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Passos N.186, Novembro 2016

DESTAQUE

Histórias de certeza cotidiana

por Alessandra Stoppa

A morte, os relacionamentos, as escolhas, o trabalho... Nos desafios da vida, entre experiências de quem surpreende a “segurança” de um caminho. A partir de um juiz brasileiro, PAULO ANTÔNIO DE CARVALHO, que conta sobre o risco da confiança diante dos “dois muros” que levantamos


Audiência. O juiz lê a sentença ao condenado: oito anos de encarceramento. Depois disso, explica-lhe que pode entrar com um recurso e esperar um resultado melhor. “Não, não. Eu concordo. Eu errei e devo pagar”. Depois acrescenta: “Mas, desculpe-me, eu vou ser preso hoje?”. “Sim. Isso mesmo”, responde o juiz: “Por que você está perguntando?”. “Porque eu não estou preparado para ser preso hoje”. Nesse momento, ou nasce uma risadinha ou nasce uma pergunta. O juiz pergunta-lhe por quê: “Temos dois filhos, e só eu é que trabalho. Se eu antes não puser em ordem as coisas em casa, minha mulher não vai saber como fazer”. “O senhor está me pedindo um tempo?”. “Sim”. “E de quanto tempo o senhor precisa?”. “Dez dias”. “Eu lhe concedo trinta”. Então abre a agenda e anota a data em que o condenado deverá comparecer.
Trinta dias depois, aquele homem apresenta-se pontual, tendo em mãos a sua mochila. “As pessoas no trabalho não acreditavam. Mas aconteceu, porque a confiança é mais forte do que tudo”, diz hoje a Passos o juiz protagonista dessa história. Chama-se Paulo Antônio de Carvalho. Originário de Conceição da Aparecida, no sul de Minas Gerais, há mais de trinta anos é o responsável pela comarca de Itaúna, uma cidade de cem mil habitantes a sessenta quilômetros de Belo Horizonte. As pessoas dizem que ele é louco, por causa da decisão tomada em relação àquele homem. Ele sabe que arriscou muito, tanto naquela como em outras vezes, sobretudo o seu emprego, mas não perde tempo com discussões, e em vez disso diz que “sem arriscar não se faz nada na vida. De resto, tenho só de agradecer a Deus”.
O que lhe deu a coragem para conceder aqueles trinta dias foi um fato muito simples: “Eu olhei aquele homem nos olhos”, conta: “Apostei tudo na confiança nele”. Ademais, a história não acaba só com um condenado que se apresenta ao fim do prazo e vai para a prisão com as próprias pernas, mas também com um juiz que não manda o camburão buscá-lo com as sirenes ligadas. “Eu lhe causaria um profundo constrangimento. Ele algemado, diante dos filhos e da mulher, os vizinhos na janela. É possível fazer as coisas de maneira mais humana. E, além disso, você sabe que diferença há em ir para o presídio sem a angústia dos problemas que deixamos em casa? Se fosse condenado hoje, nem mesmo eu estaria preparado”.
Dr. Paulo formou-se em Direito em 1970, tornou-se juiz seis anos depois, mas não assumiu o cargo imediatamente, percebeu toda a gravidade da tarefa que lhe fora confiada e tinha medo, não se sentia suficientemente preparado e maduro: “Nós, juízes, lidamos com a liberdade dos homens. Deus dividiu conosco a sua própria responsabilidade: a de julgar. Então é preciso muita prudência. É preciso agir com misericórdia para não trair a confiança que Deus depositou em nós. Eu amadureci com o tempo e a experiência, principalmente com a religiosidade. E graças a alguns encontros”.
Chegou a Itaúna em 30 de junho de 1984. No começo fazia seu trabalho “como o faz a imensa maioria dos juízes”, considerando a execução de uma pena como uma questão administrativa. “Até que me dei conta de que ‘do outro lado’ havia um homem como eu, ou seja, com a mesma necessidade de atenção”. Aprendeu isso encontrando o método da APAC, os presídios sem carcereiros dos quais temos falado nas últimas edições de Passos . O método nasce de uma intuição vertiginosa de um advogado de São Paulo, Mário Otoboni, que foi o primeiro a fazer a sua aposta: um homem é sempre maior do que o mal que cometeu. Qualquer crime tenha cometido. Com os anos, os presídios da APAC chegaram ao número de 40 só no estado de Minas Gerais, hospedando mais de três mil “recuperandos”, modo como os presos são chamados: são uma fonte de perdão, de fatos impensáveis, transformam as famílias, a sociedade ao redor, apresentam uma reincidência de 15 a 20%, contra a de 80% dos presídios tradicionais.
É uma visão diferente do direito, do detento, da pena. Mas a força mais revolucionária desse método revelou-se na experiência de um detento, José de Jesus, que marcou Dr. Paulo para sempre. “Era um homem muito forte e muito inteligente, que graça a essas duas qualidades sempre conseguia fugir de todas as prisões”. Quando o Tribunal de Justiça encomendou uma reportagem sobre a APAC, um jornalista perguntou a José: “Você sempre fugiu. Agora está aqui há dois anos, onde não há guardas, e mesmo assim não foge. Por quê?”. E ele disse: “Porque do amor ninguém foge”.

