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Passos N.156, Março 2014

IGREJA / BENTO XVI

O que aprendemos daquele gesto

por Ignacio Carbajosa Pérez

Em 11 de fevereiro de 2013 Bento XVI anunciou a sua renúncia. Uma escolha que deixou o mundo de boca aberta. Por que até os distantes ficaram impressionados? Quais consequências trouxeram para a Igreja? Passado um ano, a decisão do Papa Ratzinger continua a nos surpreender e a mostrar toda a sua fecundidade

Segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013. A notícia é mais veloz do que um raio. O Papa Bento XVI, diante de um grupo de cardeais, apresentou a sua renúncia. “Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino”. O mundo fica paralisado por um instante. Estamos diante de um daqueles eventos que marcam a vida, a tal ponto que cada um de nós lembra-se muito bem onde se encontrava e o que estava fazendo quando ficou sabendo da notícia.
Passado um ano daquele histórico momento, o que ficou? O que aprendemos com aquele gesto de Bento XVI? O primeiro ensinamento nós o tiramos da lealdade com que cada um se pôs diante da experiência feita nos instantes que se seguiram à notícia. “Naquele minuto de silêncio estava tudo”, escrevia Julián Carrón no jornal Repubblica, poucos dias depois. “Nenhuma estratégia de comunicação teria podido provocar semelhante impacto: estávamos diante de um acontecimento tão incrível quanto real, que se impôs com tal evidência a ponto de arrastar a todos, fazendo-nos tirar o olhar das coisas habituais. O que foi capaz de encher o mundo inteiro de silêncio, subitamente?”. Nós nos vemos diante da irrupção, inesperada, do Mistério de Deus em nossas vidas, desta vez sob os olhos do mundo todo. O acontecimento de Deus na pessoa da testemunha.

Um novo primado. O gesto do Papa, que contrariava os usos e costumes dos grandes estatísticos (inclusive eclesiásticos), colocava diante dos olhos de todos um fator novo. De fato, um fator com o qual não nos defrontamos habitualmente, fechados em nossas análises mentais e preocupados em não perder nenhum dado. Na realidade, o Papa afirmava o fator por antonomásia, aquele sem o qual a vida é desprovida de objetivo: o Mistério de Deus que nos criou, que nos sustenta e que revelou sua face bondosa em Jesus Cristo.
E esse fator novo, “a pedra descartada pelos construtores se tornava a pedra angular” (do Salmo 118), entrava no mundo através de um gesto de liberdade inesperada. Que nos obriga a parar e elevar os olhos. “Cheio de surpresa”, continuava Carrón no artigo citado, “fui então obrigado a mover o olhar para aquilo que o tornava possível: quem és Tu, que fascina um homem até torná-lo tão livre a ponto de suscitar também em nós o desejo daquela mesma liberdade?”. O Espírito de Cristo ressuscitado que governa o mundo não podemos vê-lo. Mas vemos a liberdade que gera, através da qual podemos reconhecê-Lo: “Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade”, nos ensina São Paulo. E essa liberdade é um dos sinais inconfundíveis da sua Presença, nos quais o coração moral capta o sinal da Presença do seu Senhor.

Admiração. Pedro J. Ramírez, diretor do jornal El Mundo, um dos editorialistas espanhóis mais importantes, naquele período dizia aos seus leitores: “Há dias estou me perguntando por que a renúncia do Papa está provocando em mim um mal-estar crescente, mesmo eu não sendo um católico praticante e em matéria de crença o meu espírito crítico leva sempre a melhor sobre o confortável patrimônio de uma educação religiosa pacífica. Sim, foi uma baita notícia, mas depois de ter vivido tantas delas em primeira mão, por qual motivo me sinto muito mais envolvido por esse passo atrás do chefe da Igreja do que pela eleição e reeleição de Obama, do que pelos escândalos políticos (...) e até mais do que pela situação econômica que nos mantém a todos na corda bamba? (...) Aos poucos aparecia a admiração por um gesto pleno de lucidez e de senso dos próprios limites, que não tem precedentes homologáveis na história da Igreja”.
A renúncia de Bento XVI contém um outro ensinamento, talvez menos imediato, mas não menos importante. Apesar da existência de um longínquo precedente, a renúncia do Papa indicava um modo de exercer o primado que abria para uma nova modalidade das relações ecumênicas. De fato, as Igrejas ortodoxas sempre olharam com suspeita para a figura do Bispo de Roma, como uma espécie de monarca, assentado numa posição hierárquica acima de todos os outros bispos. E certamente as modalidades como foi exercido esse ministério durante os últimos séculos (nos quais os ataques à Igreja fizeram crescer a unidade em torno da figura do Papa, a devoção por ele e a necessidade de um princípio forte de autoridade) puderam passar essa impressão, representando um ulterior obstáculo à unidade com os ortodoxos, dispostos a reconhecer ao Bispo de Roma um certo primado, ainda que somente o de primus inter pares (o primeiro entre iguais). O Papa João Paulo II, na encíclica Ut unum sint, já havia pedido que se estudassem novos modos de exercer o ministério petrino, consciente desse problema ecumênico.

