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Passos N.148, Maio 2013

IGREJA - O carisma Franciscano

São Francisco, o Papa e a Igreja

por Frei Paolo Martinelli

O que significa assumir o nome do Santo de Assis para o próprio Pontificado? Fomos às raízes desta escolha, que traz à luz como carismas e instituições são “ambos essenciais à vida e à missão da Igreja”

Papa Bergoglio escolheu como nome “Francisco”. Ninguém havia feito isso antes. Escolheu o nome não de um seu grande predecessor, mas o de um santo que viveu nos séculos XII-XIII, e que nem era sacerdote: Francisco de Assis. O que significa essa escolha? Antes de tudo, creio que se trate de um valor profundamente eclesial. De fato, causa admiração que o Bispo de Roma, sucessor de São Pedro, tenha tomado como nome o de um homem portador de um dos carismas mais incisivos da história da Igreja. Aí vemos representada a co-essencialidade entre dons hierárquicos e dons carismáticos, de que falaram tanto o Beato João Paulo II quanto o Papa emérito Bento XVI. Entre esses dons não há nem concorrência nem estranheza; são ambos essenciais à vida e à missão da Igreja porque “concorrem juntos para tornar presente o mistério de Cristo e a sua obra salvífica no mundo”.

Francisco de Assis pôde ser um fator determinante para a renovação eclesial em seu tempo justamente por ter reconhecido a vida da Igreja e a própria hierarquia como realidades internas e essenciais ao próprio carisma. Não foi um acaso que São Francisco tenha sentido logo a necessidade de buscar a aprovação da sua regra de vida pelo “Senhor Papa”, Inocêncio III. Ao contrário de muitos movimentos pauperistas daquela época, que consideravam a Igreja muito “carnal” e pecadora, concebendo-se como alternativas a ela, o movimento franciscano reconheceu desde logo a Igreja como seu âmbito vital.

O Papa Bento XVI, que em seu magistério disse coisas interessantíssimas sobre o carisma franciscano, justamente recordando quando o frade Francisco se dirigiu a Inocêncio III para a aprovação da Protoregola (1209), disse: “Francisco poderia não ter vindo ao Papa. Muitos grupos e movimentos religiosos estavam sendo formados naquela época, e alguns deles se contrapunham à Igreja como instituição, ou pelo menos não buscavam a sua aprovação. Certamente uma atitude polêmica em relação à Hierarquia teria proporcionado a Francisco não poucos seguidores. Em vez disso, ele pensou logo em colocar o seu caminho e o de seus companheiros nas mãos do Bispo de Roma, o sucessor de Pedro. Esse fato revela o seu autêntico espírito eclesial. O pequeno nós que havia iniciado com os seus primeiros frades ele sempre o concebeu no seio do grande nós da Igreja una e universal” (Castel Gandolfo, 19 de abril de 2009).
Essa profunda imanência eclesial possibilitou ao carisma franciscano, como também às outras ordens mendicantes, ser muito importante para o exercício e a eficácia do primado universal do Bispo de Roma sobre toda a Igreja, num momento crucial da sua história. O Papa, de fato, encontrou nesses carismas realidades providenciais para a renovação da Igreja e o desenvolvimento da sua missão universal.

Gostaria, ainda, de recordar um último traço da atitude de São Francisco diante da Igreja: em seu Testamento – o texto mais pessoal escrito pelo Santo de Assis – ele conta que o Senhor lhe “deu tal fé nas igrejas” a ponto de reconhecer Cristo presente nelas e de poder adorá-Lo e bendizê-Lo porque “com a tua santa Cruz remistes o mundo”. A isso o Santo de Assis acrescentou: “O Senhor me deu e me dá uma tão grande fé nos sacerdotes que vivem segundo a forma da Santa Igreja Romana” de forma a não considerar neles os pecados – dos quais ele estava bem consciente –, mas querer reconhecer neles o Filho de Deus que se torna presente no sacramento da Eucaristia. Eis descoberta a raiz do amor profundo de São Francisco à Igreja e da sua obediência à autoridade eclesial: a descoberta de que Deus se torna presente sempre através de uma modalidade sacramental, ou seja, através de um sinal frágil, com o qual a força de Cristo ressuscitado toma conta da nossa vida. Por isso, Francisco não se escandalizou com os limites e os pecados dos homens de Igreja, mas reconheceu neles a ação de Cristo através da fragilidade do sinal humano. Foi essa atitude que fez de São Francisco não um rebelde ou um revolucionário – como, à vezes, ele é equivocadamente pintado –, mas um grande renovador da vida eclesial, pois reconheceu o método de Deus: o Mistério presente e operante no sinal. Quem vive assim a fé “reforma a Igreja”, como – segundo as biografias da época – o Santo de Assis ouviu do crucifixo de São Damião.
O fato de o novo Papa ter escolhido como nome justamente o de uma figura carismática tão poderosa dá a entender a responsabilidade que deve ser vivida por todos aqueles que foram alcançados por um autêntico carisma, para que ele seja vivido visando à edificação da Igreja toda e à realização da sua missão no mundo.

