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Passos N.167, Março 2015

NÓS E O ISLÃ

A razão ausente ou o verdadeiro adão

por Wael Farouq

Slogan e cólera não nos mudam. Devemos retornar para onde? O percurso de um muçulmano que quer “consultar o coração”

Os rostos dos amigos voltaram a se mostrar nos perfis das redes sociais, depois de terem se escondido durante dias por trás de uma cartolina negra com a escrita “Je suis Charlie”, ou “Je suis Ahmed”. Charlie, que tanto ocupou a mente do mundo, agora não interessa mais. A sua presença em nossa memória se apagará aos poucos, até se depositar no fundo do esquecimento, junto com outros slogans. “Bring back our girls”, “Eu sou nazareno”... Todos slogans que enchem a nossa vida como uma falsa gravidez, porque terminam no nada.
Com “nada”, aqui, não entendo a incapacidade de mudar o curso dos eventos, mas – e é isso que fere – a incapacidade de mudar alguma coisa dentro de nós, como se fôssemos um corpo inerte, insensível aos golpes. Movimentamo-nos com entusiasmo no contexto dos eventos, voltamos o nosso olhar enraivecido para todas as direções, porém não conseguimos encaixar esses eventos no contexto da nossa experiência humana. Em outras palavras, não somos sujeitos agentes, porque permanecemos prisioneiros da reatividade bem descrita por Dom Luigi Giussani em O senso religioso: “Como é superficial uma ação que nasce como pura reatividade do instante! (...) Diálogo e comunicação humana têm raízes na experiência. Efetivamente, de que dependem a aridez e a flacidez da convivência, da convivência das comunidades, senão do fato de que pouquíssimas pessoas podem se dizer engajadas na experiência, na vida como experiência? É o descompromisso com a vida como experiência que nos faz ‘bater papo’ e não falar. (...) A reatividade quebra as pontes com a tradição, com a história, torna árido o ímpeto rumo ao futuro como fecundidade (pode permanecer como raiva, uma raiva vazia: ‘Flégias, Flégias, gritando estás por nada’ (Dante, Inferno, canto VIII, v. 19). Essa reatividade reduz a capacidade de diálogo e de comunicação, porque diálogo e comunicação têm raízes na experiência, guardada e, portanto, amadurecida na memória, e julgada pela inteligência, isto é, julgada segundo os caracteres, as exigências constitutivas da nossa humanidade” (L. Giussani, O senso religioso, Universa, Brasília 2009, pp. 129-132).
A cólera é a voz aterrorizada do vazio, a voz dos homens vazios, como diz Thomas Eliot: “Figura sem forma, sombra sem cor, / Força paralisada, gesto desprovido de movimento”. Por trás dos slogans encolerizados, não existe um Eu, mas um “gesto desprovido de movimento”, que se move como um rebanho e perdeu a capacidade de formular juízos. A cólera é uma reação, a dor é uma resposta. Enraivecemos por algo abstrato, mas em relação às pessoas, sofremos. Se cremos numa ideia, enraivecemos; se amamos, sofremos. Papa Francisco nos convida a chorar: “Com coração de filho, de irmão, peço a todos vocês e para todos nós a conversão do coração: passar do Que me importa? ao pranto. Para todas as vítimas da ‘inútil chacina’, para todas as vítimas da loucura da guerra, em qualquer tempo. O choro. Irmãos, a humanidade precisa chorar, e esta é a hora do pranto” (celebração no Sacrário de Redipuglia, 13 de setembro de 2014). A cólera, tal qual o amor, é cega, porque não vê o bem. A dor, ao invés, é discernimento que constrói no presente a memória do futuro.

