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Passos N.155, Fevereiro 2014

ATUALIDADE / BRASIL

Presídios: onde há solidariedade, há esperança

por Francisco Borba Ribeiro Neto

Falar de presídios nos remete a medo e violência. Porém, no meio do deserto existem experiências reais que demonstram que é possível outro modo de olhar para transformar esta realidade. Mas a ação do Estado não acontecerá sem uma sociedade solidária, sem um compromisso de cada um de nós

Neste mês de janeiro, o ataque a um ônibus em São Luís, que resultou na morte de uma menina de 6 anos, ordenado por chefes do crime organizado que estavam em Pedrinhas, no Maranhão, e a notícia que presos eram mortos e até decapitados neste presídio, fizeram com que a questão carcerária voltasse a ocupar espaço nos jornais brasileiros. Há muito se diz que os presídios e cadeias são “escolas do crime” e que as pessoas saem dali piores do que entraram. Os estudos indicam que cerca de 60 a 80% dos detentos voltam às prisões.
Os grandes presídios são dominados por facções organizadas, que – de dentro da cadeia – controlam o crime em suas áreas de influência, chegando a criar grandes ondas de violência que afetam toda a sociedade. Nos presídios brasileiros, a ação do Estado também é funesta. A capacidade do sistema prisional brasileiro é de cerca de 310 mil presos, mas abriga quase 550 mil detentos. Destes, estima-se que espantosos 35% sejam compostos por presos sem condenação definida e que mais 5% sejam presos indevidamente encarcerados! Nestas condições, a higiene é quase sempre ruim; o atendimento médico deficitário e a violência impera. Em 2013, foram registrados oficialmente 214 homicídios em presídios brasileiros. Só no presídio de Pedrinhas morreram mais de 63 presos em 2013.
O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Mas a impunidade é um problema crônico do País, atingindo desde a corrupção nas altas esferas do poder até os casos de homicídios, dos quais mais de 80% são arquivados e menos de 10% resultam em prisão.

A solução deste problema passa por várias medidas. Logo de início, existe a necessidade de reduzir a impunidade, levando para a cadeia aqueles que devem ser presos, e deixar de prender aqueles que não devem estar presos ou que podem ser encaminhados para penas alternativas. Isso implica em agilizar os processos judiciários – não é à toa que a Justiça do Maranhão está organizando um mutirão judiciário para rever os processos dos presos em Pedrinhas.
Mas também é preciso investir em sistemas de penas alternativas eficientes, que ajudem o preso a se reabilitar e se reinserir na sociedade. O custo para o Estado é muito mais baixo (R$ 24.000,00 por ano para um preso comum contra cerca de R$ 500,00 para quem cumpre pena alternativa) e o índice de reincidência (ex-presos que retornam ao crime) está entre 5 e 12% – muito abaixo dos índices de reincidência observados nos presídios comuns.
Além disso, é necessário que os presídios ofereçam reais condições de recuperação aos presos. Condições de vida dignas, mesmo que em reclusão, possibilidade de estudar e trabalhar não podem ser vistos como “luxos” concedidos a quem causou um mal à sociedade, mas sim como o melhor caminho para que a sociedade não sofra males ainda maiores.
Para cada chefe do crime organizado, que utiliza seu poder e seu dinheiro para continuar sua vida de crimes mesmo atrás das grades, existem dezenas de presos comuns que poderiam ser reintegrados e se tornarem cidadãos úteis dentro de um sistema prisional com condições de vida razoáveis, possibilidade de estudo e de trabalho. Na ausência destas condições, as facções criminosas se tornam entidades que apoiam o preso dentro do cárcere e definem seu futuro quando sair da prisão. As más condições dos presídios propiciam o crescimento das facções e de seu poder.

