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Passos N.189, Março 2017

ESPECIAL

“Os problemas não são criados pelos outros, os outros nos tornam conscientes dos problemas que temos”

Entrevista com Julián Carrón - por Ángel L. Fernández Recuero

Encontramo-nos com Julián no bar do Hotel de las Letras, em Madri, aproveitando uma de suas rápidas passagens pela Espanha. Conversamos sobre política, razão e ciência, e nos explicou a raiz da mudança que se verifica na sociedade ocidental, que tem o Iluminismo como elemento chave. Também nos contou como se vive o cristianismo em Comunhão e Libertação e de que modo isso pode ser um fator essencial no nosso futuro. Julián é acessível, amável e claro, e tem grande poder de convicção, mesmo diante das colocações de um ateu obstinado como quem o entrevista...

Em que sentido a sociedade ocidental está diante de uma crise antropológica?
Estamos vendo acontecer, diante dos nossos olhos, a queda de certos pilares que acreditávamos sólidos. Pensemos nos imigrantes, na reação de muitas pessoas em relação ao fenômeno dos refugiados. Quem iria imaginar, há apenas algumas décadas, que poderíamos erguer muros na Europa depois de ter desejado, durante tantos anos, derrubar o muro de Berlim. Pensemos no vazio que domina na sociedade que, depois, como estamos vendo, pode se transformar em terrorismo e violência. E vemos como os Estados Unidos ou a Europa reagem diante dos grandes desafios do nosso tempo. Essa situação gera insegurança e medo, como dizia Bauman.

Os valores decaíram? É negativo o fato de que estes valores decaiam?
O que são os valores? São as qualidades que nos tornam pessoas melhores. A liberdade, a generosidade ou a solidariedade são coisas muito preciosas e fundamentais em nossa civilização. Os valores nos permitem abraçar a diversidade do outro, tornam mais fácil o relacionamento com os que são diferentes de nós, nos permitem sair dos nossos esquemas pré-definidos, em suma, tornam a vida mais humana, menos dura.

De onde deveríamos partir para haver uma nova construção?
Para uma nova construção, a primeira coisa necessária é entender o que aconteceu, o que está acontecendo. Esta não é uma crise como outras que atingiram a Europa nos últimos séculos. Estamos diante de uma crise que o Papa Francisco define como “uma mudança de época”. Qual é a diferença em relação a outros momentos? É uma mudança que afeta todos os níveis da vida humana, desde o relacionamento entre pais e filhos àquele entre professores e alunos, da nossa relação com os imigrantes às relações internacionais. A meu ver, estamos no fim de um mundo que nasceu com o Iluminismo. Repercorrendo rapidamente a história, a Europa viveu uma unidade religiosa que era consequência da presença cristã. Essa unidade religiosa foi pelos ares com a reforma protestante. Quando os europeus se cansaram de lutar entre eles por motivos religiosos nas chamadas “Guerras de Religião”, era preciso fundar a sociedade sobre novas bases. Se não compartilhávamos mais a religião, o que tínhamos em comum para podermos viver juntos? A razão, óbvio. Então, o que os iluministas pensaram? Vamos criar uma religião dentro dos limites da razão, como diria Kant. O Papa emérito Bento XVI explica de modo muito sintético esta genial intuição do Iluminismo. Durante o Iluminismo, na época da “contraposição das confissões”, tentou-se salvar os valores essenciais (da vida: a pessoa, a liberdade, a razão) fundamentando-os em “uma evidência que os tornasse independentes das diversas filosofias e confissões”. Desse modo pretendia-se assegurar “as bases da convivência e, de modo mais geral, as bases da humanidade”. Naquela época parecia possível, já que “as grandes convicções de fundo criadas pelo cristianismo em grande parte resistiam e pareciam inegáveis”. O reconhecimento comum desses valores permitiu superar as divisões e contraposições derivadas desses confrontos religiosos.

O que aconteceu desde então, do Iluminismo até hoje?
Esta é a questão. Essas convicções resistiram às mudanças da história? O Papa Bento, que não é um cético, afirma: “A busca de uma certeza que pudesse permanecer sem nenhum tipo de contestação, à margem de todas as diferenças, fracassou”. Se não entendemos que essa tentativa fracassou, não entendemos a natureza da crise e sua profundidade. O que está ruindo diante dos nossos olhos é o que sustentou a nossa convivência nos últimos séculos, em meio a todos os desafios.
Impressionou-me muito o fato de que no dia seguinte à eleição de Trump, o ex-diretor do La Repubblica, um dos mais importantes jornais italianos, Ezio Mauro, tenha escrito: “Acreditávamos que a democracia se imporia como a única religião sobrevivente. No entanto, a rejeição das Primaveras Árabes, depois a agressão do jihadismo islâmico assassino nos fizeram entender que aquilo a que atribuímos um valor universal [a democracia] tem um perímetro e um limite que são exclusivamente ocidentais”. Recentemente, outra figura importante do nosso tempo, Zygmunt Bauman, sustentava a mesma coisa: “Acredito que estamos assistindo ao desentranhamento minucioso dos princípios da ‘democracia’, que se presumiam intocáveis”. O que isso significa? Que a tentativa de salvar os valores da vida humana que todos reconhecemos, independentemente da origem que os gerou, ruiu. Por isso a crise atual não é como as outras: atravessamos duas Guerras Mundiais, a Revolução Industrial, a Revolução Tecnológica, e os fundamentos da concepção iluminista da convivência resistiu em meio a essas mudanças. Hoje estamos assistindo ao seu colapso. O desafio que todos temos é encontrar novas bases para a convivência.

