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Passos N.145, Fevereiro 2013

CULTURA - Reler Tolkien

Uma coragem de Hobbit

por Stefano Nembrini

“Uma história para continuar a propor”. Porque nos fala da nostalgia do ser escolhidos. Enquanto Peter Jackson a leva para as telas de cinema, um professor fala sobre o que se encontra na epopeia do gênio inglês. A história de um “meio-homem” como nós, que guarda o início de toda aventura. Até aquela dos bancos escolares. E de toda a vida

Mais uma vez comecei o ano, na turma do primeiro ano do ensino médio, lendo o primeiro capítulo de O Hobbit, de John R. R. Tolkien. Quando entro na classe, os olhos de vinte ou trinta meninos de onze anos me olham cheios de tremor e curiosidade, como alguém que se prepara para colocar os pés fora dos limites de casa pela primeira vez. Nesse momento, é bonito reler com eles essas páginas: não só porque contam o início de uma aventura, mas porque descrevem nitidamente em que consiste o início de toda aventura.
O Hobbit já é um clássico em muitas escolas de ensino médio. E o lançamento da última edição cinematográfica é ocasião para tentar entender mais uma vez por que os jovens gostam dessa história e por que vale a pena propô-la a eles. Tolkien publicou o livro em 1937. É a narração das circunstâncias que levarão Bilbo Bolseiro, um hobbit, depois de mil travessias, a enfrentar um terrível dragão. Tolkien desenvolve a história com alusões narrativas que serão desenvolvidas magistralmente em O Senhor dos Aneis. Era fatal que o diretor Peter Jackson, autor da trilogia cinematográfica, se aventurasse nessa espécie de prólogo.

“O mundo está lá fora”. O instante crucial na história de Bilbo me parece ser o momento em que o tímido hobbit, como se vê na obra-prima de Jackson, está em um canto da casa, transtornado pela noite em que viu sua pacata existência revirada por anões mal educados, magos misteriosos, histórias de guerra, dragões e tesouros. Está ali, esperando que aqueles hóspedes desagradáveis desapareçam no nada para que tudo volte a ser como antes. E, de repente, os anões começam a cantar. Um “canto rouco de anões”, escreve Tolkien, que parece emergir das profundezas da terra onde aquele povo mora: “Longe, sobre montes nebulosos e gelados / em cavernas profundas, escuras e desoladas / antes que surja o sol devemos ir / procurar as pálidas horas encantadas...”. Um canto que evoca terras distantes, dragões e elfos, fogos e espadas. Evoca as montanhas desconhecidas ao pacífico povo de Contea. O célebre escritor inglês descreve assim aquele instante: “Enquanto cantavam, o hobbit sentiu vibrar em si o amor pelas belas coisas feitas com as próprias mãos, com habilidade e magia, um amor terrível e ciumento. (...) e desejou ir ver as grandes montanhas, ouvir os pinheiros e as cascatas, explorar as grutas e empunhar a espada ao invés da bengala de passeio”. O que acontece? O coração de Bilbo é tocado por uma nostalgia profunda, capaz de ultrapassar os antigos hábitos e comodidades da vida hobbit. É invadido pela sensação de algo desconhecido e atraente ao mesmo tempo. O início, para Bilbo, está todo ali, na discrição e na intimidade daquele instante, naquele canto que toca as cordas mais ocultas de sua alma. E o faz prever como é grande, tremenda e fascinante a vida que o chama. Gosto de lembrar essas coisas para aqueles que começam comigo a aventura da escola, que é feita de quadro negro, livros e cadernos, mas não só: como nos lembra o mago Gandalf, “o mundo não está nos seus mapas e nos seus livros. Está lá fora”.

