo

“Uma novidade de vida capaz de nos mudar profundamente”. Bastariam essas nove palavras para entendermos o que é que está em jogo, o que Bento XVI está nos pedindo para descobrirmos – ou redescobrirmos – nestes meses. E Gerhard Müller, 64 anos, alemão de Finthen (Mogúncia) – há seis meses chefe da Congregação da Doutrina da Fé (posto ocupado durante muitos anos pelo também alemão Joseph Ratzinger) e, assim, de certo modo, guardião desse patrimônio sem fim – definiu a fé justamente assim, há poucos dias, durante o Sínodo sobre a nova evangelização: uma novidade de vida “plena e perene”. Algo que podemos alcançar estando diante de Alguém que “trouxe a novidade ao mundo ao trazer a si próprio”: Cristo. Não uma doutrina a ser aprendida, não uma série de consequências a serem carregadas, mas, antes de tudo, um fato. Uma Pessoa.
Dom Müller reforça isso num diálogo ocorrido logo após o Sínodo. É muito cedo para arriscar balanços, para entender como e onde os conteúdos que emergiram na Sala dos encontros – a começar pelas contribuições do Pontífice – poderão produzir frutos. Mas é uma ocasião ótima para destacar o trabalho que nos aguarda nos próximos meses. Talvez partindo justamente da sua origem, do ponto de partida.

Excelência, qual foi, na sua opinião, a urgência que levou o Papa a proclamar o Ano da Fé?
A urgência fundamental é aquela indicada na abertura da Carta Apostólica Porta fidei: convidar cada batizado a redescobrir o caminho da fé para mostrar a todos a beleza do encontro com Cristo. Entre os cristãos, de fato, em nossos dias, a atenção parece frequentemente deslocada para as consequências da fé, dando simplesmente como óbvia a sua existência. É para tal coração, para essa origem da nossa fé, para a Pessoa mesma de Jesus, que é preciso que nos voltemos conscientemente. Ele próprio foi, certa vez, interrogado sobre o assunto por parte de alguém que o estava ouvindo: “O que precisamos realizar para fazer as obras de Deus?”. E a sua resposta foi: “Esta é a obra de Deus: que creiais naquele que ele enviou” (Jo 6,28-29).

Uma das características mais evidentes da era moderna é a dramática fratura entre crer e saber: a fé é sentida como “inútil” ou geralmente ligada à esfera do sentimento e do hipotético, não da razão e da verdade. Por quê? E como o Ano da Fé pode responder a esse desafio?
A fé é uma fonte de conhecimento: alcança verdades que a razão, sozinha, não é capaz de alcançar. Quanto mais acontece o encontro com Cristo, tanto mais a inteligência e a vontade do homem são solicitadas a acolher com ânimo e gratidão os conteúdos precisos da Revelação divina. Que é dom gratuito e profundamente correspondente – para além de qualquer expectativa previsível – aos desejos mais profundos do coração de todo homem. Ao invés, se a fé é reduzida a sentimento irracional, a alguma coisa privada, que não diz respeito à realidade a ser conhecida e amada, como se estivesse destinada a refrear as perturbações de uma psicologia posta à dura prova pelas complexidades da vida contemporânea, então previamente já se estará diminuindo a possibilidade de identificar a sua verdadeira natureza e a sua extraordinária dimensão de verdade. Esse também é um grande desafio com o qual o Ano da Fé pretende se confrontar.

Fiódor Dostoievski se perguntava: “Um homem culto, um europeu dos nossos dias, pode crer, crer realmente, na divindade do Filho de Deus, Jesus Cristo?”. O senhor o que responderia?
O homem é culto na inteligência quando é culto no coração. A simples erudição não basta. Poderia se inflar de inoportuno orgulho. Minha mãe não frequentou a universidade, era dona de casa, e como profunda crente na divindade de Jesus Cristo me educou a “ler por dentro” da realidade, a verificar de modo profundo o quanto ela própria havia recebido do dom da fé que me transmitiu. Outros encontros, até intelectualmente importantes, aconteceram depois na minha vida. E sempre estive convicto de que a fé católica corresponde às exigências intelectuais mais elevadas e que não devemos sofrer de nenhum tipo de complexo. Mas é indispensável pedir e buscar um coração simples, humilde, como dizia Jesus, sem o qual o espírito humano não se abre para a realidade em sua totalidade, inclusive para aquela revelada por Deus, pretendendo reduzi-la a uma medida finita.