Os árabes e outras culturas deveriam ter passado por essa fase iluminista para compreender a democracia, assim como nós a entendemos, e atribuir a ela seu verdadeiro valor?
Impressiona-me a lealdade com que o Papa emérito Bento XVI reconheceu que, quando o cristianismo se transformou, contra a sua natureza, em religião do Estado, foi mérito do Iluminismo ter reproposto os valores originais do cristianismo e ter restituído à razão sua própria voz. Outras religiões e culturas também são chamadas a realizar essa passagem feita pelo cristianismo e a cultura ocidental, qualquer que seja a modalidade com a qual possa acontecer. As tensões que muitos países árabes estão vivendo mostram a dificuldade dessa passagem.

Em seu livro A beleza desarmada, o senhor relaciona o terrorismo na Europa com o grande vazio que reina em muitos jovens. Como as duas coisas estão ligadas?
Para mim, foi uma descoberta ler alguns grandes intelectuais franceses que explicam isso. De fora, podemos pensar que o que aconteceu seja simplesmente um problema de fundamentalismo religioso estrangeiro. Todavia, muitos dos jovens que cometeram os atentados na França nasceram naquele país – eram franceses de segunda ou terceira geração –, receberam educação francesa como cidadãos da república. No entanto, chegaram a uma situação na qual não puderam perceber na sociedade francesa algo que, para eles, fosse mais interessante do que a violência. Isso deve nos interrogar. O que viveram para desenvolver a violência? E isto não acontece, como alguns analistas insistem em afirmar, apenas com os muçulmanos: alguns violentos são filhos de franceses, ou de italianos, ou de espanhóis que viajam para se unir ao ISIS. Os pais muçulmanos desses jovens tiveram a mesma dificuldade de muitos filhos e pais de cristãos, não foram capazes de transmitir sua religião de maneira atraente. Não é um problema só deles. A secularização é o resultado da incapacidade dos cristãos ocidentais de transmitir a fé cristã de um modo atraente. Aconteceu conosco e com eles, e do mesmo vazio, nosso e deles, pode nascer o fascínio pelo terrorismo. Ou as pessoas encontram algo pelo qual vale a pena viver ou, caso contrário, podem abandonar-se ao extremismo.

Qual é o conceito de “beleza desarmada” (além de ser um título belíssimo para um livro)?
O título do livro nasceu justamente como resposta aos atos terroristas. Quando são percebidos com a profundidade da qual falamos, esses atos são um desafio para toda a sociedade ocidental. Eu me perguntava se quando essas pessoas chegam à Europa, onde teoricamente deveriam se deparar com uma cultura e uma presença cristã, nós, cristãos, temos algo para oferecer a eles. Com a expressão “beleza desarmada”, quis dizer: “Nós, cristãos, ainda acreditamos no fascínio que pode exercer a beleza desarmada da fé?”. Com a “beleza desarmada”, proponho uma presença cristã que seja atraente a ponto de tornar a vida mais interessante para todos.

Comunhão e Libertação tem experiência do poder desta “beleza desarmada”?
Sim. Na realidade, nosso Movimento nasceu como tentativa de responder a esse desinteresse pela fé. Luigi Giussani o percebeu nos alunos de um Colégio em Milão no início dos anos Cinquenta. Muitos deles, que tinham abandonado a fé, sentiram-se desafiados pela atração que exercia seu modo de comunicar o cristianismo, como proposta à razão e à liberdade deles. A partir de então, muitos ficaram fascinados. E vemos, do mesmo modo, a capacidade de fascínio dessa beleza nas circunstâncias atuais. Penso em muitas pessoas que nos encontram na universidade ou nos diversos ambientes de trabalho, quando se deparam com um fenômeno de humanidade diferente originada pela fé. Penso nas obras sociais com as quais buscamos responder aos problemas educativos de jovens que têm dificuldade na escola, oferecendo uma ajuda à tarde, com a colaboração de muitos professores que oferecem seu tempo gratuitamente. Quando se sentem acompanhados, muitos deles – inclusive muitos muçulmanos – têm a possibilidade de encontrar um lugar que muda suas vidas. Mas suas vidas não mudam com apelos éticos. Precisam ver que alguém os ajuda, se preocupa com eles, lhes oferece gratuitamente a possibilidade de aprenderem. E então se integram, estreitam relacionamentos. Isso torna possível o que pareceria impossível, porque esses jovens são da mesma geração dos que praticam a violência. O problema é o que eles encontram quando se estabelecem em nosso país.

O senhor acredita na capacidade da fé de suscitar uma atração naqueles jovens que não encontram um sentido para suas vidas?
Sim, desde que o cristianismo seja apresentado em sua verdadeira natureza original, porque esta é a segunda questão fundamental: o que é o cristianismo? Muitas vezes, o que foi entendido como cristianismo não é senão uma série de regras morais ou de aspectos sentimentais ou formalismos religiosos que não têm a capacidade de fascinar ou atrair a vida de ninguém. Conheço pessoas que não tiveram nenhum tipo de relacionamento com a fé em sua família ou em sua tradição e, quando se viram diante de um cristianismo vivo, através de pessoas, ou famílias, ou realidades sociais nas quais viram como a vida pode mudar, não tiveram nenhum problema em abrir-se à fé, seguindo o desejo nascido neles de não perder a beleza do que estavam vivendo.

