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Passos N.161, Agosto 2014

BRASIL/ Eleições 2014

A política e as exigências do coração

por Francisco Borba Ribeiro

Aproxima-se o momento eleitoral de outubro. Aqui, uma visão dos paralelismos entre a situação brasileira e a europeia à luz do Documento de CL. Um chamado à origem daquela postura humana justa que é o motor da mudança e da construção do bem comum

No mundo de hoje, quando vemos, com atenção, as notícias, nos deparamos com algumas semelhanças, aparentemente surpreendentes, entre situações que acontecem em países e continentes diferentes, onde imaginaríamos problemas muito diversos. Em boa parte, isso se deve à globalização, à expansão de um modo de viver e de pensar que ultrapassou as fronteiras dos países e agora se apresenta quase que universal. Porém, mais do que isso, esses problemas demonstram que o co¬ração do ser humano é o mesmo sem¬pre, e que os contextos apenas mudam as formas pelas quais esse coração se apresenta a nossos olhos.
A política é uma dessas situações na qual o problema “só muda o endereço”.
Nas recentes eleições do parlamento europeu (tema de um amplo dossiê na última edição da revista Passos), as pesquisas de opinião indicavam um problemático descrédito nos políticos tradicionais e nas instituições. O brasileiro pode pensar que descrédito nas instituições e nos políticos é um problema nosso, com nossa corrupção endêmica, com nossos políticos mais interessados no próprio bem do que no bem comum, com nossos governos ineficientes e incapazes de fazer aquilo que deveriam fazer. Lá na Europa, tudo deve ser bem diferente, pensamos nós. Porém, a surpresa é que, em graus realmente diferentes, o problema se apresenta em quase todos os países.
O Documento que CL preparou para estas eleições europeias (ver Passos julho 2014, pp. 17-20) cita Dom Giussani: a solução dos problemas “não advém diretamente enfrentando os problemas, mas aprofundando a natureza do sujeito que os enfrenta”. E quando nos aprofundamos na compreensão dos problemas, vemos as mesmas raízes – que estão no co¬ração do ser humano e na mentalidade dominante em nossa cultura atual. Por isso, às vésperas de eleições também aqui no Brasil, vale a pena ver os paralelismos entre as duas situações e também as peculiaridades de nossa situação brasileira (que, no fundo, como vimos, é apenas variação de um mesmo tema).

As raízes do problema. Comentando este Documento para as eleições, padre Carrón, presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação, fala do encontro entre um jovem do Movimento e um casal de amigos seus que não quer ter filhos, alegando “não ter coragem de condenar mais um desgraçado à infelicidade”. A afirmação é forte e sugere uma radical desesperança, uma falta de horizontes, de sentido para a vida, de caminho por onde trilhar. Sem querer julgar a experiência humana de ninguém, salta aos olhos uma situação desumana, que nos leva a dizer “não é bom viver assim”. E daí vem a decorrência inevitável: como alguém nestas condições terá força para dedicar-se ao bem comum, para projetar o futuro, para fazer os sacrifícios necessários para a construção de uma vida pessoal, familiar e social?
A edificação da sociedade não é apenas resultado de uma arquitetura político¬-tecnocrática que administra as relações sociais e seus fundamentos econômicos como se esta fosse uma grande colmeia ou um mundo de criaturas que respondem unicamente a uma cadeia de reações estímulo-resposta de natureza material. É no coração das pessoas que se encontra a força e a raiz da construção e da mudança. Como lembrava Dom Giussani, em uma de suas citações mais conhecidas, “as forças que movem a história são as mesmas que movem o coração do homem” (O eu, o poder e as obras, Ed. Cidade Nova, São Paulo, 2001).
Pois bem, de um modo menos dramático, não é esta mesma falta de caminhos e de perspectiva que encontramos em nossa sociedade brasileira, quando vemos manifestações contra o governo que parecem não levar a nada, que mostram apenas o ressentimento e a raiva de uma população que se sente desrespeitada e maltratada por seus políticos e lideranças? Onde não se vislumbra um caminho, não há esperança. Por isso, a falta de uma perspectiva de construção, a raiva, a frustração e o medo do futuro andam sempre juntos. Podem se mani¬festar no fechamento ao mundo, numa clausura em si mesmo e nuns poucos entes queridos, no esforço individualista de conseguir segurança a custa de tudo e de todos, ou na raiva e no protesto sem rumo, na violência e na agressividade. Mas, num caso ou no outro, não há construção do futuro, do bem comum e da própria humanidade.