A misericórdia que regenera o humano. O Papa Francisco, durante o seu primeiro Angelus, comentando a passagem evangélica sobre a adúltera, chamou a atenção de todos para o mistério da misericórdia de Deus: “Ele jamais se cansa de perdoar, mas nós, às vezes, nos cansamos de pedir perdão... Ele é o Pai amoroso que sempre perdoa, que tem um coração misericordioso por todos nós. E também nós aprendemos a ser misericordiosos com todos”.

Nessas expressões, simples e muito profundas, encontra-se também a raiz da experiência cristã de Francisco de Assis. Alguns dos seus escritos e numerosas hagiografias (estudos biográficos do Santo) colocam em evidência que a sua vivência pessoal é caracterizada justamente pela descoberta da misericórdia de Deus para consigo, que o abre para que ele, por sua vez, também seja misericordioso.

Em seu Testamento, onde Francisco relê toda a sua vida, tendo chegado ao termo dos seus dias, reconhece a origem da sua trajetória: “Quando eu estava no pecado me parecia algo muito amargo ver os leprosos, e o Senhor mesmo me conduziu até eles e usei de misericórdia com eles”. Ele encontra uma realidade que lhe é dada, diante da qual conhecia só a fuga, por causa ele próprio “estar no pecado”, enquanto na fé aprende a acolhê-la, a “usar de misericórdia”. Aquela pessoa ferida se torna, para Francisco, sinal através do qual o mistério de Deus o alcança. A partir daí o Santo de Assis começa a sua caminhada, na qual reconhece o perdão de Deus para os seus pecados e aprende a ser misericordioso. Essa visão determinará São Francisco em todos os seus relacionamentos.

Em sua Carta a um Ministro, ou seja, a um responsável da sua Ordem, que supostamente queria deixar o cargo por causa dos problemas que tinha de enfrentar diariamente, Francisco o convida a acolher aquela realidade que parece distraí-lo do seu relacionamento pessoal com Deus: “Aquelas coisas que são para você um obstáculo no amor ao Senhor Deus, e toda pessoa que lhe for um obstáculo, sejam frades ou outros, ainda que o cobrissem de ofensas, tudo isso você deve considerar como uma graça”. Ou seja, a relação com Deus acontece no drama da vida quotidiana e não em nossa fantasia religiosa. Por isso acrescenta: “E isso considere como verdadeira obediência ao Senhor Deus e a mim, porque eu firmemente reconheço que essa é a verdadeira obediência”. Obedecemos a Deus quando aceitamos o risco do impacto diário com o real, no qual o Mistério toca a nossa liberdade.

Francisco depois acrescenta: “E ame aqueles que agem com você desse modo... e não pretenda que se tornem melhores cristãos”. Para nós é difícil entender, hoje, o que quer dizer estar diante do outro sem pretender que ele seja “melhor”. Vê-se aí como o nosso cristianismo foi reduzido moralisticamente! Mas é assim mesmo, pois a vida muda quando nós a acolhemos tal como é, e não porque a dobramos a um nosso preconceito.

Mas a indicação mais marcante nós a encontramos nos versículos seguintes, nos quais o Santo escreve a esse ministro como se comportar frente aos frades que cometem pecado: “E nisso quero saber se você ama o Senhor e ama a mim, servo d’Ele e seu, isto é, se você se comporta desta maneira: que não haja nenhum frade no mundo que tenha cometido todos os pecados possíveis e que, depois de ter visto o seu olhar, vá embora sem o seu perdão, se ele o pedir; e se não pedisse perdão, pergunte você a ele se quer ser perdoado. E se, em seguida, mil vezes pecasse diante dos seus olhos, ame-o mais do que eu por isto: que você possa atraí-lo para o Senhor; e tenha sempre misericórdia com esses irmãos”.