Nossa geração percebeu a presença pública da Igreja na Espanha praticamente apenas relacionada com lutas sobre a moral sexual e sobre o direito de educar nas escolas. Por que se reduziu desse modo o que deveria ser um anúncio universal? O que é preciso para que a Igreja tenha uma presença diferente?
Essa é uma pergunta que, muitos anos atrás, um poeta inglês, Thomas Sterns Eliot, fez: “Foi a Igreja que abandonou a humanidade, ou foi a humanidade que abandonou a Igreja?”. Para que a Igreja tenha uma presença diferente, é preciso apenas uma coisa: que nós, cristãos, saibamos aproveitar essa circunstância – e essa crise é uma oportunidade – para descobrir qual é a verdadeira natureza do cristianismo. O cristianismo é, em primeiro lugar, o acontecimento de Deus que se faz homem e permanece presente na história através da vida mudada daqueles que o seguem.

Como se comunica?
Aqui está o ponto. Aqueles que encontravam Jesus ficavam tão surpresos com o que acontecia quando estavam com ele, que exclamavam: “Nunca vimos uma coisa assim”. Experimentavam um fascínio tal que iam atrás dele. Uma freira me contou que quando estava hospitalizada viu, entre as enfermeiras, uma que era diferente. Começou a investigar e descobriu que vivia uma determinada experiência cristã. O mesmo aconteceu uma semana depois com um médico que chamou sua atenção. Essa descoberta levou-a a pedir que eles a ajudassem na gestão de um hospital que estava construindo na Etiópia. E justificava o seu pedido dizendo que desejava que os etíopes pudessem encontrar pessoas que comunicassem a novidade de vida que nasce da fé através do modo com que eles viviam o trabalho. Se não é assim, se não acontece como no princípio, o cristianismo não interessará a ninguém.

O cristianismo como experiência e não como ideologia...
Evidentemente. Somente um cristianismo como experiência pode se comunicar, hoje. O fundador do nosso Movimento, Dom Luigi Giussani, insistiu muito sobre o fato de que a natureza do cristianismo é um acontecimento. Kant reconhecia que “é possível tranquilamente reconhecer que se o Evangelho não tivesse ensinado as regras morais universais – os valores dos quais falávamos – em sua íntegra pureza, a razão não os teria conhecido em sua plenitude. Porém, uma vez que existem, cada um pode se convencer de sua validade através unicamente da razão”. Como outros iluministas, Kant reconhece a obra educativa e pedagógica realizada pela Igreja para transmitir esses valores. Mas, uma vez reconhecidos, os homens não precisam pertencer à Igreja para mantê-los vivos. Basta a razão para reconhecer a sua validade. O que acontece, hoje, diante dos nossos olhos? Vemos que só a razão não foi suficiente para mantê-los vivos. Quando os valores que foram conhecidos através de um fato histórico são separados de sua origem, transformam-se apenas em ideologia. Este é o fracasso diante do qual nos encontramos. Como quando desligamos o aquecedor: o calor pode se manter por algum tempo, mas quando é desconectado da fonte de energia, ele não dura e, antes ou depois, o frio invade toda a casa.

Parto das suas palavras: “A fé cristã não só não teme o uso pleno da razão, mas o exige”. Essa razão que o senhor evoca continua sendo submetida a uma moral estabelecida dois mil anos atrás?
A fé não está sujeita a nada além do reconhecimento da atração que outra pessoa exerce sobre mim. Como alguém que se apaixona. Quando alguém se apaixona, começa a dar espaço à existência do outro, porque o percebe como decisivo. Quando alguém se apaixona, começa a mudar a sua concepção individualista. Começa a ter o outro presente no modo de conceber seu tempo, seu dinheiro, o uso das coisas que possui. Ou seja, a ética é a consequência de um acontecimento que se dá na vida. Ninguém diz: “Apaixonei-me e, desgraçadamente, agora tenho que sair com a garota por quem me apaixonei”. Sair com a garota por quem me apaixonei é a consequência ética normal de um acontecimento. Se não tenho vontade de sair com ela... talvez não tenha me apaixonado! Nenhuma imposição poderá ter a força de convicção que tem o fato de se apaixonar. O mesmo acontece com o cristianismo. O cristianismo é um acontecimento desse calibre. Aqueles que encontraram Jesus surpreenderam-se vivendo a vida cotidiana de outro modo. É um modo novo de viver as coisas habituais.

E a ciência ou a arte não têm tanta ou mais atração que a fé para dar sentido à vida? São compatíveis?
A ciência e a arte expressam, cada uma a seu modo, a tentativa do homem de entrar na profundidade da realidade. Justamente por isso, o vértice da investigação científica e da arte é o senso do mistério, o acesso a algo em última instância não dominável. Sempre me impressionou o fato de um cientista do nível de Einstein ter dito que “a experiência mais bela que podemos fazer é a experiência do mistério. É a emoção fundamental que se encontra no coração da verdadeira arte e da verdadeira ciência. Quem não o conhece e não se pergunta por ele, não se maravilha, está como morto, seus olhos estão obscurecidos”. Por isso, a arte e a ciência têm um valor imenso. O problema é quando a vida urge com todas as suas exigências fundamentais de sentido. É aqui que cada um deve ver se a ciência e a arte têm a capacidade de responder a essas urgências, de iluminar uma circunstância dolorosa, de dar energia para poder vivê-la e não acabar no desespero. O cristianismo é o anúncio de que a profundidade da realidade tornou-se um acontecimento na vida do homem.

Penso nos grandes desafios da ciência atual, como a genética, a inteligência artificial ou a compreensão dos mecanismos do cérebro, e vejo apenas objeções por parte das religiões ao seu desenvolvimento...
Não acredito que a religião em si se oponha, a questão é que aqui se colocam problemas que têm a ver com o que é o homem, com a sua dignidade, etc. Trata-se de problemas éticos que estão diante de todos. Por exemplo, quando se lança a hipótese da possibilidade de construir um robô que possa ter certa autonomia, levamos a mão à cabeça, porque podem desencadear-se efeitos sobre os quais não temos nenhum controle. Torna-se, portanto, um problema que tem a ver com a vida e com o tipo de sociedade que queremos criar.