Apesar do caos do sistema penitenciário brasileiro, existem experiências bem sucedidas. A mais reconhecida é a da APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), que reúnem a ação solidária da comunidade, que se envolve com a recuperação dos presos; a criação de condições de estudo e trabalho na prisão; a valorização da dignidade, dos laços familiares e da experiência religiosa do preso. Nos presídios administrados pela APAC a reincidência chega a 4%, muito inferior à do restante do Brasil.
Se existem alternativas viáveis para os presídios brasileiros, por que é tão difícil implementá-las? Uma resposta simplista, ainda que objetiva, é que os governos são ineficientes. Mas existem outras razões.
Melhorar as condições dos presídios “não rende votos”, dirão muitos políticos. A população quer que o delinquente seja retirado do convívio social, para que deixe de fazer mal e até mesmo por espírito vingativo. O que acontecerá com ele depois, pouco importa. Além disso, investir na recuperação do preso exige esperança e, capacidade de perdoar.
Sem dúvida, cabe ao Estado criar condições institucionais para que o sistema prisional brasileiro supere seus problemas atuais. Mas a ação do Estado não acontecerá sem uma sociedade solidária, sem um compromisso de cada um de nós, que pode ir do trabalho junto aos presos, até a simples cobrança de ações efetivas do governo.

Solidariedade, perdão, esperança... Virtudes que exigem uma educação de nossa humanidade, uma experiência de bem que nem sempre ocorre em nosso cotidiano. Por isso, o encontro com Cristo que acontece na história da Igreja e que vivemos em nossa amizade é fundamental também para superar o problema das cadeias e melhorar a segurança pública em nosso País.
Tanto aqueles que estão dentro das prisões como nós, que estamos fora, precisamos experimentar este amor que transforma nossas vidas, que permite uma solidariedade e uma liberdade de outra forma impensáveis. Pensando nisso, reunimos aqui quatro experiências, já mostradas em outras edições de Passos, que nos ajudam a nos colocarmos numa postura mais justa diante deste grave problema.

BELO HORIZONTE
Uma Folia de Reis no presídio


Em 2012, o violeiro Chico Lobo aceitou participar de um evento denominado “Muros e Viola”, num dos presídios geridos pela APAC, em Minas Gerais. Eis o seu depoimento (“Um novo olhar no sistema penitenciário brasileiro”, Passos nº 148, maio de 2013, p. 6-12)

“Escolhi fazer uma Folia de Reis, como a caminhada dos três Reis Magos para encontrar o menino Deus nascido, por reconhecerem Nele o filho de Deus que se fez carne para nos salvar. Assim saímos em cortejo, em folia, pelos corredores e celas da APAC, cantando versos sagrados, numa cantoria certeira, para abraçar aquelas pessoas e levar a elas um pouco de atenção, de afetividade, de esperança.
De cela em cela, cantamos e entramos com a bandeira santa da folia, que por muitos era beijada! Olhares atentos, olhares marejados de lágrimas por se sentirem abraçados. Uma experiência incrível de amizade, de acolhimento e, também, de fé.
No final, eu me juntei aos recuperandos (modo maravilhoso de chamar aqueles detentos que cumprem suas penas) e os convidei para juntos terminarmos cantando “Cálix Bento”, retomando o valor daquela visita, daqueles momentos onde o objetivo era nada mais do que estar ao lado deles numa companhia sagrada!
Sei que esse momento é uma gota no oceano da vida e dos anseios daquelas pessoas tão necessitadas de serem abraçadas, de serem amadas. Mas, que muitos momentos possam vir e que cada um de nós, pequeninos ou não, possamos sempre testemunhar a grandeza de um Deus vivo!”


SICÍLIA
Anjos de uma asa só


Em 2005, um grupo de 5 presos italianos escreveu uma carta a um jovem siciliano que estava com leucemia. Um dos presos explica “Ele estava fazendo quimioterapia, que destruía o seu corpo e o assumimos como um de nós, como nosso irmão”. Porque “o seu sofrimento era mais dramático do que o nosso, era bacana dar a ele um pouco do que tivemos a sorte de receber”. Sorte? Numa prisão? A sorte de encontrar um professor que se revelou um amigo que os ajudava a entender o sentido de suas vidas. Abaixo, um trecho da carta (“Uma certeza no futuro por força de uma realidade presente”, Passos nº 63, julho 2005, p. 10-12).

