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Passos N.166, Janeiro 2015

Destaque / Síria

A vida em Alepo

por Luca Fiore

Pelo terceiro ano passaram o Natal em guerra. Bombas e granadas continuam a explodir entre os edifícios. A eletricidade funciona uma hora por dia. Perderam o trabalho, a casa, e muitos perderam também as pessoas mais queridas. Quem foge não sabe se vai ao encontro da vida ou da morte.Contudo, Hana fica, e espera um filho... Notícias da Síria que espera a paz

No dia 25 de dezembro fez dois anos, cinco meses e nove dias. E os moradores de Alepo já não aguentam mais aquela que na Síria é designada como “a mãe de todas as batalhas”. A cidade, de 3 milhões de habitantes antes do início da guerra, e hoje metade, divide-se em dois círculos concêntricos: um exterior, nas mãos dos rebeldes e outro interior controlado pelo exército de Damasco. Não se pode falar de cerco porque existe uma passagem para o exterior ligando o centro da cidade ao resto do país. Há quem fale de 10 mil mortos e 4.500 desalojados. O fronte, inalterado há muitos meses, corre entre as ruas e passeios. Barricadas e checkpoints formam uma longa cicatriz que atormenta o corpo do tecido urbano. Os combates prosseguem fora da cidade. Mas os morteiros e as granadas caem de vez em quando entre os edifícios. A corrente elétrica chega só durante uma única hora por dia. Quem tem um gerador autônomo e consegue combustível para ele funcionar tem sorte. Frutas e verduras não faltam: os produtos chegam às lojas com regularidade, mas os preços aumentam continuamente. Meses atrás os rebeldes tinham sabotado o aqueduto e bairros inteiros ficaram sem água durante semanas. Os poços passaram a ser o bem mais precioso. Agora a água voltou, mas por quanto tempo?
Alepo era a cidade com maior número de cristãos no país: 200 mil.

Destes, talvez ficaram 100 mil. E para eles foi o terceiro Natal em guerra. Em 2013 o viveram perigosamente, pois entre 15 e 28 de dezembro de 2013 o exército sírio lançou uma ofensiva aérea que, segundo algumas fontes, matou mais de quinhentas pessoas. E no último a intensidade dos combates diminuiu, mas o medo não. A 20 Km o Estado Islâmico aperta. Se o exército de Assad ceder, Alepo poderá acabar como Mossul.
O que pensam os cristãos que permanecem? Como vivem? E como se prepararam para celebrar a festa que, no resto do mundo, é sinônimo de alegria e serenidade?
Elias Machek teve que fugir de casa na Sexta-Feira Santa de 2013. Naquela manhã, acordou com o som dos disparos acompanhados do grito “Alá Akbar”. Agarrou no pouco que conseguiu e dirigiu-se para um bairro seguro. “As ruas estavam cheias de gente fugindo. Vi cair um homem atingido por uma bala e ninguém podia socorrê-lo. Ainda hoje ouço o grito da mulher e o choro dos filhos. Continuavam a disparar. Quando me recordo daqueles instantes penso nas mãos de Deus que nos seguraram e nos indicaram o caminho. Rezem por nós, para não cairmos na tentação de renegar a nossa fé...”.

