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Passos N.190, Abril 2017

SOCIEDADE | EDUCAÇÃO

Que ensino queremos?

por Marcelo Belga, Viviane Belga e Raquel Assis

Três professores levantam alguns pontos de discussão sobre a Reforma do Ensino Médio. E falam da urgência de ser olhar para a humanidade dos sujeitos envolvidos no processo educativo

Quais mudanças devem ser feitas no atual sistema escolar para adequar-se às necessidades atuais? O que serve para fazer os jovens crescerem de verdade? A Medida Provisória (MP) nº 746, de 2016, que regulamenta mudanças no Ensino Médio, tem causado polêmicas, tensões e também esperanças na sociedade brasileira. A MP propõe alterações na Lei nº 9394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de dezembro de 1996, e, desse modo, estabelece uma ampla reforma no Ensino Médio.
De acordo com o Ministério de Educação e Cultura (MEC), a reforma nesse segmento de ensino foi realizada por meio de Medida Provisória porque “dados recém-divulgados mostram uma realidade trágica no Ensino Médio e retratam a urgência da reforma” (MEC). Os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) de 2015, baseados no fluxo escolar e nos resultados de avaliações de Língua Portuguesa e Matemática aplicadas ao Ensino Médio, estamparam um resultado de 3,7 nas avaliações, quando a meta a ser alcançada era de 4,3. Ao lado desses dados, se olharmos com atenção, sabemos que existem muitos jovens que saem das escolas sem saber ler e escrever adequadamente. Uma apropriação adequada dessas habilidades implica em que os jovens consigam utilizar a leitura e a escrita para interpretar o mundo e ampliar suas possibilidades de protagonismo diante das demandas sociais, incluindo aí a conquista de mercado de trabalho e o desenvolvimento de projetos de vida. Nesse sentido, uma reforma parece mesmo necessária.
De forma geral, as alterações feitas pela MP 746 que impactam o Ensino Médio, são as seguintes: aumento da carga horária do Ensino Médio, determinando uma ampliação que visa a estabelecer o tempo integral nas escolas; a oferta de educação de jovens e adultos e ensino noturno regular nas escolas; obrigatoriedade de apenas estudos e práticas de educação física, sociologia e arte, não formalizadas em disciplinas; oferta de formação técnica e profissional a ser realizada na própria instituição ou em parceria, dependendo da aprovação do Conselho Estadual de Educação; contratação de profissionais com notório saber para a formação técnica e profissional.
Quanto ao currículo, a Medida prevê uma base comum que será cursada por todos os alunos, mas que não poderá exceder 1200 horas da carga total de horas destinada ao Ensino Médio (1400 horas). O restante do tempo será composto pelas áreas do conhecimento: I) Linguagens e suas tecnologias; II) Matemática e suas tecnologias; III) Ciências da Natureza e suas tecnologias; IV) Ciências Humanas e sociais aplicadas; V) Formação Técnica e profissional. A proposta de organizar os currículos por áreas de conhecimento tem o objetivo de possibilitar diferentes arranjos a serem escolhidos pelos alunos segundo seus interesses e projetos. Entretanto, o que será ofertado de fato dependerá da organização de cada estado do Brasil e das condições de cada escola e região. Essas mudanças só acontecerão efetivamente a partir da homologação, prevista – – para 2017, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que estabelecerá quais serão as disciplinas previstas para o Ensino Médio tanto as de base comum como das áreas de conhecimento. Então, parte da efetivação da reforma dependerá do que for estabelecido pela BNCC seguida da aprovação do Conselho Nacional de Educação.