A Igreja e a arte contemporânea são duas belezas que parecem totalmente distantes e que apenas interagem de maneira conflitante. Como a Igreja e a arte contemporânea podem voltar a se encontrar?
Acho que a Igreja não tem nenhum receio da beleza. A obra de arte faz vibrar toda a experiência humana. Um canto, uma poesia, um quadro suscitam em nós saudades e alegrias que não conheceríamos de outro modo. Por isso, a fé e a arte não só não são incompatíveis, mas o gosto pela beleza é próprio do homem de fé, do homem consciente de si. Como dizia São Tomás de Aquino: “A beleza é o esplendor da verdade”. A arte é a busca, não garantida a priori, da beleza e tem necessidade de homens que estejam dispostos a deixar-se interpelar pela verdade. É a tensão à verdade o que qualifica a tentativa, independentemente do resultado, que pode ser discutível.

Não só não estão em contraposição, mas historicamente houve momentos em que a Igreja inspirou obras de arte incríveis, inclusive de artistas que não tinham fé; e, todavia, agora não é assim. Então, por que não há esse diálogo? De que modo a Igreja pode mudar?
O fato de que historicamente não tenha sido assim – basta reconhecer o enorme patrimônio cultural da Igreja – mostra que não há oposição de princípio entre a fé cristã e a arte. Pensemos em Gaudí e sua Sagrada Família. Pode ser que, às vezes, seja difícil o reconhecimento de uma ou outra expressão artística. Eu não posso falar genericamente de toda a Igreja. Nós pertencemos a um Movimento onde Giussani sempre nos convidou a ler poetas, a escutar música, a nos entusiasmarmos diante das obras de grandes artistas como Giotto ou Caravaggio. Por exemplo, nos propôs ler Leopardi, que era quase um escândalo para uma certa mentalidade clerical. Começou a decorar seus poemas quando tinha treze anos e durante um ano não fez outra coisa a não ser ler Leopardi. Para ele, eram a forma de relação e familiaridade com o Mistério.

Que liberdade, que segurança deve ter alguém no que carrega para poder entrar em diálogo também com quem se supõe estar totalmente distante dele?
A liberdade no diálogo deriva da estima da experiência humana que cada um vive. Essa estima permite entrar em relacionamento com a riqueza da experiência do outro para se enriquecer com a sua perspectiva. Por que nós dois estamos conversando? Porque temos interesse em nos conhecermos, em intercambiar as perspectivas com que enfrentamos os desafios da vida, independentemente de quais sejam as respostas que ofereceremos aos leitores. Interessamo-nos um pelo outro. O outro é um bem. Podemos dizer, como Terênzio: “Nada do que é humano nos é estranho”. E quando alguém tem essa certeza, não tem nenhum problema em dialogar.

Zygmunt Bauman dizia que na atualidade não servem pra nada as barreiras e os muros. O senhor partilha da sua opinião?
Acho muito interessante a observação de Bauman sobre os desafios da imigração. Podemos construir todos os muros que quisermos e tentar mandar todos para casa, mas, quando tivermos mandado embora todos os que não nos agradam, começaremos a nos dar conta de que ainda não teremos começado a lançar as bases para enfrentar os problemas que temos. Porque os problemas não são criados pelos outros, os outros nos tornam conscientes dos problemas que temos. O vazio que um imigrante encontra quando chega, não é criado por ele. O outro nos faz perceber que a sociedade não tem nada de atraente para oferecer como alternativa à violência terrorista. Mas isso não acontece apenas hoje com o que chamamos de terrorismo islâmico. Na Itália, assim como na Espanha, vivemos anos de terrorismo que gerou muita violência, e não tinha nada a ver com o terrorismo islâmico. Esse vínculo que fazemos (entre terrorismo e religião), às vezes, é muito superficial.

Um dos efeitos do terrorismo é que o outro se torna uma ameaça, com o advento da “pós-verdade” e a necessária cumplicidade dos meios de comunicação. Como podemos sair deste engano?
Esse engano somente pode se romper se um dos interlocutores não responder à ameaça do outro com a mesma moeda. Penso que o outro é um bem porque independentemente de eu estar ou não de acordo com suas ideias, ou de como o outro me percebe, para mim é sempre um fator de amadurecimento. Muitas vezes voltei para casa magoado porque algumas coisas que alguém me disse tinham me machucado e, no dia seguinte, acordava com aquela ferida, e não conseguia ler o jornal, falar com um amigo ou ler algo de interessante sem a dor que essa ferida provocava. Isto não quer dizer que o outro tinha razão. Às vezes podia não ter, mas não era essa a questão. A sua provocação me ajudou a ficar desperto, atento, a manter abertas as perguntas com as quais interceptar respostas que, de outro modo, teriam passado absolutamente despercebidas. Nesse sentido, todas as ocasiões como esta foram um bem para mim, não porque tudo seja cor de rosa, suave, mas porque o relacionamento com o outro é sempre um relacionamento dramático, inclusive com as pessoas que amo. Por quê? Porque me desafiam, porque não são um prolongamento de mim mesmo: são uma alteridade, e a alteridade sempre nos provoca. Uma crise, diz Hannah Arendt, sempre nos faz voltar às perguntas e, portanto, pode ser uma ocasião de crescimento.

