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Passos N.178, Março 2016

DESTAQUE

Zika vírus e microcefalia: o aborto é a solução?

por Dalton Luiz de Paula Ramos e Maria Teresa Bechere Fernandes

O aumento da proliferação do zika vírus – suspeito de ter relação com má formação congênita, como a microcefalia – e anúncios como o da Organização Mundial da Saúde (OMS) que no início de fevereiro deste ano decretou estado de emergência sanitária mundial por conta desta ameaça, geram preocupação na população. Medidas sanitárias são urgentes e todos – governos e população – são chamados a se engajarem nas ações que levem a eliminação dos focos do mosquito transmissor. No Brasil, as igrejas locais e a CNBB têm se manifestado convocando suas comunidades a se mobilizarem no combate ao mosquito Aedes aegypti.
Ocorre que, entre tantas manifestações, o Alto Comissário para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), o jordaniano Zeid Ra'ad al-Hussein, pediu no início de fevereiro deste ano que os países atingidos pelo zika vírus permitam o acesso de mulheres ao aborto. No Brasil, grupos que defendem o “direito” das mulheres em optar pelo aborto anunciaram que pretendem levar o tema ao Supremo Tribunal Federal (STF). Paradoxal que pessoas e grupos que se propõem a defender “direitos” falem em permitir o aborto. Paradoxo frente ao entendimento, que julgamos universal, que o primeiro direito de qualquer pessoa humana é o direito à vida. Mas as incongruências não param por aí.

Possibilidades e não certezas. Sobre o nexo entre a infecção do zika vírus e a microcefalia os especialistas ainda discutem se esse é condicionante ou concorrente. Além disso, é importante destacar que a microcefalia é constatada só no momento do parto, quando a circunferência da cabeça é menor que 32 ou 33 centímetros, representando um parâmetro estatístico de alerta para possíveis quadros de malformação congênita e síndromes neurológicas. Estes parâmetros, tidos como padrões, são obtidos através das medidas das circunferências cranianas de bebês nas populações de diversos países. As medidas de circunferência cranianas mais afastadas da média (-2 desvios padrões) são indicativas de risco. Bebês que nascem com essas medidas podem apresentar algum déficit.
A magnitude do problema versus o tamanho da circunferência da cabeça deverá ser avaliada em cada caso em particular, por acompanhamento médico que se fará nas semanas seguintes. Assim, à priori, já temos mais do que um paradoxo, uma incongruência: não necessariamente bebês com circunferência da cabeça abaixo dos percentis estatísticos de normalidade terão graves problemas. Significa dizer que sentenciar ao aborto a partir de uma hipótese de deficiência decorrente de história de infecção por zika vírus ou por qualquer parâmetro de curva de crescimento fetal, antes do parto, representará estar interrompendo a vida tanto de um indivíduo com possível síndrome neurológica como também indivíduos com potencial de vida muito próximo ao normal, ou normal.
Independente de tudo isto, quanto ao aborto o entendimento da Igreja é claríssimo, como reafirmou Papa Francisco: “O aborto não é um ‘mal menor’. É um crime. É descartar um para salvar o outro. É aquilo que a máfia faz, eh? É um crime. É um mal absoluto.” E ainda, “É um mal em si mesmo, mas não é um mal religioso, ao início: não, é um mal humano. Além disso, evidentemente, já que é um mal humano – como todos assassinatos – é condenado.” (Entrevista coletiva durante o voo de regresso a Roma, 17 de fevereiro de 2016).
Também a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) manifestou-se entendendo que a proposta de aborto para os casos de microcefalia é "um total desrespeito à vida".