Oi, André, quem lhe escreve são cinco internos da penitenciária de Augusta. Estamos cursando o quinto ano de contabilidade. Um caríssimo amigo e irmão professor nos falou muito de você, nos contou dos seus problemas e daquilo que você está passando. Nós o abraçamos “virtualmente” e o consideramos um nosso irmão. Os presos são uma categoria de pessoas que não são muito bem aceitas pela sociedade, mas são amadas pelo Senhor, porque necessitadas da misericórdia d’Ele. Está escrito no Evangelho: não vim para os sãos, mas para os que estão doentes. A natureza humana, infelizmente, rebela-se frente ao sofrimento, que para nós parece absurdo. Como é difícil o domínio de nós mesmos! Em compensação, supera estes duros momentos a esperança e a força de uma grande fé, que nos coloca em condição de aceitar com alegria interior qualquer provação, ainda que dolorosa e, às vezes, incompreensível. Numa alternância entre esperança e desalento transcorremos as horas e os dias rezando, agarrando-nos ao cordão de “São Pio de Pietrelcina”, exemplo de uma vida de sofrimentos indescritíveis: ele, homem de Deus, nos ensinou que sem as coisas do céu não é possível viver nesta Terra. Os sofrimentos nos levam às profundezas de dores inauditas. Por isso, no final nos descobrimos heróis ao extremo. No sofrimento se desenvolve a solidariedade humana, não se pode compreender a dor dos outros se não a experimentamos pessoalmente. Num mundo escuro e confuso, só Deus pode reinar no coração humano, sedento de verdade. É bela a vitória final, mas o melhor é a luta. Certos da tua breve cura, te enviamos um caloroso e fraterno abraço. Você está em nossos corações. Força, André, lute junto conosco. Um grande beijo.
Teus amigos e irmãos.
Obs.: Nós somos anjos de uma asa só; podemos voar somente se estivermos abraçados.


PÁDUA
Homens livres além das grades


O Consórcio Rebus administra quatro cooperativas com oficinas onde trabalham mais de 50 presos, no presídio de Pádua, na Itália. As atividades são variadas, indo da panificação ao telemarketing. O índice de reincidência entre os presos que participam do projeto é de 15%, contra 80% dos demais. Abaixo, trechos de uma entrevista com Nicola Boscoletto, presidente do Consórcio, e alguns presos (“Homens livres além das grades”, Passos nº 69, fevereiro 2006, p. 25-27).

“Como é trabalhar aqui dentro? Com estas pessoas?”, pergunto a Nicola. “Temos as mesmas dificuldades que se encontram lá fora.” Isto me desarmou. Até aquele momento eu olhava os rostos daquelas pessoas procurando um sinal do mal que tinham feito, eu, que faço parte do grupo dos “bons”.
Pensei nas palavras de Giorgio Vittadini, no dia da inauguração das atividades das oficinas de trabalho neste presídio: “Não somos os justos que vêm dar uma ajuda aos injustos. Somos pecadores que erram, mas que descobriram, encontrando pessoas como Dom Giussani, que o desejo de bem é maior”.
“Nós não fazemos assistencialismo”, explica Nicola. “Nossos produtos vão diretamente para o mercado. Os detentos sabem disso. Sabem que é preciso trabalhar bem. Nós e eles. Mas a descoberta mais importante foi da possibilidade de um bem, de uma mudança. Para mim e para eles”.
“O bem emerge quando nos é oferecido algo de inesperado”, diz um dos presos. “Quando isso acontece, a pessoa tem um sobressalto e começa a pensar que ainda existe alguém que quer acreditar nela. E volta a ter esperança.”
“Eu trabalho numa central de telemarketing na prisão”, intervém outro. “Já encontrei pessoas com vontade de falar. Lembro-me de uma que tinha um tumor e precisava fazer quimioterapia. Naquele momento entendi o valor da vida. A minha vida tinha valor somente pelo fato de estar falando com ele e isso o ter feito feliz. Compartilhando a sua dor eu me sentia livre. Tinha feito algo por alguém. É possível ser livre quando há a possibilidade de doar alguma coisa.”