Unidade desejada. O gesto de renúncia de Bento XVI continha também uma mensagem para a Ortodoxia e para toda a Igreja universal: à diferença do dom espiritual transmitido pelo sacramento da Ordem (recebido plenamente no episcopado), os dons recebidos com o primado não se tornam patrimônio privado da pessoa. São transmitidos à pessoa concreta somente na sua relação com a Igreja universal. O primado não é um sacramento (que colocaria a pessoa do Papa sacramentalmente acima dos outros bispos), mas uma missão para a Igreja universal. Nesse sentido, o gesto de Bento nos mostra que, como todos os outros bispos, o Papa pode renunciar ao seu serviço quando as circunstâncias o tornam necessário. Se o magistério do Papa Ratzinger se apresentava explicitamente como um serviço à Palavra de Deus (pensemos em quanto a Escritura permeou todas as suas catequeses, os seus discursos e documentos), vindo de encontro às reticências das confissões protestantes que acusam o ministério petrino de se colocar acima do Evangelho, o seu último gesto representava uma mão estendida aos ortodoxos, em nome da tão desejada unidade.
Esta última intenção não passou despercebida ao sucessor de Bento. De fato, Francisco, do balcão da Praça de São Pedro, com palavras que resultaram particularmente significativas, se apresentou como o “Bispo de Roma”, bispo de uma Igreja “que preside na caridade todas as Igrejas”.
Sucessivamente, na Exortação apostólica Evangelii Gaudium, afirma: “Não creio que se deva esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que se referem à Igreja e ao mundo. Não é oportuno que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que se apresentam em seus territórios. Nesse sentido, percebo a necessidade de promover uma salutar descentralização” (n. 16).

O mistério nos chama. E entendemos melhor, então, o que Julián Carrón dizia um ano atrás: “Não só a liberdade, mas também a capacidade do Papa de ler o real, de captar os sinais dos tempos, grita a presença de Cristo” (Repubblica). A razão do Papa é uma razão ampliada pela convivência com o acontecimento de Cristo. O gesto de liberdade e de leitura da realidade do Papa, como os gestos dos profetas de Israel, se oferece à interpretação dos homens. É o modo como o Mistério de Deus nos chama, sem forçar a nossa liberdade. Como aconteceu com o discípulo João, que naquela manhã, diante de uma pesca excepcional e ao ver o rosto indistinto daquele homem lá na margem do rio, gritou: “É o Senhor!”. Na medida em que cada um de nós vislumbrou a grandeza do gesto de Bento XVI e pronunciou, de um modo ou de outro, o nome do Senhor, viu crescer a sua certeza. Somente quem fez a experiência d’Ele naqueles históricos dias pode “encontrar aquela certeza que nos torna verdadeiramente livres dos medos que nos afligem” (de novo Carrón, no artigo citado).
É a certeza da Presença do Mistério de Deus que governa a história, que o gesto do Papa colocou diante dos nossos olhos. A certeza que nos permite compreender a novidade representada pelo Papa Francisco, superando o apego às nossas imagens. O evangelista Marcos nos diz que os discípulos, no dia seguinte àquele milagre em que Jesus deu de comer a cinquenta mil homens, sentiram de novo medo “pois ainda não tinham compreendido o caso dos pães: o coração deles ainda estava endurecido” (Mc 6,52). O gesto de Bento XVI nos ajudou e nos ajuda a compreender.