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Passos N.190, Abril 2017

REPORTAGEM | SÍRIA E LÍBANO

A guerra não vence

por Andrea Avveduto e Maria Acqua Simi

Uma viagem entre Líbano e Síria, até a cidade símbolo do conflito. Ali, a vida não se detém nas ruínas de Aleppo, onde as crianças recolhem a neve para beber e os cristãos lutam dia a dia para reconstruir "a comunidade" de todos

A história desta viagem através do Líbano e da Síria é a história de uma amizade, que interliga quem escreve à história de muitas pessoas encontradas em dez dias extraordinários, que começaram em Beirute, onde se encontra o último aeroporto viável para quem queira se aproximar da fronteira síria. A situação do Líbano melhorou, graças também à eleição, depois de anos de impasse, de um presidente e, portanto, de um governo. Mas a emergência de refugiados – com a onda incessante de civis sírios e iraquianos em fuga – está longe de ter se estabilizado, pois se trata de um país de quatro milhões de habitantes, que acolhe dois milhões de refugiados.
Conhece bem essa situação o padre Toufik, frade franciscano libanês, que todo domingo percorre centenas de quilômetros para ir ao encontro das pequenas comunidades cristãs de Tiro, Trípoli e Deir Mimas. Justamente neste último povoado, na fronteira com o inominável Israel, encontram-se muitas famílias cristãs iraquianas que escaparam do Estado Islâmico e hoje recuperam-se aí. Nós as encontramos depois da missa (a terceira daquela manhã do incansável sacerdote).
“Eu era professor primário em Qaraqosh, sinto muita falta do meu trabalho”, conta-nos resignado Zuhir, homem perto dos 50 anos de idade. “Gostaria de voltar para minha casa. Mas agora, ainda que a região estivesse livre, quem chegou depois do Isis se apropriou das nossas casas. Não temos mais lugar no Iraque”.
Os jovens estão ainda mais zangados. Samaan tem 24 anos, é formada em Engenharia: “Não consegui terminar os estudos por causa da guerra. Agora estou aqui, sem amigos, sem família. Por que passo por tudo isso?”. Cada um tem a sua história de dificuldades e dor: há quem teve a família dividida, quem perdeu o emprego, a casa. Não a fé, porém. “Vocês conseguem perdoar quem lhes causou tantas feridas?”, perguntamos a queima-roupa. “Não”, diz Hanna, de 17 anos, com energia. “Eu não perdoo quem me arrancou daquela minha vida de antes, das minhas amigas, da minha escola”. A mãe a acaricia, e com voz suave acrescenta: “Eu às vezes perdoo, às vezes não. Para mim é difícil, mas me lembro de que no Evangelho Jesus diz para perdoar. E se Ele fez isso... nós precisamos ao menos tentar”.
A primeira lição desta viagem: o perdão é um caminho. Aquela mãe e aquela filha passaram pelas mesmas privações, pela mesma dor. Mas a mãe consegue dar um passo a mais, para além da raiva. O perdão é um caminho e isso vale no Líbano, na Síria, e em qualquer lugar. Percebemos isso também em Damasco, ao encontrar as freiras e os frades que no convento de São Paulo – no lugar onde o Apóstolo se converteu – acolhem centenas de famílias e crianças que fugiram das áreas sírias mais atingidas pela guerra: Aleppo, Homs, Hama, Idlib, Qamishli, Hassakè. “Criamos um abrigo para as crianças mais vulneráveis”, conta a sorridente Irmã Iole. Ali, tempos atrás, se alojavam turmas de turistas e de peregrinos. Agora tudo é para os refugiados. “Acolhemos todos: cristãos, muçulmanos... Não há diferença, porque a divisão, o confronto de civilizações de que tanto se fala no Ocidente, antes da guerra aqui não existia. Nenhum sírio perguntava ao outro que religião ele professava. Nós procuramos reconstruir tudo isso, pouco a pouco: acolhendo doentes e também dando assistência psicológica às crianças traumatizadas. Ajudamos as famílias a ter uma vida digna. Na Síria, o tecido social é que precisa ser reconstruído”.
Pensam do mesmo modo o padre Ibrahim, o padre Firas, o padre Bassam e o padre Edoardo, quatro frades que permaneceram em Aleppo, apesar dos bombardeios. Após dez horas de viagem, chegamos à cidade-símbolo do martírio do povo sírio e imediatamente nos encontramos no coração da guerra. Giramos por bairros desabitados: mansões destruídas pelas bombas, casas queimadas, o silêncio. Para entender o horror desse conflito, que parece eterno, é preciso mesmo tocar as paredes destruídas, respirar o odor forte do fogo entre as pedras, escutar à noite o som dos bombardeios nas periferias, sentir nos ossos o frio de quem não tem como se aquecer.

