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Passos N.174, Outubro 2015

RUBRICAS

Cartas

MEETING / O ANJO DA GUARDA DE PADRE IBRAHIM
Caríssimo Julián, sou estudante de Filosofia. Como voluntária no Meeting de Rímini fui a guia de padre Ibrahim Alsabagh. Ele é um homem que vive com uma intensidade excepcional cada momento do dia, incansavelmente disponível e atento, sempre pronto a se mover com uma simplicidade desarmante. Muitos vieram dizer: “Olhando para ele entendi o que significa viver com uma presença no olhar”. Desde sua chegada à Feira, e ainda mais depois do encontro que participou no domingo à tarde, centenas de pessoas quiseram encontrá-lo para agradecer por seu testemunho, para pedir orações ou uma bênção, ou mesmo apenas para uma tímida saudação. Curtos deslocamentos demoravam muito tempo porque ele não negava um instante a ninguém. Domingo à noite, depois de ter cumprimentado um rapaz, me disse: “Olha eu não sei porque o Senhor quis e deixou que eu viesse aqui. Provavelmente não foi por causa do encontro desta tarde, mas para poder abraçar cada um dos que me procuram”. Em outra ocasião semelhante me disse, brincando: “Você é um anjo da guarda gentil!”. Sim, porque na maioria das vezes não era capaz de interromper os diálogos com as pessoas que se aproximavam e levá-lo embora. Foi um dom tão grande que realmente não conseguia deixar de compartilhá-lo. Eu, que muitas vezes sou ciumenta nos meus relacionamentos, vi-me completamente aberta, desejosa de colaborar com seu encontro com os outros. Dei-me conta de que estar com padre Ibrahim mudava meu rosto e meu modo de olhar para o outro. Desejei amar mais meus amigos, desejei servir mais o lugar em que me encontrava. Na manhã de sua partida, acordei e, de repente, senti-me sozinha. Ele me telefonou do aeroporto e ouvir a sua voz serena pouco antes de partir para Aleppo (queria ter certeza de que eu tivesse descansado!) foi uma última confirmação de tudo aquilo que tinha visto naqueles dias. Difícil contentar-se depois de ter vivido tal plenitude. Havia se passado pouquíssimo tempo e já temia que a melancolia vencesse. Porém, entendi que era uma melancolia doce, que não tinha motivo para me preocupar, porque meu gesto já era determinado por aquela companhia que desfrutei até a noite anterior. Quando cheguei à Feira, no escritório das recepcionistas, comecei a recuperar os contatos de alguns amigos que padre Ibrahim conheceu. Um segundo depois de entrar pela porta, me perguntam: “Você está livre? Precisamos de uma guia para o próximo encontro”. Tinha “trabalhado” sem parar durante três dias e estava muito cansada. Nem tinha me lembrado de que o Meeting continuava e meu trabalho também! Foi um “Sim, vou me trocar” muito difícil, mas a primeira coisa que pensei, foi: “Padre Ibrahim teria se mexido logo” e não consegui recusar. Uma semana antes nunca teria feito isso! Ou teria me lamentado. E percebi a mesma coisa no modo de olhar para meus amigos. É algo que acontece, antes mesmo de me empenhar e me esforçar para “ser boa”.
Ilaria, Milão (Itália)