Francisco de Assis olha o outro com o perdão de Deus nos olhos e no coração. A misericórdia aparece, aqui, como o princípio que regenera continuamente o humano, vencendo indomavelmente todas as resistências.

Essa é, no fundo, a consciência que Francisco de Assis experimentou ao longo da sua caminhada: ser um pecador perdoado, tornando-se sinal da misericórdia de Deus. Essa realidade é bem expressa por uma conhecida passagem dosFioretti, na qual o frade Masseo, frente ao “sucesso” do fundador, exclama: “Por que todo mundo vem atrás de você, e parece que todas as pessoas desejam vê-lo, ouvi-lo e obedecê-lo? Você não é um belo homem de corpo, não possui grande ciência, não é um nobre, como é então que todo mundo corre atrás de você?”. Eis a resposta de Francisco: porque os olhos de Deus “não viram, entre os pecadores, ninguém mais vil, nem mais insuficiente, nem mais pecador do que eu... por isso elegeu a mim para confundir a nobreza e a grandeza e a fortaleza e a beleza e a sabedoria do mundo, de modo que se saiba que toda virtude e todo bem vem d’Ele e não da criatura, e nenhuma pessoa possa se vangloriar diante d’Ele”.
Ele experimentou assim a misericórdia divina e a eleição de Deus para ser sinal da sua graça. Isso traz à nossa memória o lema escolhido, não por acaso, pelo Papa Francisco, em referência ao encontro entre Jesus e Mateus: “Miserando atque eligendo”, olhando-o com misericórdia, ele o escolheu. Esse é o mistério da misericórdia que confunde o mundo em sua presunção.

A pobreza é “Senhora”. Por último, São Francisco afirmava peremptoriamente que nunca mais queria que “algo” fosse dito “seu”. E isso não significava uma visão negativa da realidade. Pelo contrário, seu distanciamento indica que o horizonte do coração do homem não é feito para “alguma coisa”, ou seja para a “parcialidade”, mas para a totalidade. É impressionante que nos textos em que ele fala de pobreza, há sempre o chamado para ser herdeiros, herdeiros do reino dos céus, começando, assim, a participar do senhorio de Cristo sobre toda a realidade.

Finalmente, a escolha da pobreza evangélica, na verdade, coloca São Francisco em uma posição de proximidade e de compaixão para com aqueles que sofrem com a indigência, começando com os mais afetados pela marginalização no seu tempo: os leprosos. Sua proximidade com eles, no entanto, nunca é estratégica ou ideológica, mas é uma expressão de seu afeto radical por Cristo, que por amor a nós, tomou livremente sobre si a condição da ferida de cada homem. Justamente Bento XVI tinha expressado esta realidade, quando na homilia da passagem de ano de 2009 disse: “Testemunha exemplar desta pobreza escolhida por amor é São Francisco de Assis, O franciscanismo, na história da Igreja e da civilização cristã, constitui uma difundida corrente de pobreza evangélica, que fez e continua a fazer muito bem à família humana”. Isso permite promover “um círculo virtuoso entre a pobreza ‘a escolher’ e a pobreza ‘a combater’ [...]: para combater a falsa pobreza que oprime tantos homens e mulheres e ameaça a paz de todos, é preciso redescobrir a sobriedade e a solidariedade, como valores evangélicos e ao mesmo tempo universais”. De fato, conclui Bento XVI, “quando Francisco de Assis é despido de seus bens, faz uma escolha de testemunho que foi inspirada diretamente por Deus, mas ao mesmo tempo mostra a todos o caminho da confiança na Providência”.

O caminho da Providência é, em última instância, aquele de quem percebe que é “herdeiro”, “filho”, certo de que sua própria vida está nas mãos do Pai. Portanto, a pobreza evangélica é o testemunho da liberdade dos filhos de Deus, pela qual, uma vez que esperam a realização de Deus, são livres para usar do mundo sem se tornarem escravos. Eis porque, para Francisco, a pobreza é “Senhora”, ou seja, é a posse verdadeira da realidade.