BRASÍLIA
O mesmo desejo de felicidade que eu tenho


Luzineide e Fabíula são duas pós-graduandas de Letras da Universidade de Brasília (UnB). A primeira começou a trabalhar nas prisões ainda em seu tempo de estudante, na Pastoral carcerária. A segunda aceitou seu convite para que ambas realizassem Oficinas de Leitura em um presídio do Distrito Federal. Abaixo, uma parte do testemunho de ambas (“Na prisão, um gosto de vida nova”, Passos nº 131, outubro 2011, p. 25-27).

Fabíula conheceu Luzineide no mestrado em Letras da Universidade de Brasília (UnB). Nenhuma afinidade especial, até que, planejando as oficinas que desejava realizar no cárcere, Luzineide se lembrou da aula que tinha visto a colega dar sobre o romance “Meu Nome é Vermelho”, de Orhan Pamuk.
Voltar ao presídio, agora que, por conta do mestrado, estava formalmente desligada da tarefa de educadora entre os detentos, era uma provocação para Luzineide. O relacionamento com presidiários iniciou há 17 anos. A então jovem universitária tinha ouvido sobre alguns trabalhos pastorais nas quais as pessoas da sua comunidade eram convidadas a participar. A Pastoral Carcerária foi a que chamou sua atenção. Passou a ir todos os sábados ao presídio, com mais quatro ou cinco amigos. O grupo não passava desse número. Por isso, quando o cansaço ameaçava fazê-la desistir, pensava: “Se eu não for, será um a menos”. Fazia cinco anos que as visitas haviam iniciado e Luzineide, já formada em Letras, aceitou o desafio de fazer do que era voluntariado seu trabalho formal.
O cheiro da prisão não é agradável. Nem o barulho das grades se fechando. “Toda vez que estou me preparando para ir, sinto medo, mas penso que eles estão nos esperando e vou”, diz Fabíula. O medo que ela enfrenta agora Luzineide já experimentou no passado. Na época, ainda universitária, foi questionada por um dos detentos, já senhor maduro, por que se interessava por aquelas pessoas. “A pergunta dele me ajudava a me perguntar a mim mesma por que fazia aquilo”, recorda Luzineide que ainda se questiona sobre a motivação. “Eles tinham cometido crimes, mas eu aprendi que a humanidade prevalece sempre, apesar de eles terem cometido crimes, apesar dos meus limites. Valorizavam a presença de alguém que se importava com eles”, diz.
“Eu saio do presídio, mas o presídio não sai de mim”, diz Fabíula. Não se refere ao cheiro ruim ou ao barulho das grades se fechando, mas pela experiência de uma nova humanidade que esta experiência despertou. “Descobri que são homens, com o mesmo desejo de felicidade que eu tenho. Perguntaram se eu achava que eram monstros, alegando que todo mundo pensa assim a respeito deles. Respondi que não achava isso, não, porque já tinha ouvido sobre uma experiência muito bonita com presos na Itália [cf. Passos]. Um deles me agradeceu. Disse ‘obrigado por me olhar como humano’. Descobri que está sendo gerada uma humanidade nova também em mim. Descobri que sou humana, que Deus me fez com um desejo de bondade e justiça tão grande que supera o medo. E que o homem não pode ser definido pela mal que é capaz de fazer”, completa Fabíula.
Nas oficinas de literatura realizadas na Penitenciária do Distrito Federal I, trabalharam literatura de cordel, quadrinhos, poesia e cinema, o que estimulou a produção de textos. “O vocabulário deles melhora com a literatura. Tem aluno que já se percebeu falando de forma diferente da linguagem comum entre os presos. Não parece que ele é dali”, conta Luzineide.
Ela conta que um dos policiais ficou provocado com a visita das duas professoras: “Com vocês eles são diferentes”.