UM OLHAR QUE SE COMUNICA
Trabalho com jovens de 17 a 24 e é um grupo bem diverso. Tem um pouco de tudo, mas é bonita a forma como estamos juntos porque para eles é muito claro que não é um relacionamento por causa de um rótulo: católico ou não católico, bons, ruins, adequados ou não. É sempre um relacionamento com a pessoa, com o humano. É também maravilhoso ver como algumas pessoas da comunidade têm abraçado e recebido esses jovens, como o Jean e a Alessandra, que uma vez por semana, ou a cada quinze dias, abrem a casa e recebem um jovem para o jantar. Por causa disso, alguns fatos aconteceram, como a catequese e o batismo de alguns. Uma jovem, de outra religião, sempre que possível vai a Escola de Comunidade, mesmo levando duas horas para chegar em casa depois. Ela diz: “Eu venho à reunião porque me serve para viver”. Estar diante desses fatos faz com que eu me impressione e me questione: O que é que pode gerar isso entre nós, senão essa experiência de um olhar? Mas estou certa de que não é um olhar que nasce de mim, mas da experiência do encontro que fiz, de um olhar que eu recebi e que vem à tona nas coisas que faço. Fico maravilhada porque normalmente são os jovens que me procuram. Antes que eu faça uma proposta, eles vêm até mim para me contar uma situação dramática que estão vivendo ou para pedir ajuda. Disso nasce um relacionamento e consequentemente o convite para participar de algum gesto do Movimento. E, estando com eles, entendi que não preciso ter a pretensão de mudá-los, porque esse segundo passo é o Senhor que faz. Aquilo que posso fazer é comunicar a experiência desse olhar que me alcançou e que pode alcançar muitas pessoas. Quando eu olho a situação do mundo, hoje, as escolhas que vejo alguns jovens fazerem, confesso que isso me preocupa. Porém, estando diante desses que são mais próximos, me dou conta que mesmo quando eles se lançam em algo inadequado é em busca do verdadeiro. Muitas vezes nos esquecemos ou não acreditamos que nós carregamos esse verdadeiro. Lançamo-nos na realidade como se não tivéssemos um diferencial e, olhando para eles, eu percebo que é fazendo o meu trabalho, tendo clareza desse olhar, que o encontro pode acontecer. Um encontro com uma novidade que serve para a vida. Como nos disse uma vez uma jovem no encontro da Revista Passos: “Eu gostei porque não foi um encontro religioso, que falou de coisas que não entendo, mas falou da minha vida, do que estou vivendo, por isso me interessa”.
Milena, Salvador (BA)

AMADA, DO PRIMEIRO AO ÚLTIMO SEGUNDO
Caro Carrón, hoje entendi uma coisa importante. Foi um dia belíssimo. Eu e meu marido passamos o dia no campo, na casa de Giovanna, uma senhora italiana, colhendo azeitonas com nossos amigos iranianos. Havia a alegria deles, Giovanna, grata pela ajuda, o sol, a comida maravilhosa. No entanto, bastou que duas coisas não acontecessem como eu queria e fiquei triste, fechada e, sobretudo, incapaz de amar aqueles que estavam ali. Na volta, infeliz por ter desperdiçado um dia assim, peguei o livreto dos Exercícios da Fraternidade. Enquanto lia a frase “É a experiência que faz com que eu me dê conta de quem sou verdadeiramente”, percebi que sempre a havia interpretado como uma “paulada”. Como se dissesse: “Você tem muitas ideias boas, mas na experiência vê-se que é uma miserável”. Porém, desta vez, pensei: o que realmente aconteceu hoje? Essa pergunta me fez ver que – para além do meu incômodo e da minha pequenez – hoje fui amada do primeiro ao último segundo. Pelas pessoas que estavam em minha volta, por meu marido, por Quem me colocou diante daquele sol maravilhoso. Fiquei comovida porque – apesar da minha resistência – foi como deixar entrar finalmente uma outra medida que encheu a tristeza de gratidão. Quem sou eu? Alguém que é amada.
Beatrice, Adelaide (Austrália)