Formação técnica profissional
A formação técnica e profissional é interessante, já que o mundo do trabalho é um anseio do jovem. Em geral, ele sofre com a falta de perspectiva, principalmente considerando a má formação escolar que pode ser evidenciada nas avaliações externas das escolas públicas, principalmente naquelas regiões em que o IDH é baixo. Mesmo no ensino fundamental, nos anos finais, já se percebe esse anseio, quando aqueles que apresentam uma formação melhor, seja pelo contexto familiar que reconhece a escola como algo essencial na vida do aprendiz ou por um caminho bem sucedido realizado em uma instituição mais organizada e de gestão compartilhada, ou ainda por simples incentivo de um de seus professores, se inscrevem em concursos de colégios técnicos federais. Desse modo, a proposta da reforma pode ser significativa, se bem executada, pois traz a possibilidade de a escola abrir-se para parcerias com instituições da sociedade civil que podem contribuir para a formação profissional desse jovem. Esse poderia ser um aspecto promissor, uma vez que o estabelecimento de laços com a comunidade de forma mais ampla e com outros setores da sociedade potencializa a instituição escolar. Vale ressaltar, contudo, que construir uma formação técnica e profissional não significa contratar um professor de alguma área para que ministre uma ou duas aulas semanais de algum assunto relacionado à profissão ou ao contexto profissional escolhido, como já fizeram em Belo Horizonte/MG nas escolas estaduais e não se firmou como uma proposta eficiente.
Como podemos observar, o que temos até agora é um movimento de leis e regulamentações que, segundo o MEC, buscam “adequar o modelo de ensino às reais necessidades dos alunos, dando a eles o protagonismo em sua vida escolar”. Como as alterações só serão efetivamente implantadas a partir de 2018 e dependerão das atribuições dos estados e das possibilidades de cada escola, ainda não temos experiências concretas para julgar. Podemos, no entanto, levantar alguns pontos de discussão que nos ajudem a refletir sobre o Ensino Médio que desejamos.

