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Passos N.166, Janeiro 2015

SOCIEDADE / Campanha da Fraternidade

Lições de uma presença

por Francisco Borba Ribeiro Neto

A Campanha da Fraternidade de 2015 tem por tema as relações entre a Igreja e a sociedade, a partir do lema “Eu vim para servir” (cf. Mc 10, 45). A ideia geral é uma das grandes bases do cristianismo em todos os tempos: a presença dos cristãos no mundo sempre procurou ser, à luz da caridade e da fraternidade, um serviço ao outro, particularmente àquele que mais sofre, que vive uma situação de maior fragilidade.
O Texto-Base da Campanha (Brasília: Edições CNBB, 2015) inicia-se de modo muito interessante, retomando a história da relação entre Igreja Católica, sociedade e política na história do Brasil. Mostra como “entre luzes e sombras” esta postura de serviço sempre orientou a ação da Igreja, seja como instituição, seja como pequenas comunidades católicas.
Esta abordagem inicial do Texto-Base também nos convida a fazer uma retomada da presença do carisma de Dom Giussani no Brasil e sua dimensão social. Ainda que a presença institucional de Comunhão e Libertação (CL) no País seja mais recente, pessoas formadas por Dom Giussani estão presentes no Brasil desde a década de 1960, realizando trabalhos missionários, pastorais ou sociais. Trata-se, portanto, de uma presença que atravessou todas as agruras e vicissitudes do regime militar, as esperanças e os novos rumos do período da redemocratização, a estabilização econômica do período FHC e as políticas sociais do período petista.
Não se trata, evidentemente, de reescrever aqui uma história de CL no Brasil, mas de procurar recuperar – seguindo esta interessante abordagem sugerida pelo Texto-Base da CNBB – o que pode nos ajudar a entender de uma forma mais verdadeira a missão da Igreja no mundo, suas relações com a sociedade e o poder.

Uma postura adequada. Uma das indicações mais recorrentes em Dom Giussani é a de que o cristianismo não existe para dar respostas aos problemas concretos da existência humana, tanto individual como social. Isto corresponde a um sadio laicismo, que reconhece que a construção do bem comum é tarefa de todos, independentemente de seu credo religioso. O que o cristianismo faz é colocar a pessoa na postura adequada para responder a esses problemas. Esta frase simples descortina uma série de implicações e aspectos da presença cristã na sociedade, evitando tanto os perigos da politização e da ideologização da fé, quanto os nascidos de uma postura espiritualista e intimista que se afasta dos problemas concretos das pessoas.
Numa recente passagem pelo Brasil, o filósofo francês Jean-Luc Marion fez uma observação que pode ser útil para entender o que Dom Giussani queria dizer. Marion diz que a pergunta “como acabar com a pobreza?” não é adequada para orientar uma discussão sobre a contribuição cristã na luta contra a pobreza. Isto porque este é um problema universal, de todos, cristãos e não cristãos, um problema para cuja solução todas as pessoas de boa vontade são chamadas a dar sua contribuição. A pergunta justa para que a contribuição cristã possa se evidenciar, continua Marion, é “por que, apesar de séculos de lutas sociais, não conseguimos resolver o problema da pobreza?”.
De fato, pensando, por exemplo, neste período que vem dos anos ' 60, em tudo de bom e mal que aconteceu e continua acontecendo em nosso País, é impossível não reconhecer que houve um grande avanço tanto social quanto político e econômico. Mas os tropeços, as desilusões, o sentimento de que nem tudo que deveria ser feito aconteceu, que nem todos se mantiveram fiéis aos seus ideais, também são uma constante neste caminho. E aí percebemos a importância desta “postura adequada” ensinada por Dom Giussani.