“Ficamos ‘presos’ sozinhos”. O juiz não ficou imediatamente convencido do método da APAC. “Eu precisei de uns dois anos”. Ele precisou ver vidas mudadas como a de José, os efeitos na sociedade, e antes ainda o trabalho dos voluntários: “Fiquei impressionado com a dedicação de todas aquelas pessoas, que investem energia e tempo assim, num mundo como o de hoje”. No qual, se há alguém inaceitável, é quem errou. Ficou muito impressionado com o aprofundamento de padre Julián Carrón no texto “A forma do testemunho” da Passos de outubro, sobre as tentativas de resposta à insegurança existencial do nosso tempo. “Isso me deixa surpreso porque é crucial. Hoje nós construímos dois tipos de muros: o primeiro para manter afastado quem faz mal, o segundo para nos fecharmos dentro das nossas vidas. Ficamos ‘presos’ sozinhos, achando que estamos seguros. Assim criamos mais problemas, cortando a comunicação com o outro. E não resolvemos absolutamente o problema do medo que está dentro de nós, no nosso íntimo, o qual depende da mudança de coração: de uma transformação da vida, sem a qual nunca ficaríamos em paz”, explica Dr. Paulo.
Se o mundo também passasse o tempo todo “prendendo as pessoas, achando que é o caminho certo, a realidade diz que não é assim”. A realidade diz outra coisa: “Que temos de buscar novas maneiras. Fazer as mesmas coisas de forma diferente, mais humana”. A criminalidade diminui quando a tentativa é de “diminuir a altura dos muros, olhar para o detento como um sujeito de direitos, investir na educação e na reinserção”. Não é verdade que o mundo assim seja menos seguro. Os resultados da APAC não são “gratuitos”, existem porque “o método funciona”.

Centelha divina. Para ele, é ver concretizada a convicção de Gudesteu Biber, ex-presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “É necessário que o preso seja tratado como ser humano para que ele possa reagir como ser humano”. Dr. Paulo ousa ainda mais: “É necessário tratá-lo pela centelha divina que tem dentro de si”. Por isso é tão interessante para ele “o desafio de Dom Giussani e de padre Carrón: só quando se chega ao coração do homem é que se pode efetuar qualquer transformação. Mesmo social”.
Ele olha para sua carreira e não vê as cerca de dezoito mil condenações que aplicou, mas as sessenta mil pessoas que passaram por ele nas audiências. Com o tempo aprendeu a ver neles “muitos Lázaros, como podemos ser nós ou as pessoas que encontramos todos os dias. Pessoas ‘mortas’, necessitadas da vinda de Jesus ao sepulcro para lhes dizer: Vem para fora!”. Confessa que muitas vezes pensa na provocação do Papa sobre as esmolas, quando diz que não estamos fazendo nada se damos uma moeda a um morador de rua: não mudamos a sua situação, o mundo prossegue exatamente como antes. “Francisco diz que é algo completamente diferente parar, olhar o outro nos olhos, dar-lhe a mão, falar com ele. Porque com certeza aquela pessoa está pedindo amor, não somente uma moeda. Há outra forma de fazer a mesma coisa, que muda tudo”.
O que o senhor ganha ao trabalhar e viver de uma maneira diferente? “De todas as coisas de que posso falar, esta é a mais importante”, responde: “Nada do que é feito tem um valor, se é feito formalmente, se se fazem todas as ‘coisas certas’, até mesmo os deveres religiosos, como meros espectadores, sem viver a essência da vida. Eu ganho muito: envolver-me na relação com o irmão que está na minha frente, com os fatos que me ocorrem, provocou em mim uma transformação muito profunda. Eu cresci, como cristão, como homem. Como juiz. Hoje sou melhor do que era antes”.
Para falar de si mesmo, não pode abrir mão da experiência da APAC, e tampouco da relação com dois sacerdotes que, na infância e na juventude, foram pais para ele, que perdeu o pai aos sete anos: “Transmitiram-me a fé, e hoje eu continuo a seguir o caminho que eles me indicaram”. Depois acrescenta: “Deus foi muito bom comigo, dando-me tudo isto. Sim, a ‘segurança’ nasce de se saber muito amado...”.