Violência religiosa? Em meio ao clamor de vozes enraivecidas, ao jornal Avvenire, o Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter- religioso, Cardeal Jean-Louis Tauran, disse: “A religião não é o problema, mas parte da solução”. Soa estranho e chocante. De fato, hoje em dia é quase dado como óbvio que a religião, em geral, é a principal fonte de violência. Se o Ocidente não tivesse excluído a religião da vida pública, viveríamos ainda numa espiral de violência. “Vejam os muçulmanos!”, pensa-se.
A verdade que raramente é dita pelos meios de informação é que a violência motivada religiosamente representa apenas uma mínima porcentagem da violência que aflige a sociedade contemporânea. O terrorismo religioso representa menos de 10% de todos os ataques terroristas (Rapporto Europol, 2014). Uma pesquisa da Universidade da Carolina do Norte mostrou que, entre 11 de setembro de 2011 e 2013, as vítimas americanas do terrorismo islâmico foram 37; as de homicídio, 190 mil, das quais catorze mil só em 2013 (Charles Kurzman, Muslim- American Terrorism in 2013, University of North Carolina).
Alguns pesquisadores “laicos” consideram que a marginalização da religião da vida pública até causou um aumento do índice de violência. Por exemplo, Karen Armstrong, escritora inglesa especialista em temas de religião, numa entrevista de 2014 para Salon, critica a opinião dominante de que a violência é um resíduo da religião. Ela afirma que criticar a religião pela violência permite aos ocidentais ignorar o papel fundamental que a violência exerceu na formação de suas sociedades, assim como o papel que essas sociedades exerceram ao semear violência ao seu entorno.
Segundo Karen, se pensarmos que o sagrado é algo pelo qual as pessoas estão dispostas a sacrificar a própria vida, então, em certo sentido, a Nação substituiu Deus, porque hoje não é mais aceitável morrer pela religião, mas é admirável morrer pela própria nação. Acrescenta que estamos todos envolvidos nessa violência e que não existe um Estado – por mais que ele possa proclamar que ama a paz – que se permitiu dissolver o próprio exército. Por isso – conclui – quando o povo identifica na religião a causa das grandes guerras da história, executa uma simplificação excessiva. A violência está no coração das nossas vidas, de uma forma ou de outra.