O senhor está mais para Hobbes ou Rousseau?
É difícil decidir, porque me parece que ambos defendem aspectos reais, mas incompletos, da experiência humana. O homem histórico – que cada um de nós é – carrega uma ferida. Imaginemos uma criança nos braços de sua mãe, com uma abertura, uma curiosidade, um desejo de aderir aos seus pais. O problema é que, depois, a criança vive em um contexto social que não facilita, em muitas ocasiões, a permanência dessa curiosidade. Por causa das feridas do nosso mal, dos nossos problemas e das nossas incompreensões, do mal que os outros nos fazem, nascem as suspeitas. Lembro-me quando, alguns anos atrás, fui acampar com um grupo de jovens em um lugar criado pelo Município de Madri para acolher crianças com problemas na família. O último chegado tinha batido em sua mãe. Lembro-me da dificuldade que os educadores tinham para entrar em relacionamento com eles, porque tinha se alterado a relação de confiança que as crianças têm quando nascem. Tinham sofrido tanto que não eram mais capazes de responder aos generosos esforços dos educadores, e a única coisa que faziam era se defender. Essa posição não era original, era a consequência de uma perturbação no relacionamento normal daquelas crianças com a realidade. Quando alguém é ferido, coloca-se na defensiva. A questão é encontrar um lugar que cure as nossas feridas.

Nós, europeus, somos herdeiros do cristianismo e dos seus valores; a “bondade” cristã, ironizada pela esquerda intelectual, pode ser o calcanhar de Aquiles da nossa sociedade ocidental diante dos problemas geopolíticos que temos?
Depende do que se quer dizer exatamente com “bondade” cristã. Quando apresentei o livro A beleza desarmada no Brasil, estava comigo um juiz que me contou que, alguns anos atrás, fez o julgamento de um homem que cometeu um delito, condenou-o e, quando lhe comunicou a sentença, ele lhe disse: “Olhe, senhor juiz, não estou preparado para ir para a prisão”. Ele respondeu: “Eu entendo, ninguém está preparado para ir para a prisão. Mas você cometeu um crime e, se não apresentar um recurso, irá para a prisão”. O outro respondeu: “Não nego o crime, e não discuto a pena, mas tenho uma situação muito complicada na minha família e, se não acertar algumas coisas antes de ir para a prisão, será ainda pior. Se o senhor me conceder dez dias, poderei organizar as coisas na minha família e depois cumprirei a pena”. O juiz ficou pasmo, e lhe disse: “Percebendo a sua sinceridade, concedo-lhe trinta dias”. Ao fim dos trinta dias, o condenado apresentou-se diante do juiz. E este ficou tão impressionado que, ao invés de encaminhá-lo à polícia para que o algemasse e o levasse à prisão, deu-lhe o endereço da penitenciária para que ele fosse sozinho e se apresentasse para cumprir a pena. Podemos pensar que esse modo de agir é ingênuo, porém, de fato, no Brasil existe um sistema prisional onde não há polícia. Não podemos pensar que isso seja ingênuo: essas penitenciárias abaixaram a porcentagem de reincidência de 80%, taxa das prisões normais, para 15%, e tudo pelo fato de desafiar o coração do homem, como fez esse juiz. Ninguém acredita nisso, mas os dados estão aí. Esse sistema é tão apreciado que, nos acordos de paz recentemente firmados entre o Governo da Colômbia e a guerrilha, onde é necessária a reinserção social de milhares de terroristas (porque senão não haverá paz na Colômbia nos próximos séculos), o sistema prisional adotado foi este. Não significa que esse tipo de Centro seja sempre válido. Quando você dá confiança, o outro pode decepcionar, mas, se não começarmos a agir assim, não poderemos gerar uma nova realidade, uma nova sociedade, uma forma diferente de nos relacionarmos; ficaremos sempre bloqueados no nosso sistema e, assim, será impossível mudar algo. Por isso, entendo que para muitos o cristianismo pareça ingênuo. É preciso saber se existe a possibilidade de começar a olhar as pessoas de outro modo para que elas comecem a pensar que é possível viver de maneira diferente, é possível um modo de estar na realidade totalmente diferente. “Do amor ninguém foge”, respondeu um detento que tinha fugido de todas as prisões anteriores a um juiz que lhe perguntava por que não tinha fugido daquela em que se encontrava atualmente. Porque, na prisão, tinha experimentado um olhar diferente sobre si.

Quando entrevistamos Javier Prades, nos disse que o cristianismo é a religião mais perseguida do planeta. A que isso se deve?
Penso que as causas podem ser muito diferentes. Algumas vezes, nós, cristãos, cometemos erros e, portanto, uma certa hostilidade pode ser justificada. Porém, parece-me que associar a perseguição aos erros dos cristãos não explica suficientemente o problema, porque, na maior parte dos casos, o tipo de violência que se desencadeia tem como objetivo pessoas inocentes. Colocar uma bomba em uma igreja cheia de pessoas sem nenhum poder, ou matar um padre francês porque está celebrando uma missa não me parece que possa ser motivado simplesmente pelos erros dos cristãos. A revelação de Deus desarmado feito homem (para salvar os homens), o fato de que Deus se despoje do seu poder divino e torne-se um ser humano que pode ser confundido, desprezado, crucificado, é algo que desafia a razão humana. Como consequência, uma presença assim pode provocar uma reação violenta naqueles que não querem aceitar o desafio que o cristianismo lança na história, como aconteceu com Cristo. Por quê? Porque o cristianismo tem a pretensão de salvar a vida, não porque queira impor isso com a violência, mas porque promete algo que é tão correspondente ao que o coração do homem deseja que a pessoa fica tocada: e, então, ou é grato por ter encontrado uma resposta, ou cria-se uma violência enorme porque o rejeita e deve justificar de algum modo essa rejeição.