OUTRA FORMA DE ESTAR DIANTE DA REALIDADE
As férias nacionais, em julho, começaram para mim basicamente com algumas perguntas: vale a pena ir não podendo participar de todos os dias das férias? O esforço físico e financeiro valem a pena? Resolvi apostar mais uma vez. Então, depois de algumas horas de viagem, eu e minha namorada estávamos em Águas de Lindóia, mas quando chegamos estavam no tempo livre, ou seja, a maioria do pessoal descansava das brincadeiras da parte manhã. Esperava participar logo dos gestos e isso me desanimou um pouco. Naquele dia à noite teríamos os testemunhos, mas o meu cansaço e os problemas que rondavam a minha cabeça colocavam em dúvida a minha aposta nas férias. Entro no salão sem muitas expectativas, e logo no primeiro testemunho sinto como se Cristo me desse um chamado de atenção sobre a minha vida e as minhas preocupações. Nesse testemunho quem falava era o Olavo de São Paulo, o qual explicava de maneira serena que possui 5 filhas (pequenas) e havia sido demitido fazia poucas semanas. O impressionante era que ele contava isso com uma tranquilidade que me assustava e até hoje me assusta, pois se perce bia que essa tranquilidade nele não era alienada e nem uma desistência da realidade que o cercava, mas era certeza em Algo (Cristo), que podia sustentá-lo até nesta situação. Nesta noite também houve o testemunho de Milena, a qual contava do seu relacionamento com os seus alunos e como alguns deles já participavam do encontro da Revista Passos e começavam a fazer uma experiência muito bonita. Nesse momento pensei como para mim é um desafio falar da minha história no Movimento, sendo no meu trabalho ou em outros ambientes e percebi em Milena que essa liberdade a proporcionava diversos encontros os quais a aproximavam de Cristo. Como em todas as férias, mais uma vez teríamos missas diárias. Nenhum problema, entretanto, cada vez mais nossos amigos se casam e por consequência têm filhos. Eu não ligo para a bagunça das crianças, menos em um momento: na missa. Então, como eu já esperava, começou a missa e as crianças começaram a fazer barulho e eis que chega o momento da consagração e padre Ignácio pede a palavra. Penso que ele vai pedir para os pais retirarem as crianças do salão, mas ele faz algo que nunca passaria pela minha cabeça. Ele chama as crianças e os seus respectivos pais para a frente do altar e começa a explicar para eles o que era a consagração. Neste momento ocorre um silêncio entre elas e todos começaram a fazer parte daquele gesto. Essa nova abordagem conseguiu incluir a todos, independente da sua idade. A atitude do padre Ignácio me fez lembrar de algumas discussões que tive na minha Escola de Comunidade, e cito o caso de uma carta na qual Carrón esclareceu a posição de CL sobre um protesto que haveria na Itália. Nesta carta Carrón falava que CL não endossaria o protesto, mas também não proibiria ninguém de ir. Após a leitura desta carta tive a sensação de que estávamos nos omitindo perante a realidade que nos cerca e os desafios que ela traz consigo. Entretanto, a própria carta dizia que deveríamos ter uma postura diferente, não mais uma postura de confronto, mas uma postura na qual seríamos espelho daquilo que falamos. Achava essa segunda postura um pouco utópica e não acreditava nela. Isso mudou para mim no dia em que vi a forma com a qual o padre Ignácio agiu com aquelas crianças. Acredito que era isso o que Carrón queria dizer quando falou de uma nova postura diante dos desafios da nossa realidade.
Rubem, Rio de Janeiro (RJ)