O heroi meio-homem. O primeiro aspecto que emerge de Bilbo no início me parece ser exatamente essa nostalgia: um sentimento que tem raízes profundas como a nossa infância, quando brincávamos com espadas de madeira no meio dos bosques ou escutávamos histórias de nossos avós, sentados em volta de uma fogueira. A nostalgia das montanhas, dirá Bilbo sessenta anos depois: porque esta, uma vez despertada, permeia a vida para sempre. Certamente essas raízes também correm o risco de morrer, se profanadas por uma cultura que fala tão pouco aos nossos jovens sobre lealdade, coragem e honra. No entanto, as raízes profundas não congelam, senão não poderíamos explicar o gosto que entusiasma os estudantes quando são introduzidos na beleza dessa história épica. E não poderíamos explicar o silêncio daquela noite no cinema, quando um público jovem que um momento antes gargalhava assistindo aos trailers dos mais tristes filmes enlatados, de repente fica em silêncio diante da primeira cena de O Hobbit, quando morte e destruição caem sobre a cidade de Dale, ou quando os anões cantam seu grande desejo de reconquistar a pátria.
O segundo aspecto que sempre impressiona a mim e aos meninos é que o protagonista dessa novidade, desse chamado, é um hobbit. Por que uma criatura como Bilbo, um meio-homem, gera uma imediata correspondência, uma simpatia? Entendi melhor esta manhã, quando falávamos sobre coragem na sala de aula. Refletíamos sobre como a própria etimologia da palavra “ter coração”, não indica um talento recusado aos que não possuem força física ou inteligência, mas descreve uma virtude que diz respeito àquilo que amamos na vida, por isso, é acessível a todos: é o amor sendo intrépido, diria Manzoni, e qualquer um pode amar. De repente, um aluno, dos muitos que neste mês estão lendo O Hobbit – depois de uma certa propaganda feita por mim –, exclama: “É isso que Bilbo está descobrindo!”. É verdade, disse a mim mesmo, e exatamente aqui está a genialidade de Tolkien: tornar protagonistas de sua epopeia não os feiticeiros ou os reis, mas os hobbit, os meio-homens. Quanto podemos nos sentir meio-homens aos onze anos (mas também aos dezoito, trinta ou cinquenta...)? Quanto podemos nos sentir pequenos e frágeis diante da vida? Mas é surpreendente descobrir que podemos ser meio-homens e ser escolhidos, convocados à mais extraordinária das aventuras, a ponto de nos tornarmos protagonistas da história. A ponto de poder ser exatamente ele, um meio-homem, conforto e apoio para quem é maior: “Descobri que são as pequenas coisas boas feitas por pessoas comuns que mantém afastada a Escuridão... Por que Bilbo Bolseiro? Porque ele me dá coragem”, confessará Gandalf.

A vida é uma viagem. Nostalgia, portanto, e a coragem que nasce do fato de ser escolhidos. Bilbo não é poupado do momento da decisão, da responsabilidade de dizer: eu existo. Como na esplêndida cena reinventada por Jackson em que Bilbo acorda, de manhã, depois da chegada dos anões: está sozinho, a casa está em ordem, tudo está como antes. Parece quase que foi um sonho e, no entanto, cabe a ele decidir. Mas, mais que qualquer coisa, vence em Bilbo aquela nostalgia profunda que na noite anterior tinha apertado seu coração. E ele vai embora, esquecendo até os lenços.
Toma um caminho no qual não será poupado de nada: vai saborear a beleza infinita do mundo, das armaduras cintilantes dos elfos às cascatas do Grande Abismo (e devemos agradecer ao diretor neozelandês pelo amor às paisagens, aos crepúsculos e auroras na Terra-média). E precisará olhar o mal no rosto, um mal que pode ser chamado tal, sem as ambiguidades e as distorções do mundo de hoje (por causa das quais uma aluna minha me contava orgulhosa que na festa de Haloween se vestiu de Chapeuzinho Vermelho, mas com o rosto deformado “pelo ácido estomacal do lobo”: é a morte da fábula, porque no fim, vence o mal). E cada passo, cada alegria e cada ferida tornarão Bilbo cada vez mais si mesmo, cada vez mais certo de que a luta está na retomada do caminho a cada instante, e na descoberta de ser capaz de piedade, como acontece nas cavernas escuras de Moria.
Por isso, insisto que a epopeia contemporânea de Tolkien é realmente preciosa, para nós e nossos meninos. Precisamos continuar a propor essa história, para nos lembrar que a vida é realmente uma viagem inesperada e uma aventura cheia de fascínio.
A estrada é simples, na Terra-média e na sala de aula todas as manhãs: que cada um de nós possa repetir para si as palavras que Balin diz aos companheiros, falando da batalha entre os Goblins e os anões onde viu o jovem Thorin enfrentar o terrível capitão inimigo: “Então pensei: este é um homem que posso seguir. Este é um homem que posso chamar de rei”.


O SENHOR DO FANTASY
John Ronald Reuel Tolkien
(1892-1973) era um estimado professor de Filologia e Literatura de Oxford, mas passou para a história como um dos maiores romancistas ingleses do século XX. Começou inventando um mundo fantástico, a Terra-média, que povoou de magos, cavaleiros, elfos e anões para satisfazer a fome de histórias de seus quatro filhos. Desses contos domésticos nasceu a ficção épica composta de romances como O Hobbit, O Senhor dos Aneis e o Silmarillion. Contos fantásticos, que abordam os grandes temas da literatura e da vida: a amizade, o poder, o mal e a Graça. O Senhor dos Aneis, sua obra-prima, é um dos romances mais populares do século passado: traduzido para 38 línguas e relançado dezenas de vezes, foi adaptado para o cinema por Peter Jackson (os três filmes renderam, no total, 2,9 bilhões de dólares).