Precisamos voltar a um Estado confessional, ou a uma Europa baseada nas leis cristãs?
Acho que a Igreja fez um caminho enorme, desde os tempos de Constantino até o Concílio Vaticano II, que permitiu que ela tomasse cada vez mais consciência de que a única modalidade de comunicar a fé cristã é através da liberdade. Não porque a Igreja tenha dito: “Como não conseguimos convencer os homens sobre a verdade do cristianismo, pelo menos defendamos a liberdade religiosa”, mas porque a Igreja se aprofundou na natureza da verdade. Se me permite, cito uma afirmação do Concílio Vaticano II que é fundamental para entender isso: “A verdade não se impõe a não ser pela força da verdade mesma”. Ou seja, a verdade não precisa de nenhum outro apoio externo a si, a não ser o fascínio da própria verdade, a atração da verdade. Portanto, o grande desafio que a Igreja de hoje tem diante de si não é voltar a um Estado confessional, mas testemunhar a fé de modo tal que possa desafiar a razão e a liberdade do homem. Foi assim que o cristianismo começou. A razão e a liberdade são decisivas para o cristianismo porque Jesus não quis que as pessoas acreditassem nele de modo crédulo, ingênuo ou forçado. A fé cristã exige o uso da razão e da liberdade. Sem elas, não poderá interessar a ninguém. Por isso, somente em um espaço livre de coação, a fé cristã poderá ser interessante para o homem de hoje, porque para o homem moderno (e nisto, o Iluminismo teve um papel fundamental) não existe bem maior do que a liberdade. Ninguém poderia hoje pensar em propor ou impor algo que fosse contra a liberdade.

Quando entrevistamos Juan Manuel de Prada, ele nos disse que “quem tem o poder pode se permitir o luxo de moldar a realidade às suas premissas ideológicas”. Como a Igreja pode vencer a tentação da hegemonia, o uso do poder para afirmar a fé?
A tentação da hegemonia pode ser superada apenas aprofundando-se na natureza própria da fé, não como consequência de uma nova estratégia para convencer o outro. Não existe outra modalidade. “A verdade só se impõe pela força da verdade mesma”. O cristianismo difundiu-se no Império Romano debaixo de perseguições, sem nenhum tipo de hegemonia, e poucos períodos da história da Igreja foram tão missionários, tão capazes de difundir a fé. Portanto, o cristianismo está em vantagem no espaço livre, porque isto faz com que nós, cristãos, não possamos nos apoiar em nenhum tipo de poder, mas única e exclusivamente na beleza daquilo que vivemos.

Diga-nos o que é Comunhão e Libertação e em que se diferencia dos outros Movimentos.
Comunhão e Libertação é um movimento que nasceu em Milão nos anos Cinquenta, quando o cristianismo era dominante e todas as grandes instituições e associações cristãs estavam cheias de fiéis. Luigi Giussani, o fundador, começou a perceber que os alunos do colégio que provinham de famílias cristãs, que tinham feito a primeira comunhão, que tinham participado das atividades das paróquias e tinham recebido a crisma, chegavam à escola, na maior parte dos casos, sem fé. Então, percebeu que isso não podia dever-se simplesmente ao desinteresse pela fé, mas ao fato de que a nenhum desses jovens a fé tinha sido apresentada como algo que se relacionasse com os interesses da vida. Desde o princípio, queria mostrar a pertinência da fé com as exigências da vida, com os problemas concretos da vida. Isto fez com que muitos daqueles estudantes começassem novamente a se comparar com a fé, apesar de já terem decidido que não lhes interessava. Desde então, tudo o que Giussani fez no Movimento em seu conjunto foi oferecer às gerações que em todos estes anos o encontraram, a possibilidade de perceber a conveniência humana da fé para enfrentar os problemas da vida que todos temos. O cristianismo é simples assim: Cristo veio, não para complicar a nossa vida, mas para nos ajudar a enfrentar os problemas e para nos fazer viver dentro de uma companhia sem a qual tudo se torna mais complicado.

Como o senhor, de Navaconcejo, na Extremadura, chegou onde está?
É um mistério, é a última coisa que pensei que pudesse me acontecer. Quando Giussani começou a dizer que a direção do Movimento deveria ser uma amizade ítalo-espanhola, ninguém pensava que uma coisa assim pudesse acontecer, nem mesmo nós. Víamos uma tal desproporção entre a pequena realidade que éramos na Espanha e as dimensões do Movimento na Itália que ninguém pensava em algo assim. Depois que nos conhecemos, ele começou a insistir para que eu o ajudasse e eu, obviamente, sempre ofereci a minha disponibilidade. No fim, conseguiu me levar para Milão.

Seu fascínio e seu interesse por Comunhão e Libertação vieram do conhecimento, pelo fato de ser um especialista em Sagradas Escrituras, ou, em geral, foi uma experiência pessoal?
Foi uma experiência pessoal. Quando fui ordenado padre, me enviaram para uma pequena cidade perto de Madri. Ali, vi crescer os grandes bairros residenciais populares no entorno da cidade, com tudo o que significava o problema da imigração interna, das mudanças, das dificuldades, etc. Via que algumas das coisas que tinha recebido, e às quais tinha aderido cordialmente durante o período do seminário, não eram suficientes para enfrentar certos desafios que encontrava. Foi isso que fez com que me interessasse pelo Movimento: tinha uma proposta para viver o cristianismo na qual não era necessário censurar nada do que acontecia. Era um modo de estar na realidade que eu queria compartilhar. O primeiro sinal de mudança foi o meu modo de dar aula, a maneira de estar com meus alunos nas aulas de religião que dava em um colégio. O que me aconteceu quando encontrei o Movimento permitiu-me começar a desafiá-los. Percebia que o que tinha começado a acontecer comigo podia ser interessante para os outros.