A centralidade de Cristo. Mas qual é esta “postura adequada” de que fala Dom Giussani? O então Cardeal Ratzinger, comentando justamente a experiência dos primeiros seguidores de Dom Giussani que vieram para o Brasil explica:
“Pensemos no ano de 1968 e seguintes: os primeiros entre os seus partiram para o Brasil e ali encontraram-se diante da pobreza extrema e da miséria. O que se podia fazer? Como corresponder? Então, surgiu a grande tentação de dizer: agora devemos, temporariamente, prescindir de Cristo, prescindir de Deus, porque há urgências mais prementes; primeiro, devemos mudar as estruturas e as coisas exteriores, primeiro temos o dever de melhorar a terra, e depois poderemos voltar a encontrar também o céu. A grande tentação daquele momento consistia em transformar o cristianismo num moralismo, em substituir o crer com o fazer. Por quê? O que é que o crer comporta? Pode-se dizer: neste momento devemos fazer algo. E todavia, agindo assim, substituindo a fé com o moralismo, o crer com o fazer, termina-se nos particularismos, perdem-se sobretudo os critérios e as orientações e, em última análise, não se edifica, mas divide-se. Com a sua fé impávida e inabalável, Dom Giussani sabia que, mesmo em tal situação, Cristo e o encontro com Ele era central, porque quem não dá Deus, dá demasiado pouco, quem não dá Deus, quem não faz encontrar Deus no rosto de Cristo, não edifica mas destrói, porque faz com que a ação humana se perca em dogmatismos ideológicos e falsos. Dom Giussani conservou a centralidade de Jesus Cristo e, precisamente deste modo, com as obras sociais e com o serviço necessário, ajudou a humanidade neste mundo difícil, onde a responsabilidade dos cristãos pelos pobres do mundo é enorme e urgente.” (Homilia nos funerais de Dom Giussani, 24/02/2007).
Ao longo do tempo, o desejo de bem e de um projeto político justo têm muita dificuldade para se manter. Algumas vezes o problema é a lentidão com a qual as coisas mudam, o cansaço por ver que quanto mais se avança mais se tem para avançar. Outras vezes parece ser exatamente o contrário: o sucesso e a embriaguez do poder aparentemente justificam o autoritarismo e a pretensão de ter uma verdade à qual todos os demais devem se dobrar. Por uma via ou por outra se deixa de permanecer firme na construção do bem comum.
Por isso, também para lutar pela justiça e pelo bem comum, todos precisamos da liberdade e da alegria de já nos sentirmos amados por Cristo, de saber que Ele é o centro de nossas vidas e nos acompanha naquilo que fazemos. Desta certeza, que vem do encontro com Cristo, nasce uma postura justa para enfrentar os problemas concretos. A partir daí, a gratuidade não é uma obrigação moralista, mas a consequência de nos descobrirmos amados gratuitamente. A fidelidade não é um esforço individualista, mas a consequência da fidelidade com a qual Ele nos ama primeiro. As ideologias podem ser acolhidas no que têm de justo e relativizadas em seus desvios, porque sabemos que Deus ama a nós e a nossos irmãos – e isso não depende de nossas ideias.

Uma inteligência nova. A inteligência que nasce da caridade, não de um projeto. Vivemos num mundo cada vez mais dominado por um pensamento único, que parece permitir a pluralidade, mas nos força sempre a voltar às posições já cristalizadas e às velhas formulas. Um olhar pelas campanhas eleitorais recentes é suficiente para constatar, na maioria dos candidatos, a permanência ou a volta dos chavões de sempre, contrastando com o desejo da população de uma palavra nova e uma declaração sincera. O frequentemente alardeado “fracasso das ideologias” não levou ainda ao surgimento de novas respostas bem definidas, deixando para muitos a sensação de um “vazio de ideias”, que acaba sendo reocupado pelas antigas ideologias.
Neste contexto, o caminho apresentado por Dom Giussani partiu sempre de um sadio realismo. A centralidade de Cristo permite a liberdade de olhar a realidade sem a necessidade dos pesados filtros ideológicos de nosso tempo. Isso gerou, ao longo do tempo, uma postura que se abriu às necessidades das pessoas, sem se dobrar aos esquemas ideológicos e partidários em voga. Não faltaram grandes obras de promoção social, algumas reconhecidas com prêmios nacionais e internacionais, mas o segredo da criatividade não veio da aplicação de ideias preconcebidas, mas sim da capacidade de estar perto das pessoas, de olhar para elas tal como eram e não tal como um projeto ideológico ou de poder queria que fossem.
Assim, o trabalho de promoção humana e as obras sociais, por mais complexas que tenham se tornado ao longo do tempo, nasceram sempre da “caritativa”, nome pelo qual desde o início ficaram conhecidas as ações de voluntariado entre os jovens e adultos formados a partir do carisma de Dom Giussani. A preocupação educativa de sempre pontuar, como motivação principal destes trabalhos, o desejo de procurar viver para com o próximo aquela mesma caridade que Cristo vive para conosco não se revelou um fator que levava ao assistencialismo ou à falta de horizontes políticos, como pensavam muitos particularmente nos anos ' 70 e ' 80. Pelo contrário, criou aquela “postura adequada” que permitia ir além das instrumentalizações e dos esquemas ideológicos. A via da caridade, quando seguida a partir da centralidade de Cristo, com um coração aberto e atento a tudo que acontece, gera uma inteligência nova sobre a realidade, uma criatividade capaz de dar respostas novas aos problemas encontrados.
Por isso tudo, a presença do carisma de Dom Giussani no Brasil nunca aconteceu afastada de uma postura de serviço particularmente aos mais pobres e necessitados. Os contextos mudaram, as formas de presença social e política são muito diversas nos tempos atuais em relação aos anos ' 60. Procurar “partilhar as necessidades para partilhar a vida” gerou dezenas de encontros, que ocorreram naqueles anos já distantes lembrados pelo Cardeal Ratzinger, mas que continuaram e continuam acontecendo ainda hoje.