O Alcorão e Charlie. Há muitos versículos do Alcorão que ensinam os muçulmanos como reagir frente ao escárnio de Deus, do próprio Alcorão ou dos profetas. Todos eles pedem que se responda ao mal com o bem. Não há um só versículo que preveja uma punição para a blasfêmia.
“Ele vos revelou no livro que quando ouvirdes que se renegam os sinais de Deus ou os desprezam, não deveis permanecer com os que fazem isso, até que mudem o discurso” (Sura 4:140). Ou: “O bem e o mal não são iguais; afasta o mal com um bem maior, e o inimigo será para ti um amigo sincero” (Sura 41:34). E ainda: “Os servos do Clemente são aqueles que caminham na terra com humildade e quando os ignorantes se dirigem a eles respondem Paz” (Sura 25:63). Aliás, o Alcorão estabelece que a defesa do Islã, do seu Livro e do seu Profeta, não é, de modo algum, confiada aos muçulmanos, mas cabe somente a Deus: “Nós te bastamos contra aqueles que zombam de ti” (Sura 15:95); “Nós revelamos o aviso e nós somos os guardiões dele” (Sura 15:9). Por isso, segundo o que transmite a tradição islâmica, o califa Umar b. al-Khattab (634-644 d.C.) disse: “Deixai perecer o iníquo, calando sobre ele”.
Com isso não quero propor um “verdadeiro Islã”. É nisso que acredito, o que não nega – como faz quem se diz muçulmano e pensa que o Islã nada mais seja que uma licença para matar – a fé do outro. As coisas são bem mais complexas do que qualquer versículo que apela para a paz e algum outro versículo que convida para a guerra; e bem mais trágicas do que a fútil polêmica ideológica.
No dia anterior ao ataque a Charlie Hebdo, o jornal egípcio Aqidati (“O meu credo”) publicou a resposta do doutor Adel Abul Abbas, membro do Conselho das fatwa de al-Azhar, ao seguinte quesito: o que prescreve a sharia para um homem que pronuncia a fórmula do divórcio durante o sono? Sua mulher deve considerar-se divorciada, levando-se em conta que não pode haver divórcio para alguém adormecido, faltando-lhe a plena vontade? Essa é só uma das milhares de fatwa que todo ano são promulgadas no mundo islâmico. O enorme número e a natureza dessas fatwa refletem a vastidão e a natureza da sua demanda; observando-as, se diria que os muçulmanos perderam a capacidade de julgar, delegando toda a responsabilidade de pensar, para tudo o que se refere à conformidade da própria vida quotidiana com o próprio credo, aos homens religiosos. Ao mesmo tempo, esses homens religiosos, que carregam o peso de pensar por toda uma sociedade, se apresentam como os mediadores entre os piedosos antepassados e os filhos da sociedade moderna, nada menos que os transmissores dos grandes imãs do passado (que também é a fonte da sua legitimidade e autoridade), cuja missão é apenas a de preservar a pureza do Islã tal como o viveram os antepassados e como Deus quer que os filhos vivam no presente.
No passado, quando não havia ainda a abundância de meios de comunicação, as fatwa se caracterizavam pela sua generalidade. Cabia às pessoas exercitar o pensamento e a interpretação para estabelecer o nexo entre uma fatwa conhecida e a própria situação pessoal. Hoje, os meios de comunicação modernos oferecem a qualquer pessoa a possibilidade de obter uma fatwa aplicável só ao seu caso particular. Consequentemente, essa pessoa não é mais levada a pensar, raciocinar, por analogia ou argumentar. A modernidade colocou à disposição uma tecnologia que definitivamente desligou a religiosidade da racionalidade. Isso contrasta com aquilo que o Islã considera como a sua característica mais importante: a ausência de clero, acompanhada do princípio que convida sempre a “consultar o próprio coração, mesmo quando lhe é dada uma resposta jurídica (fatwa)”. Pois a autoridade última que julga as ações de uma pessoa é o seu coração.
A cultura islâmica contemporânea, seja do ponto de vista intelectual quanto prático, nada mais é que uma prisão para os valores da civilização islâmica. As tradições religiosas se tornaram mais importantes do que a experiência religiosa, a forma se tornou mais importante do que a pessoa, mais do que a sua mente, do que o seu coração e do que a sua consciência. Por isso se tornou impossível matar e morrer em nome da “forma” e aceitar, em nome desta última, o sacrifício da própria pessoa. A emissão da fatwa sobre o divórcio de um adormecido, pouco antes do ataque a Charlie Hebdo, não é uma coincidência, é o emblema paradoxal de uma razão ausente que repudia a vida.