Pelas ruas de Hanano. Paramos em frente à catedral maronita, que era a menina dos olhos da comunidade cristã local: o teto foi arrebentado pelas bombas, o interior entrou em colapso. E o mesmo vale para a igreja armênia, para a greco-ortodoxa, para as casas, os hotéis, os cemitérios, para as redações dos jornais. Foi destruída também a antiga e grande mesquita dos Omayyadi, saqueado o velho suk onde antes estavam as embaixadas e os consulados. Um senhor idoso caminha desolado, pedindo alguns trocados, enquanto um pouco adiante crianças reviram a terra à procura de plástico e sucata de ferro para vender aos soldados. Antes, essa cidade era a mais bonita do Oriente Médio, patrimônio da Unesco.
“Vivemos numa situação difícil, mas jamais nos sentimos abandonados pelo Senhor”, conta padre Firas: “Às vezes precisamos de alguma coisa, e logo Ele nos responde. A certa altura percebemos que milhares de famílias morriam literalmente de fome. Pensamos em distribuir mensalmente pacotes alimentares, mas não sabíamos como organizá-los. A igreja greco-ortodoxa, porém, sabia, porque fazia esse serviço aos pobres já antes da guerra, e assim vieram e nos ensinaram como fazê-lo. Hoje nós os distribuímos para mais de sete mil famílias”. Claro, são muitos os problemas. “A falta d´água já dura três anos, é o desastre principal: todas as famílias que ficaram na cidade têm como única preocupação encontrar água para sobreviver”, acrescenta padre Ibrahim.
É ele quem nos acompanha pelo bairro de Hanano, um dos mais pobres, onde mulheres e crianças recolhem a neve do chão para beber, lavar-se e cozinhar. O poço do convento dos franciscanos – um dos poucos ainda ativos em Aleppo – se tornou “a fonte de esperança viva”, em sentido literal. Quem precisar sabe que ali poderá encher os baldes de água e, se não tiver força para carregá-los, se servirá do caminhãozinho dos frades.
Mas a Igreja daqui sabe muito bem que a ajuda não pode consistir só na distribuição de água, comida e remédios (tarefa que todas as ONGs e as comunidades religiosas que encontramos realizam). “O empenho maior é reconstruir a vida da comunidade, visto que há milhares de famílias divididas”, continua padre Firas: “Por isso apoiamos as escolas já existentes para que não fechem as portas, e aos jovens adultos oferecemos projetos de microcrédito para que possam levar adiante atividades, pequenos negócios, de modo a poderem se casar ou manter a família”. E também reconstroem as casas destruídas pelos bombardeios. “Para nós, restituir às famílias uma casa é decisivo. Assistimos a uma queda impressionante de nascimentos, nestes anos. As famílias, destruídas em sua intimidade, têm dificuldade para viver essa dimensão de abertura para a vida, que deveria ser o traço distintivo de todo casamento”, explica padre Ibrahim.

O negócio de Maryam. Os sacerdotes, acostumados a uma caridade concreta e atuante, nos acompanham até um pequeno forno. Na porta, Khalil, 29 anos. “Experimentem esses biscoitos”, diz confiante; “são os que eu mais aprecio”. Tem razão, porque o cesto logo se esvazia. Seu sonho era abrir uma padaria. Com a ajuda dos frades, conseguiu. O negócio se firmou e em maio ele se casou e decidiu permanecer no país. É isso, a Síria pode recomeçar a partir daqui. Dessa vontade de ser protagonista da própria vida e não tristes e resignados espectadores.
Um desejo que explode sob os nossos olhos quando encontramos a jovem Maryam, que graças às ajudas conseguiu abrir o seu negócio de roupas (“são poucos os fregueses, mas com a Graça de Deus estou segura de que uma hora eles chegarão”, diz sem medo), ou os escoteiros (obrigados a se reunir num sótão, mas sem perder o entusiasmo das amizades), e também os pequenos músicos, que num porão do convento de Azizyeh estudam trompete, ou as meninas que cantam no coral, as crianças que fazem o catecismo ou que brincam no campo de refugiados de Jibrin.
Eles são o futuro, e um belíssimo futuro. Mesmo quando estão no leito de um hospital, como Judy. Nós a encontramos na clínica St. Louis, das freiras franciscanas: um menina minúscula, de onze anos, que há alguns meses está em coma. Sua mãe, Amina, é muçulmana, veste um véu escuro. Fica ali junto da filha, dia e noite. É ela quem nos conta o que aconteceu. Dia 6 de dezembro, um míssil atingiu a sua casa, enquanto Judy estava brincando com as amigas. “Os estilhaços atravessaram a caixa craniana, e agora ela só consegue mover os olhos. Não sabemos como ela vai ficar”. Ficamos calados. Antes de deixar o quarto, padre Ibrahim pede licença para rezar uma oração a Maria, indicando o ícone de Nossa Senhora da Ternura, acima do leito. Quando o sacerdote abençoa a menina, Amina se comove. Os dois se abraçam e dirigem o olhar para a mãe de Jesus. Ela também, há dois mil anos, viveu a mesma angústia. Ela pode entender.