Nunca abandonar uma companhia. Para que esta presença na sociedade não se perca, cedendo aos projetos de poder ou a interesses particulares e individualistas – como infelizmente aconteceu entre muitos no Brasil que se dedicaram a lutar pela transformação da sociedade nestes anos – é necessário sempre a presença de uma companhia, que nos ajude a recuperar sempre a memória do encontro com Cristo e tirar as consequências justas deste encontro em cada momento da vida.
Não abandonar a companhia é aquilo que permite uma fidelidade ao povo também nas obras sociais e no empenho político. Uma fidelidade que tem sustentação, que pode ser corrigida quando necessário, que não se perde em moralismos. Assim, a companhia envolve o povo ao qual se busca servir com dedicação, os amigos com os quais se compartilha a vida e a experiência de fé, aqueles que guiam o caminho do movimento e toda a Igreja, particularmente por meio do vínculo com os bispos e o papa.
Assim, o caminho para um serviço real ao povo, que não se perca em ideologias e projetos de poder, passa pela simplicidade do pertencer à comunidade cristã, entendida corretamente, não como um grupo de amigos fechado em si mesmo, mas como uma companhia guiada rumo a Cristo, em comunhão com toda a Igreja universal.

Nas pegadas do Papa Francisco. No Meeting de Rímini de 2014, o padre jesuíta Antônio Spadaro, que atualmente é um dos maiores conhecedores do Papa Francisco em todo o mundo, fez uma apresentação sobre o pensamento do atual papa. Lembrando que o Cardeal Bergoglio gostava muito dos livros de Dom Giussani, tendo feito inclusive a apresentação de alguns em Buenos Aires, Spadaro salienta a afinidade entre o pensamento de Bergoglio e Giussani.
Spadaro enfatiza que a maior afinidade é exatamente este reconhecimento da atração que Jesus exerce sobre a pessoa humana, este relacionamento que nasce de um amor profundo e de uma gratidão a Cristo, pelas maravilhas que Deus fez por nós. Nossa experiência de fé é “a história de uma relação pessoal intensa, misteriosa e concreta, um afeto inteligente e apaixonado pela pessoa de Jesus “, diz Spadaro, remetendo-se a ambos. “Para Francisco e Dom Giussani, é a maravilha que gera a ligação – só o maravilhamento pode gerar uma ligação que atrai”, lembra ele.
Papa Francisco é hoje, indubitavelmente, o maior exemplo de uma pessoa voltada ao serviço dos que sofrem, que vive um compromisso verdadeiro e evidente com os injustiçados e os que vivem na periferia da existência. É muito significativo que um homem assim, reconhecido por pessoas de todos os credos e posturas ideológicas, não é o fruto de uma postura ideológica, de um moralismo mais radical ou de qualquer outro projeto humano, mas sim do reconhecimento maravilhado do amor de Cristo por ele.
Seu testemunho nos mostra que o melhor e mais radical caminho de serviço às pessoas concretas, de transformação da sociedade, nasce de um amor fascinado a Cristo, que se lança em todas as dimensões da existência. Mas nos mostra também que um verdadeiro amor a Cristo leva sempre a uma real comoção pela dor do outro, a um engajamento solidário com a realidade dos que sofrem. Lições que também nos vem de um olhar sobre aqueles que seguindo o carisma de Dom Giussani no Brasil, ao longo destes anos.
Nossa caminhada humana é sempre cheia de tropeços e falhas, mas recuperar a positividade e a maravilha das coisas que Deus fez por nós – e conosco – ao longo dos anos nos ajuda a compreender melhor o presente e os desafios do futuro. Esta é uma verdade particularmente importante para nós, neste ano em que a Igreja no Brasil nos convida a refletir sobre a relação entre Igreja e sociedade, para nos convertermos mais a Cristo.