Valores esvaziados. Nos anos trinta do séc. XX, os japoneses consideravam o imperador Hirohito igual a um deus, que os levaria ao renascimento econômico e à construção de uma força militar capaz de dominar vastas regiões do mundo. Depois da desonrosa derrota do Japão na guerra, o imperador manteve a sua sacralidade, mas esta perdeu todo o seu significado, inclusive porque o imperador havia guiado o seu povo para a destruição alheia, antes mesmo da destruição do próprio país. Foi assim que os japoneses passaram a chamá-lo de “o sagrado nada” (in Patrick Smith, Japan: a Reinterpretation, Knopf Doubleday Publishing Group, 2011).
O “sagrado nada” é a expressão que melhor descreve os valores da civilização ocidental de hoje. Seja no plano prático, seja no cultural, esses valores foram esvaziados do seu significado, embora todos os sacralizem, como no caso do valor da liberdade. Infelizmente, o caso não se limita à falida exportação desses valores para o exterior, mas se estende também ao seu esvaziamento de significado internamente, no plano intelectual e prático.
Na cultura contemporânea, o efêmero se tornou central. Nada provoca um sinal de distinção, um significado, porque tudo é fugaz. A atenção da cultura contemporânea se deslocou, assim, do ser no mundo para o se tornar, para o transitar no mundo. Este é o mundo do transitório e do efêmero. As ideologias caíram, mas o medo do outro aumentou. O niilismo deu marcha à ré, mas o seu lugar foi ocupado por uma neutralidade passiva em relação a qualquer coisa. O termo “pós”, anteposto a qualquer palavra que indica um aspecto do conhecimento humano (como em pós-industrial, pós-histórico, pós-moderno, etc.), implica a incapacidade de atribuir um significado à condição humana presente.
O filósofo alemão Jürgen Habermas vê nisso uma consequência da exclusão da religião da vida pública. E é verdade que todos os desafios sociais que devemos enfrentar são fundamentalmente recondutíveis à incapacidade de dar à vida um significado, uma fonte que é representada justamente pela religião. Os pós-modernistas acham que libertaram a humanidade da prisão de binômios intelectuais como bem-mal, presença-ausência, eu-outro, mas na realidade só passaram da contraposição entre os elementos desses binômios para colocá-los no mesmo plano – e para a incapacidade que daí deriva de formular juízos, que por sua vez leva à interrupção de qualquer interação com a realidade e à uniformização da identidade individual e coletiva.
O pós-modernismo lutou contra a exclusão do outro, do “diferente”, operada pelo modernismo, mas não encontrou outra via para fazê-lo do que excluir a “diversidade”, pois é opinião difusa de que a convivência pacífica não pode ter êxito a não ser excluindo a experiência religiosa e ética da esfera pública. Isso, todavia, implica a exclusão da diferença e, quando a experiência religiosa é um dos elementos mais importantes da identidade, a exclusão da diferença, na verdade, se torna exclusão do eu.

Liberdade. Mas essa laicidade extremista conseguiu realizar o próprio objetivo? Não existe metrópole europeia, hoje, que não hospede uma “sociedade paralela”, onde vivem os imigrantes muçulmanos. Tentativas apressadas de integrar os imigrantes acabaram por tornar as fronteiras culturais e religiosas invisíveis no espaço público. Na França, foi promulgada uma lei que proíbe a exibição dos símbolos religiosos no espaço público. Consequentemente, a França se tornou um Estado cuja Constituição protege a diferença e o pluralismo, mas cujas leis criminalizam a sua expressão.
A exclusão da diversidade do espaço público fez com que a adaptação, e não a interação, se tornasse o quadro dentro do qual se inscreve a relação dos imigrantes com a sua nova sociedade. Esse e outros fatores de natureza subjetiva, isto é, relativos à cultura dos próprios imigrantes, levaram à criação de sociedades paralelas em conflito com o ambiente circundante, que permanece, para eles, um ambiente alheio, estrangeiro. Nesse contexto cultural, se alguém perguntasse “o que é a liberdade?”, a resposta seria: qualquer coisa. Mas uma liberdade que significa qualquer coisa não é nada. A liberdade verdadeira tem um rosto, um nome, limites representados pela experiência humana, que, todavia, não pode ser tal se da pessoa se arrancam a sua identidade, a sua história, a sua existência e o seu objetivo. Tornar-se-ia uma forma esvaziada de significado e contribuiria, junto à cultura islâmica contemporânea, para a exclusão da pessoa, da sua experiência e da sua identidade. Nesse caso, passaríamos do “sagrado nada” para o “nada é sagrado”. De fato, nada é sagrado enquanto a forma estiver no centro e a pessoa, à margem.
No Alcorão, como na Bíblia, Adão começa a se relacionar com o mundo atribuindo um nome às coisas. O Adão contemporâneo, ao invés, perde todo dia um pedaço do seu mundo porque se esquece do nome das coisas, porque não lhes dá mais nenhum nome, e porque nem mesmo se importa em lhes dar um nome. O homem, hoje, se tornou um pós-Adão. Mas para enfrentar o desafio de hoje precisamos, mais do que nunca, retornar ao senso religioso, à experiência pessoal: ao verdadeiro Adão.
(tradução do árabe: Elisa Ferrero)