Mas como a fé responde às exigências do homem de hoje? Como podemos entender se e em que medida é “pertinente às suas exigências", segundo uma fórmula sintética que Dom Giussani costumava usar?
O homem de hoje, como o de sempre, deseja ser feliz. Pensar em reduzir a felicidade ao que cada um, de modo isolado, individualista, subjetivo, estranho e inimigo dos próprios semelhantes, achar que ela seja, que consista em adquirir uma grande quantidade de “coisas” (ou até mesmo pessoas), que deveriam garanti-la, não leva muito longe em relação ao objetivo esperado. A experiência e os dados o atestam. A fé cristã, por seu lado, introduziu no mundo, desde o início, desde que o Senhor chamou os seus primeiros amigos, a possibilidade de uma convivência renovada, centrada n’Ele como critério vivo, na qual até o perdão poderia encontrar o indispensável espaço. Não obstante a fragilidade e as fraquezas de nós, cristãos, a Igreja continua a ser o lugar da contemporaneidade de Cristo ao homem de qualquer tempo. Neste lugar objetivo da Sua presença, as exigências verdadeiras do homem de hoje, como do homem de ontem e do homem de amanhã, são reconhecidas e valorizadas.

Que impacto poderá ter essa iniciativa sobre os não crentes? Qual é o “desafio” positivo que a Igreja lança para o mundo, através desse meio?
Se os crentes em Cristo oferecerem mutuamente testemunho da verdade da sua fé, que é fé na verdade de Cristo, encontrado como plenitude da própria existência, então até os não crentes poderão, talvez, ficar maravilhados. E justamente como aconteceu no início do cristianismo, poderão, talvez, voltar a pôr questões com liberdade, com verdade e bom desejo de conhecer. Por outro lado, enfatizando a integralidade da natureza humana atentamente considerada e as exigências fundamentais de realização que a caracterizam, diante dos insuperáveis fracassos que historicamente a qualificam, todo homem, inclusive o não crente, poderá sinceramente abrir-se para o pensamento, e quiçá – como aconteceu com São Paulo no Areópago de Atenas – para o aguardado Deus desconhecido. Como escreveu Franz Kafka: “Mesmo que a salvação não venha, quero ser digno dela a cada momento”.

O Ano da Fé começou na trilha do cinquentenário do Concílio: como essa ocasião pode nos ajudar a compreender a sua importância e os seus conteúdos?
O Concílio Vaticano II foi o principal acontecimento na história da Igreja contemporânea. Como bem sintetizou a Nota com indicações pastorais da Congregação para a Doutrina da Fé, de 6 de janeiro de 2012: “A partir da luz de Cristo que purifica, ilumina e santifica, na celebração da sagrada liturgia (cf. Constituição Sacrosanctum Concilium) e com a sua palavra divina (Cf. Constituição dogmática Dei Verbum), o Concílio quis aprofundar a íntima natureza da Igreja (veja-se a Constituição dogmática Lumen gentium) e a sua relação com o mundo contemporâneo (a Gaudium et spes). Em torno das suas quatro Constituições, verdadeiros pilares do Concílio, se agrupam as Declarações e Decretos, que enfrentam alguns dos maiores desafios da época”. O Papa Bento XVI nos ofereceu a chave de leitura apropriada, quando recusou como errônea a chamada “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura” e promoveu aquela que ele mesmo denominou “a hermenêutica da reforma”, da renovação na continuidade do único sujeito-Igreja, que o Senhor nos doou”, tratando-se de “um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve, porém permanecendo sempre o mesmo e único sujeito do Povo de Deus peregrino” (Discurso à Cúria Romana, 22 de dezembro de 2005). É preciso, por isso, superar qualquer confronto ideológico, venha de onde vier, renunciar a polêmicas preconceituosas ditadas por razões circunstanciais, e mergulhar de modo uníssono na doutrina da Igreja, que pela assistência do Espírito Santo conserva íntegro no tempo o patrimônio de fé recebido da Tradição apostólica.

O que o senhor espera desse ano?
Espero que a beleza da fé em Cristo possa resplandecer na face e na vida de muitas pessoas. Que possa contribuir para produzir frutos de testemunho e conversão. Trata-se, no fundo, de uma providencial ocasião oferecida pela Igreja toda à liberdade de cada um: acolhê-la é indicativo de sabedoria, porque Jesus se encontra conosco hoje e não cessa de bater à porta. O Ano da Fé é uma ajuda para que todo instante da vida seja de reconhecimento pessoal de Cristo.

O que pede a nós, do Movimento, em particular?
A celebração eucarística seja a alma das suas jornadas. A escuta da Palavra de Deus lhes alimente. Através de mais diversas formas da cultura, da caridade e da missão, aprofundem o dom recebido. E com todos os seus irmãos na fé, deem a sua contribuição para a edificação do Corpo de Cristo, para que o mundo veja e, vendo a boa obra da fé, creia.