O PRESENTE DE MYRIAM E PADRE GEORGES
“Desculpa, vou roubar apenas um instante! Gostaríamos de convidá-la para um encontro público sobre a perseguição aos cristãos”. Nossas férias começaram assim. Pouco antes da chegada, é dado um aviso no ônibus: quem quiser está convidado para fazer uma panfletagem para convidar as pessoas para o encontro de quinta-feira. Éramos cinquenta. O encontro seria um diálogo com padre Georges Jahola, sacerdote da Diocese Católica Sírio-Antioquenha de Mosul, que nos dá o inesperado presente de falar ao telefone com Myriam, uma menina refugiada em Erbil com a família, depois de termos visto o vídeo da sua entrevista. Suas palavras seguras e decididas se fazem incrivelmente próximas e concretas na simplicidade com a qual responde a nossas perguntas. “De onde nasce sua esperança e coragem?”. “Antes de mais nada, aquilo que testemunhei não é meu, porque dentro de mim fala o Espírito Santo. Essa esperança e essa coragem vêm, seguramente, de Jesus”. “Em que vê a presença de Jesus na sua vida?”. “Apesar da minha fraqueza, vejo Jesus em todos os detalhes da minha vida: Ele me perdoa e me dá coragem, apesar da vida precária que vivemos”. Quando perguntamos quem a ensinou a perdoar seus perseguidores, Myriam responde: “Jesus, através da minha família e da catequese na igreja”. Myriam termina a conversa com essas palavras: “Sempre tenham esperança e vivam em Cristo. Isso nos faz uma coisa só com Ele. Peçam ao Espírito e eu rezo por vocês. Obrigada por gostarem de mim e da minha família”. Sobre a pergunta se não seria justo intervir usando a força, padre Georges responde: “A nossa vida depende, de um lado, da justiça que deve ser feita para que o fraco seja protegido e, por outro, da fé e da esperança que recebemos no decorrer dos séculos, que nos foi enviada por nossos pais. O mundo inteiro olha como nós, cristãos, respondemos ao mal e como podemos radicar a esperança tanto para nós como para os outros. Isso nos torna missionários mesmo permanecendo em nosso país. A indiferença no mundo é muito difundida. E isso só pode ser resolvido com esse tipo de empenho que vocês estão fazendo hoje: saem de férias, mas estudam esses temas. Isso quer dizer que querem saber, saber para viver”. Portanto, o trabalho dos cristãos é “viver essa esperança, esse empenho na nossa vida. Então, olhem o grande desafio que também vocês têm: não é fácil mudar a sociedade, é preciso coragem para viver como cristãos”. Nós também desejamos viver uma certeza e uma consciência assim, capaz de nos fazer atravessar qualquer circunstância que seja colocada diante de nós.
Elena, Giacomo e Nicolò, Bolonha (Itália)

AS EXIGÊNCIAS DO CORAÇÃO
Sou professora universitária e tenho estado mais com os alunos do quarto ano, acompanhando a conclusão do curso. Por causa disso, faz uns dois anos que eu não faço o sarau cultural que costumava promover na universidade com os alunos dos primeiros anos. Recentemente um grupo de alunas foi assistir a um filme lá em casa e perguntaram sobre isso. Eu disse que poderíamos preparar o sarau se as pessoas quisessem. Então combinamos e nos encontramos novamente. No encontro, eu disse que a gente faz o sarau para entender a realidade que vivemos, uma pergunta que temos, por causa de alguma coisa que nos fere, nos atrai de alguma maneira, para podermos compartilhar e aprofundar essas questões. Elas disseram que percebem um problema na faculdade: parece que ninguém gosta de estar naquele ambiente, as pessoas apenas passam por ali sem interesse real por aquele lugar. Elas manifestaram que o sarau podia ajudar a entender as razões de estarem ali porque elas tinham esse desejo, diferente dos outros colegas. Marcamos outro encontro e elas vieram com outros alunos também. Veio uma menina que tem uma deficiência física e é muito admirada por todos, pois sendo um curso de Moda, isso é completamente inesperado. Começamos a conversar e ela disse que sabia qual deveria ser o tema, com base em algumas aulas que eu havia dado. Definiu com a palavra “Pertencer”. Disse que não é possível estar em um lugar sem se sentir parte dele. Por isso marcamos de fazer o sarau. Para mim, primeiro, foi importante reconhecer que o coração ninguém tira; por mais que a gente esteja em uma sociedade crítica e confusa, quando olhamos de verdade para nós mesmos, reconhecemos as exigências. Em segundo lugar, é Cristo acontecendo. Esse foi um sinal muito simples de que Cristo me atraiu de novo, me chamou de novo, aconteceu de novo para minha alegria e salvação.
Sílvia, São Paulo (SP)