O desejo do coração e a política. Diante disso tudo, onde encontramos uma via de saída, um caminho de solução dos problemas? Como afirma Dom Giussani, aprofundando a natureza do sujeito que enfrenta os problemas. Padre Carrón, no já citado comentário ao Documento de CL, diz que “o ponto crítico da cultura contemporânea está na miopia com que vê as necessidades pro¬fundas do homem. Não vislumbrando a dimensão infinita daquelas exigências constitutivas do coração do homem, propõe respostas que – tanto no plano material quanto no afetivo e existencial – se baseiam na multiplicação, até ao in¬finito, de respostas parciais. Mas, como nos recorda Cesare Pavese, ‘aquilo que um homem busca nos prazeres é um infinito, e ninguém jamais renunciaria à esperança de alcançar essa infinitude’ (C. Pavese, O ofício de viver, Ed. Bertrand Brasil, 1988). Por isso, uma multi¬plicação, mesmo à enésima potência, de ‘falsos infinitos’ (para usar as palavras de Bento XVI) nunca poderá satisfazer uma necessidade de natureza infinita. Não é a acumulação quantitativa de bens e de experiências que pode satisfazer o ‘coração inquieto’ do homem”.
A questão social não pode ser adequadamente respondida se reduzida ao preço de uma passagem de ônibus, aos escândalos da Copa, ou mesmo às verbas para educação, ou à segurança pública. Não porque os temas não sejam importantes, não afetem – em menor ou maior grau – a qualidade de nossa vida e a percepção de nossa dignidade pessoal. Mesmo se articuladas como questões de reformas políticas ou mudanças estruturais, ficará sempre faltando algo se não houver o comprometimento radical do coração da pessoa, que é o motor da mudança, da construção do bem comum.
Deste compromisso com o coração da pessoa, com sua “exigência elementar”, não nasce automaticamente a solução política ou técnica para os problemas da vida social. Mas nasce a postura humana justa para enfrentar esses problemas, sem que a luta se perca na falta de horizontes e de esperanças, sem que falte a capacidade de prospectar o futuro de forma criativa e solidária, capaz de descobrir caminhos e soluções. Mas vivemos em uma sociedade na qual tudo parece conspirar para que nos esqueçamos das exigências mais radicais de nosso coração.

A resposta justa nasce de um encontro. Sendo assim, de onde pode aparecer uma postura humana justa para enfrentar as dificuldades deste momento? Padre Carrón – continuando a história do rapaz e de seus amigos que não queriam ter filhos – conta que ambos pediram a ele que voltasse sem¬pre a encontrá-los, pois viam que ele não tinha medo e nem conseguia apagar este desejo de felicidade e de realização que neles parecia sufocado pela falta de esperança e pelo medo. É um encontro que desperta o nosso coração, que nos faz recuperar o desejo e a esperança que nos colocam na postura justa frente aos problemas do mundo.
Neste sentido, vale a pena (re)ler os depoimentos de nossos amigos no artigo “Agora que a Copa acabou”, também publicado na última edição de Passos. Eles nos contam como descobrem todos os dias a razão e a força para enfrentar as dificuldades olhando e encontrando a experiência de outros amigos que lhes testemunham esse de¬sejo de realização da própria humanidade. Pessoas “como quaisquer outras”, aparentemente sem nada de excepcional, mas que demonstram esse desejo e essa esperança no modo como se relacionam com o trabalho, na sua busca pela beleza, na forma como enfrentam uma doença ou em sua dedicação aos que sofrem e passam por dificuldades.
Por isso, conclui padre Carrón: “É então que se compreende o bem que o outro representa. Na verdade, sem o encontro com o outro – e com um determinado outro – não se poderia manifestar nem manter-se vivo um eu que se abra às interrogações funda¬mentais da vida, que não se contente com respostas parciais. A relação com o outro é uma dimensão antropológica constitutiva”.
Por isso, valem também para nós as palavras de Bento XVI: “Aquilo de que mais precisamos neste momento da história é de homens que, por meio de uma fé iluminada e vivida, tornem Deus credível neste mun¬do. […] Precisamos de homens que mantenham o olhar voltado para Deus e aí aprendam a verdadeira humanidade. Temos necessidade de homens cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e aos quais Deus abra o coração, de modo a que o seu intelecto possa falar ao intelecto dos outros e o seu coração possa abrir o coração dos outros” (Ratzinger, J, A Europa de Bento na Crise de Culturas. Lisboa: Alêtheia, 2005).

A construção de um povo. Papa Francisco, na Evangelii Gaudium (224- 257), dá a nossas reflexões o justo enquadramento sociopolítico: “Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo atual, realmente se preocupam mais em dar vida a processos que construam um povo do que com obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e efêmeros, mas que não constroem a plenitude humana. A história julgá-los-á talvez com aquele critério enunciado por Romano Guardini: ‘O único padrão para avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o caráter peculiar e as possibilidades da dita época’. […] Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana, na construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da criação”.
A construção de um povo – entendi¬do como uma realidade social formada por pessoas que vivem de forma solidária, a partir da comunhão dos mesmos ideais de construção do bem comum, respeitosos das suas diferenças internas, mas buscando sempre o encontro com o outro – e a realização da pessoa são parte do mesmo processo. Uma depende da outra, ambas explicitam os de-sejos mais profundos do nosso coração. Recuperar essa raiz cultural, que está na origem, também, do modo de ser do brasileiro, é condição para enfrentar a reconstrução da política neste momento.
Assim, também nós podemos nos reconhecer na frase final do Documento de CL sobre as eleições europeias: “A colaboração do cristianismo é antes de tudo a educação a considerar a realidade em todos os seus fatores e, por conseguinte, a recuperar aquele ímpeto ideal originário que se dissipou com o tempo”.