Os “maristas azuis”. Hana Krir tem 25 anos e casou com Elias em julho passado. No perfil do Facebook publicou as fotografias do casamento, e ali não parece uma festa celebrada sob a ameaça das bombas. Por enquanto moram na casa de familiares, porque não têm condições financeiras. Mas há uma boa notícia: estão à espera de um bebê. Também aqui, porém, a alegria é inseparável da preocupação: “No hospital disseram-me que não sabem se vão poder me ajudar. Veremos”. Ensina inglês numa escola católica: “Os estudantes não conseguem se concentrar. Todos temos pelo menos um familiar morto pela guerra”. E o Natal? “Não o sentimos realmente. Temos tantos problemas... Nem mesmo gente rica consegue responder às necessidades mais elementares. Felizmente que temos a Cáritas que nos ajuda, que nos traz o gás para cozinhar, alguma comida... Que nome vou dar ao meu filho? Se for rapaz, Abdalah, que é o nome do meu sogro e significa “escravo de Deus”. Se for menina não sei”.
“Gostaríamos de ter preparado uma festa bonita para o Natal, mas como? Vivemos com medo”, conta Mia Asal: “Há alguns dias nossa casa foi atingida por um morteiro”. Mia é casada com Umit. A guerra tirou o emprego de ambos. Ela trabalhava num banco. Ele era guia turístico. Têm duas filhas, uma de 20 anos e outra de 16. “Continuam estudando, mas a tensão é muita para elas também. A ideia é irmos embora, mas não temos dinheiro. Gostaria que minhas filhas voltassem a sorrir. O que peço a Jesus? A paz, para Alepo e para a Síria. Mas não sei bem o que dizer, sinto-me triste e infeliz”. “Neste Natal montei a árvore. É o símbolo da vida”. A senhora Raouik conta a história da sua família, fugida há um ano de Djabal al-Sayed, uma zona residencial de Alepo. No verão de 2012 acabou acolhendo os refugiados de outras zonas da cidade invadidas pelos rebeldes. Nem todos seus vizinhos estavam dispostos a ajudar. Alguns defendiam que não se devia ajudar os muçulmanos. “Neles, eu e o meu marido, víamos apenas pessoas que tinham perdido tudo”. No ano seguinte foi a vez dela. “Uma manhã acordamos com o som dos disparos e os gritos dos rebeldes. A minha filha mais velha entrou em pânico. A pequena ficou muda”. No dia seguinte começou a fuga. As ruas do bairro encheram- se de gente. “Não sabíamos se estávamos fugindo ao encontro da vida ou ao encontro da morte. Nesse dia interminável murmurava para mim as palavras do salmo: ‘O Senhor é a minha luz e a minha salvação, de quem eu terei medo?’. Por fim chegamos a uma zona segura, onde tínhamos amigos à nossa espera”. Para a senhora Raouik seguem-se meses difíceis. O esforço de se recomporem, de recomeçar, aceitar serem sobreviventes. O bairro onde nasceu e viveu deixou de existir. No entanto, “aos poucos fomos experimentando a presença do Senhor. Vimos a solidariedade, a ajuda preciosa de frei Georges Sabe e dos outros ‘maristas azuis’. Mesmo se todas as portas parecem fechadas, Maria indica-nos, no nosso coração, um caminho de esperança. Apesar de tudo, também neste Natal a vida renasceu”.
Os Irmãos maristas são uma presença importante em Alepo. Distribuem diariamente uma refeição quente para 350 pessoas e também pagam o aluguel para 45 famílias. Oferecem tratamento gratuito aos civis feridos, sendo que os dois hospitais da cidade estão lotados. Cuidam também dos menores: organizaram uma creche para 280 crianças cristãs e muçulmanas. Mais de vinte crianças, entre os sete e os treze anos, que por inúmeras razões não frequentam a escola, são acolhidos e acompanhados nos estudos. Aline, Laila e Mony são três jovens que trabalham com eles. Cada uma tem a sua história e as suas interrogações. “Perdemos tudo, mas a perda que dói mais é não perceber o porquê de tudo isto”, diz Aline: “Agora já são poucos os acontecimentos dolorosos que me tocam. Pergunto a Deus: “Por que não intervéns?”. Sou crente, sim, mas sinto que estou perdendo a fé. E pergunto-me se ainda tem sentido festejar”.
Laila descreve os paradoxos de quem vive há dois anos e meio debaixo de fogo: “Guerra e paz, esperança e desespero, impaciência e espera, fé e dúvida. O meu comportamento não corresponde ao que sei de mim mesma, e digo como São Paulo: ‘Não faço o bem que quero’. O sofrimento invadiu a minha vida. Devo ficar ou partir? Não tenho resposta”. Mony, fala da luta para não cair na armadilha da guerra. A armadilha que é deixar-se dominar por ela. “É a fé que ilumina as minhas escolhas: ela me faz voltar para o outro, o outro diferente de mim, o outro ferido. Hoje posso ler a minha vida mediante a experiência da cruz. Às vezes o caminho da fé parece utópico. Mas, ainda que tudo pareça sugerir o contrário, hoje é possível ter atitudes de paz, de reconciliação e de solidariedade”.

Os jovens de Homs. No sul, distante 170 Km de Alepo, a guerra assola também a cidade de Homs. O cerco à cidade velha, que terminou em maio de 2014, não pôs fim aos combates. Claro que, em comparação ao ano anterior, o Natal foi mais tranquilo. Mas só do ponto de vista militar. “Como nos preparamos para a vinda de Jesus? Em primeiro lugar preparando os nossos corpos. É um período de muito frio e não há combustível para o aquecimento. Aqui se chega a cinco graus abaixo de zero”. O padre Ziad Hilal, diretor do Jesuit Refugee Service, vai direto ao ponto: “O embargo não está atingindo apenas o Governo de Damasco, quem sofre são, sobretudo, pessoas comuns”. Sabe disso porque a organização que dirige assiste três mil pessoas necessitadas da cidade, distribuindo alimentos e bens de primeira necessidade. Dele depende um ambulatório e um centro que se ocupa de 85 deficientes mentais e um para os inválidos da guerra. E não acaba aqui: todos os dias chegam aos centros geridos pelos jesuítas cerca de 2.000 crianças cristãs e muçulmanas que estudam e brincam juntas.
Fora do escritório está Nara Nasseif, 22 anos, estudante do segundo ano da universidade. De tarde trabalha com os jesuítas para ajudar a sua família. “Recebo as pessoas que pedem ajuda. Eu tenho que entender do que precisam e encaminhá-las para um dos nossos centros. São pessoas cansadas, muitas vezes mal humoradas. Às vezes gritam e querem uma resposta imediata aos seus pedidos. Não é fácil. Eu as atendo e procuro acalmá-las. No princípio foi mesmo difícil. Chegava em casa e pedia a Deus que me desse compaixão por essa gente. Tentei trazer para o trabalho a experiência que fiz desde pequena indo à paróquia”.
Terá conhecido pessoas como Josef, 23 anos, estudante de Farmácia, que ajuda os jesuítas na catequese das crianças do ensino fundamental. “Seria normal pensar que Homs é uma cidade de morte. Mas quando vemos o que se faz, aqui vemos a vida”, explica o rapaz: “Fui educado como cristão desde pequeno. Tive os meus momentos difíceis, tive dúvidas de fé. Mas cada vez que voltava aqui, encontrava o padre Ziad e os outros e via uma luz que não existe em nenhum outro lugar. Ainda hoje é assim, não é um pensamento, é algo que sinto e vivo”.
Andando pela rua ninguém diria que também em Homs o Natal iria chegar. Não tinham iluminações nem árvores enfeitadas. “Começamos o Advento explicando às crianças o mistério da Anunciação”, continua Josef: “Assim também nós procuramos acolher esse anúncio nos nossos corações”. O padre Ziad, pela primeira vez este ano, graças a uma doação da Europa, comprou um presente para cada uma das cinco mil crianças. Chocolates, balas, camisas, pijamas. “Foi um outro Natal estranho. Mas posso dizer que estamos felizes. Quando Cristo veio a esse mundo não tinha nem eletricidade nem aquecimento. Teve frio como nós temos. E isso não o impediu de ser amigo das pessoas que encontrava”.