Em que sentido em CL a fé cristã é vivida em uma dimensão atual?
A fé, como diz Giussani, é o reconhecimento da presença de Cristo aqui e agora, da sua presença dentro de um sinal humano. E o caminho que ele propõe é fundamentalmente o que ele chamava de personalização da fé. A única possibilidade de que a fé seja percebida como conveniente é que cada um possa verificá-la na vida, ou seja, que a vida, as dificuldades, as circunstâncias que não são poupadas a ninguém, possam começar a ser vividas com uma dignidade, uma gratidão e uma luz que antes não tinham. Por isso, o que procuramos fazer é justamente acompanharmo-nos nesse processo de amadurecimento da fé, para que as pessoas que nos encontram nos ambientes onde estamos, no trabalho, na família, entre os amigos ou nas obras sociais que fazemos, possam perceber o que significa hoje a fé cristã vivida “ao ar livre”.

O indivíduo e a sua realização marcaram o progresso do homem na sociedade ocidental. De que forma uma fidelidade e comunhão com a Igreja Católica e seus pastores é compatível com o progresso?
Alguns dias atrás, estive em um encontro com um numeroso grupo de estudantes universitários italianos e uma pessoa me fez uma pergunta semelhante: “Afirmar Cristo como a coisa mais importante não desvaloriza ou torna menos interessante a realidade?”. Foi suficiente eu responder com outra pergunta: “Você já se apaixonou alguma vez?”. “Sim”, respondeu-me, e eu lhe disse: “E quando se apaixonou, a realidade adquiriu ou perdeu interesse?”. Imediatamente me respondeu: “As coisas ficaram mais atraentes!”. O cristianismo introduz na vida uma presença com uma atração tal que faz com que tudo se torne mais interessante, também o progresso. Quando a pessoa se apaixona, percebe isso. Qualquer fato, qualquer circunstância, mesmo banal, por exemplo, cozinhar para a pessoa a quem se ama, torna-se um acontecimento. Giussani sempre nos repetia uma frase de Romano Guardini: “Na experiência de um grande amor, tudo se torna acontecimento”. Por isso, na história de um grande amor, como é o cristianismo, tudo adquire uma relevância que de outro modo não teria. Vemos isso na experiência do amor humano. Quando o amor se obscurece na vida das pessoas, o que antes era ocasião para dizer “como amo você!” através do gesto de cozinhar, torna-se uma obrigação, ou um peso do qual lamentar-se: “Enquanto você vai trabalhar, eu tenho que ficar aqui cozinhando para você...”. Perde-se toda a densidade que, antes, esse gesto possuía.

Como CL entendeu o desejo dentro da tradição?
Acabei de pregar para 4.000 universitários os Exercícios que tinham por título “A ti se dirige todo o meu desejo”. A quem podemos dizer isto? A quem se dirige todo o meu desejo? Porque, para a maioria das pessoas, o desejo é algo que precisa ser domesticado ou controlado. E não só hoje: antes do cristianismo, no mundo clássico, a hybris, o exagero, era algo perigoso porque desejar além dos limites podia levar à loucura. Portanto, a questão decisiva era domesticar o desejo para reduzi-lo e mantê-lo dentro de certos limites. A moderação era a virtude. Ao contrário, o único que não tem medo de enfrentar o desejo do homem em toda a sua potência é o cristão. Graças ao encontro com Cristo, o cristão não tem medo da imensidão do desejo humano, diferente do que acontecia na Antiguidade. Por quê? Porque Cristo abraça todo o nosso desejo. Somente neste abraço, o nosso desejo se revela em toda a sua potência e profundidade. Uma das frases do Evangelho que Giussani citava constantemente era: “De que serve ao homem ganhar o mundo inteiro se depois perde a si mesmo?”. Muitas vezes interpretamos essas palavras de modo moralista, como se indicassem a máxima exigência de Jesus quando, na realidade, é o gesto mais comovente de Cristo que olha toda a profundidade do coração do homem, abraçando-a: “Olhe que o seu coração é tão grande que somente o Mistério feito carne está à sua altura”.

Quando ouço o senhor falar sobre a paixão, sobre o amor, surge a dúvida se o senhor já se apaixonou alguma vez.
Mesmo tendo entrado no seminário quando ainda era criança, me apaixonei. Mas pela consciência que tinha do desejo e pela experiência que tinha de Cristo, onde encontrava uma plenitude afetiva que nenhuma outra coisa me dava, pude direcionar e olhar o meu desejo de frente, sem censurá-lo nem sublimá-lo, mas desafiando-o. Se não tivesse vivido esta experiência pessoal, não poderia falar aos jovens universitários deste modo, centrando todo um final de semana sobre o desejo, incitando-os a não reduzirem o desejo, a não se contentarem com as migalhas que lhes oferecem. Porque o problema é este: como a sociedade responde ao desejo de um adolescente? Na maioria das vezes, dando-lhes coisas que não poderão interessá-los por muito tempo. Quando somos pequenos, é normal pensarmos que os presentes de Natal sejam tudo o que desejamos. Porém, com o tempo, damo-nos conta de que a casa está cheia de bonecas e brinquedos que não nos interessam mais. Então, substituímos os brinquedos pelo telefone ou por novos aparelhos e, mais tarde, pelas pessoas..., mas o problema é se existe algo adequado à natureza do desejo. Este é o desafio que a sociedade tem diante de si. Já o tinha antes de Cristo, continuou tendo depois de Cristo e o terá no futuro.