Não ao aborto, sim à solidariedade. É um engano achar que o aborto resolve os problemas de saúde pública. Quando muito se muda o foco. Crianças que nascem com sequelas devido à microcefalia vão gerar demandas no seu tratamento e acompanhamento não só em termos de assistência à saúde, mas também em educação, seguridade social etc. Aborto liberado gera outras demandas, nem sempre explicitadas nas estatísticas oficiais, muitas vezes mascaradas, até negligenciadas pelos programas de políticas públicas, pois reconhecer a sua existência significa constatar os males do aborto. Aborto gera demandas como o acompanhamento psicológico, social e de saúde reprodutiva das mães e pais vítimas do aborto. Esse discurso de economia é um absurdo.
Mas, então, o que devemos fazer frente a tantos desafios? Além das ações coletivas contra o mosquito transmissor, responsabilidade de todos nós em parceria com os agentes sanitários, à comunidade científica cabe empenho, como lembrado pelo Papa Francisco na entrevista citada: “Ainda, eu exortaria os médicos para que façam tudo para encontrar as vacinas contra estes dois mosquitos que trazem este mal: sobre isto se deve trabalhar”.
E frente aos já doentes, o melhor é sempre afirmarmos o positivo, isto é, o valor da vida qualquer que seja a situação em que a pessoa se encontre: saudável ou doente.
Portanto nesse momento, frente à realidade da microcefalia e suas consequências dolorosas, mais uma vez somos lembrados do que significa a solidariedade que tem na sua essência o amor. Ainda mais oportuno se lembrar disto no Ano da Misericórdia.
“A solidariedade é a virtude que permite a família humana compartilhar plenamente o tesouro dos bens materiais e espirituais” (Bento XVI, Discurso à Pontifícia Academia de Ciências Sociais, 2008). Frente ao sofrimento do irmão não devemos ficar apenas no discurso de responsabilizar os organismos públicos, que efetivamente têm obrigação de estabelecer políticas sanitárias eficazes não só quanto à prevenção como também ao tratamento das doenças. Frente ao sofrimento do irmão cada um de nós é chamado a este “compartilhar”.

A subsidiariedade e o verdadeiro dever do Estado. Esta Revista Passos constantemente documenta a existência de obras de caridade, não necessariamente estruturadas como entidades ou corporações, mas também como iniciativas isoladas de pessoas ou famílias, que se percebem como um ponto onde há uma paixão para a vida, nas quais se responde às necessidades diretamente. Nelas se valoriza tudo e a todos, qualquer que seja a origem de sua presença, quer seja ou não de matiz cristã.
E lembrando-se da missão de obras sociais, retoma-se o papel dos organismos governamentais que, além de suas responsabilidades preventivas e assistenciais, deve valorizar a liberdade, a iniciativa e responsabilidade da sociedade, reconhecer o papel fundamental que estas obras sociais desempenham no fortalecimento da sociedade, já que estes grupos atuam diretamente na construção do bem comum, na solução de seus problemas e na condução do desenvolvimento. É assim que fazemos valer o princípio da Subsidiariedade, da Doutrina Social da Igreja: “A subsidiariedade é a coordenação das atividades da sociedade em apoio a vida interna das comunidades locais” (Bento XVI, op. cit.). Significa dizer que uma família que tem um doente – ou uma entidade que os acolhe – necessita, em termos materiais, de “subsídios públicos” que garantam recursos para a manutenção de suas atividades: programas governamentais que deem suporte a assistência domiciliária, legislação que garanta efetivos direitos trabalhistas e previdenciários aos familiares cuidadores, programas educacionais adequados a crianças com problemas neurológicos etc.
Mas tudo isso não basta se na origem de tudo não existir amor. O que é o amor? Ajuda-nos Luigi Giussani: “O que é o amor se não o bem do outro? É reconhecer a bondade misteriosa de Deus para com cada homem” (Alberto Savorana. Vita di Don Giussani. p. 804, Milão, 2013). Isto nos impulsiona para o encontro e acolhida do outro. Um filho com doença ou má formação não se constitui no projeto de um pai e de uma mãe. Frente à realidade de uma deficiência, doença ou até da morte existe a possibilidade de se viver a experiência da acolhida, da solidariedade.
Porque, do contrário, uma gestante frente ao prognóstico de um filho doente, abandonada (sem uma companhia de pessoas solidárias, e isso é papel e responsabilidade das comunidades) e sem condições materiais ou recursos (econômicos e de suporte para a saúde: sem, portanto, a “subsidiariedade”), a esta só resta o medo, o desespero. E aí o desenlace pode ser trágico.

*Dalton é Professor de Bioética da FO-USP. Membro da Pontifícia Academia Pro Vita – Vaticano; e Maria Teresa é médica, Professora da Faculdade de Medicina da USP.