CL define-se como um movimento cristão, ao invés de católico. Isso não acontece só com CL, porque todo mundo, quando quer falar da parte sã da religião, fala dos cristãos, nunca dos católicos. Por que este uso do termo “cristão” ao invés de “católico”?
Não é por nenhum desejo de nos separarmos do catolicismo, porque se há uma coisa que o Movimento demonstrou durante todos esses anos de existência foi um vínculo total com o Papa e com a Igreja Católica. Não há dúvidas sobre isso. Quando falamos e insistimos sobre o cristianismo, não é para nos separarmos do catolicismo, mas para voltar à natureza original do cristianismo, que é “católico” por definição, quer dizer, universal, para todos.

A libertação de Comunhão e Libertação é a mesma da qual fala a Teologia da Libertação?
A questão é qual é a libertação que responde a toda a esperança do homem. Evidentemente, o pedido por libertação é mais amplo e profundo do que a libertação material ou econômica, diz respeito à totalidade da vida do homem. Esse fato se revela na experiência. Por isso, para compreendê-lo é preciso partir da experiência, de quando você se sente livre. Você se sente livre quando um desejo que tem se realiza. Se você tem um filho que quer ir a uma festa e você diz não, ele sente a sua liberdade mortificada. Se, ao contrário, lhe diz sim, fica muito contente porque o seu desejo pode se realizar. O problema da liberdade é que o homem não deseja apenas ir a uma festa, mas deseja ser livre, quer ver realizado o desejo imenso que carrega em todos os momentos da sua vida, na vida cotidiana, assediada pela rotina. O que torna possível a libertação, para não acabar, como diz Eliot, perdendo a vida vivendo? Alguns pensam que é a libertação da pobreza. Esta é, evidentemente, uma parte da resposta. Porém não é suficiente. Quantas pessoas conhecemos que têm satisfeitas suas necessidades fundamentais e não estão contentes? O problema é se você encontra algo na vida que satisfaça o seu desejo a ponto de lhe tornar livre de todo o resto. A libertação é a comunhão com Cristo, que torna-se experimentável no relacionamento com Cristo presente na companhia cristã que, autenticamente vivida, coloca-se no mundo como fator de humanização real.

É possível alcançar a liberdade com a ausência de vínculos?
Não. Mesmo que em determinados momentos tenhamos pensado isso, com o tempo descobrimos que não basta não ter vínculos para ser livres. Hoje nós nos livramos de todos os vínculos, mas nem por isso as pessoas estão mais satisfeitas. As pessoas começam a entender que para ser livres não basta não ter laços. É preciso algo pelo qual valha a pena usar a liberdade. Trata-se de encontrar um motivo pelo qual vale a pena mover-se, envolver-se com alguém ou alguma coisa. Se esse motivo não é encontrado, as pessoas começam a ter medo da liberdade. É interessante que alguém como Kafka já o dissesse: “Temos medo da liberdade e da responsabilidade e, portanto, preferimos sufocar detrás das grades que construímos”. Bauman também dizia que esse medo da liberdade é o que define hoje a nossa sociedade, como se vê em relação aos imigrantes. Por quê? Porque as relações interpessoais foram perdidas, e isso deixou o homem ainda mais desarmado. E isso gera medo. Então, o que torna possível voltar a reconstruir a confiança nos relacionamentos para que possamos começar novamente a viver uma vida mais humana? Este é o desafio que temos hoje.

Na Evangelii Gaudium, o Papa Francisco diz que estamos imersos em uma economia que mata e exclui. Precisamos de modelos de economia social e solidária?
Certamente. Precisamos de uma economia mais humana, que responda melhor ao bem comum. Por que o bem comum, a ecologia e a solidariedade são importantes? Porque todas essas coisas contribuem para gerar o tipo de humanidade e de sociedade que desejamos. Durante anos, fomos indiferentes aos países do Terceiro Mundo. Agora que estão nos trazendo problemas e começamos a ver o que podem colocar em risco, entendemos que teria sido pelo menos mais adequado, e teria custado muito menos vidas, se tivéssemos compartilhado a vida com eles e criado riqueza nestes países ao invés de despojá-los de todos os seus recursos. Se tivéssemos colaborado com o seu desenvolvimento e gerado uma sociedade sustentável, agora não estaríamos querendo construir muros.

O Papa Francisco encontrou resistências internas às suas propostas, que são um pouco avançadas, e eu, lendo o livro [A beleza desarmada] pensei que o senhor talvez também tenha encontrado resistência no seu Movimento. Foi assim?
Evidentemente sim, em alguns casos. O Papa representou e representa uma revolução. Em uma realidade que tem dimensões como a nossa, nem todos reagiram com a mesma rapidez, assim como vemos na vida da Igreja. Nós não somos diferentes. A meu ver, tudo depende um pouco do que dizíamos no início: se entendemos qual é a natureza do desafio. Só é possível entender o Papa Francisco, se compreendemos qual é a natureza do desafio diante do qual estamos. Se não entendemos esse desafio, pensamos que é apenas uma questão de impostação, pelo fato de o Papa vir da América Latina e, assim, ficamos na superfície.

Como é o relacionamento entre o Papa Francisco e CL?
Muito bom. Tivemos a oportunidade de encontrá-lo há alguns anos. Acabou de nos enviar uma carta.

O que essa carta significa?
É um gesto de ternura do Papa que torna evidente como nos acompanha de perto. O Papa me disse, diante de todos, que para ele, ler Giussani quando era arcebispo de Buenos Aires foi importante. Está amplamente em sintonia com o nosso modo de viver o cristianismo como encontro, como acontecimento. Mais que isso, a sintonia está precisamente na origem de sua própria forma de perceber a realidade. Por outro lado, o Papa nos acompanha no caminho que devemos fazer, convidando-nos constantemente a voltarmos à origem, para que o Movimento possa dar a contribuição para a qual o Espírito Santo suscita este carisma na Igreja.

(texto e fotos cedidos gentilmente por Jot Down Magazine, www.jotdown.es)