Trabalho docente
O Movimento de Reforma do Ensino Médio tem sido apresentado como resposta para o enfrentamento de diversos problemas existentes na educação brasileira, entre eles, a péssima performance dos alunos em avaliações de língua portuguesa e matemática e o alto índice de abandono da escola e de fracasso escolar. Mas um dos problemas fundamentais que assola a educação brasileira não foi tocado: a condição do trabalho docente em nosso país. Devemos nos perguntar se a organização curricular fará tanta diferença em um sistema educacional que remunera muito mal o professorado, que oferece difíceis condições de trabalho e que não consegue reconhecer o lugar fundamental dos educadores na formação humana e intelectual das novas gerações. Esses fatores que incluem ainda lidar com indisciplina, violência de alunos e seus familiares e intensa jornada, têm sido decisivos para que os jovens não queiram mais ser professores.
O período dedicado à docência estende-se porque os professores têm que trabalhar pelo menos em dois turnos (45 horas/semanais) para que consigam ter uma renda mensal mínima capaz de sustentar a família. Lembremos, entretanto, que um professor não pode simplesmente dar suas aulas e ir embora. Ser professor implica em construir projetos específicos para sua disciplina, que considere os diferentes níveis de aprendizagem existentes em uma sala de aula. Implica também em planejar aulas, corrigir avaliações e envolve estabelecer atividades para aqueles alunos que apresentam dificuldades na escola. Receber e dialogar com familiares, com a comunidade que circunda a instituição e com os técnicos das Secretarias de Educação, são outras de suas atribuições.
O professor deveria, em um currículo bem planejado, “perder tempo” conversando com os alunos. Ter um professor capaz de dialogar é importante, pois a adolescência e a juventude são etapas da vida em que os alunos estão particularmente propensos a procurar modelos de adultos diferentes dos oferecidos pela família. E, assim, na falta de uma educação fascinante, com professores a serem seguidos pelos nossos jovens, o crime organizado mostra-se muito competente em oferecer atividades lucrativas que, aparentemente, oferecem o status almejado.
A precariedade do trabalho docente também leva um grande número de professores a adoecerem durante o ano letivo, causando uma série de substituições, que promovem descontinuidades dos conteúdos ensinados, interrupção dos laços construídos entre professores e alunos e períodos em que os estudantes ficam sem nada para fazer em alguns horários. Acrescente-se a isso a ocorrência de inúmeras greves que, a despeito das boas intenções, interrompem a vida escolar dos discentes. Se tratarmos dos problemas relacionados à forma de contratação de professores, a Reforma proposta pela MP torna lei uma prática vivenciada há muito tempo pelas instituições escolares: o fato de contratar professores que não possuem formação específica para ministrar determinada disciplina. Esse aspecto diz respeito à questão do notório saber, um dos itens da Reforma. Mesmo que façamos uma análise crítica da construção dos saberes docentes nos cursos de licenciatura, este profissional reconhece os procedimentos específicos de sua atuação que irão agregar valor à formação integral do estudante. Os conselhos de diversas profissões não autorizam a contratação de profissionais que não sejam formados nas respectivas graduações, então, por que a contratação de professores na rede pública é muitas vezes realizada sem a exigência de uma formação específica? Um professor de matemática, em uma licenciatura, é introduzido não somente ao ensino do conteúdo específico, mas sugestionado a pensar nas interferências socioambientais e familiares do processo educativo. Um engenheiro que está desempregado, por mais boa vontade que possa ter, dificilmente entenderá como conduzir um ensino efetivo, considerando a abordagem integral da educação.
Um fator, ainda, a ser considerado em projetos reformistas é que, atualmente, a escola pública se constitui, no Brasil, em uma das poucas instituições de guarda de crianças e adolescentes que realmente está aberta para todos. O que se percebe é que instituições e atores sociais da saúde, assistência social e proteção a crianças e adolescentes, simplesmente não funcionam ou atendem precariamente às inúmeras e complexas demandas, deixando para a escola muitas funções que não são as dela. É urgente, portanto, questionar, em uma proposta de reforma, que outras instituições são necessárias para que a educação escolar funcione.
Sem desconsiderar a importância das organizações curriculares, é indispensável refletirmos se qualquer reforma, por melhor que seja, será capaz de garantir a qualidade da educação sem a presença de um sujeito que assuma, em primeira pessoa, como vocação e resposta pessoal, à tarefa de educar. Nesse sentido, ao lado de propostas de mudanças, é fundamental considerar o valor do sujeito que educa. Assim, torna-se importante resgatar o que significa ser professor. Qual é o sentido e a beleza que há nesse trabalho tão exigente? O educador é chamado a introduzir e acompanhar o jovem na descoberta e no conhecimento da realidade, favorecendo a identificação de perguntas e respostas em um horizonte amplo, evitando as reduções simplistas. Ao conviver cotidianamente com os alunos, o professor, naturalmente, é uma pessoa olhada e confrontada por eles, tornando-se muitas vezes uma referência e testemunha de um valor novo ou de uma vida fascinante. Ensinar adolescentes é uma circunstância privilegiada para ajudá-los a reconhecer suas perguntas sobre si mesmo e sobre o mundo, a levar a sério seus anseios de verdade, beleza, justiça e observar a aventura da descoberta de si, da busca pela realização pessoal. Desse modo, uma reforma que levasse mesmo a sério os problemas educacionais deveria adotar estratégias de valorização da profissão docente no Brasil.

Alunos do Ensino Médio
De fato, a mudança do currículo é valorosa, embora, não seja capaz de sustentar sozinha uma reforma da realidade escolar brasileira. Analisando entrevistas com adolescentes e jovens realizadas em disciplinas de Licenciatura da Faculdade de Educação da UFMG, conseguimos observar diferentes posições dos estudantes quanto ao currículo escolar. De modo geral, todos os alunos se perguntam sobre a finalidade dos conteúdos escolares: por que precisamos estudar esse conteúdo que, aparentemente, não me servirá para nada? Se escutarmos os adolescentes e jovens, veremos que eles têm uma grande necessidade de entender as razões de estudar um determinado conteúdo. Vê-se, com isso, que os professores precisam transmitir o sentido do que ensinam e qual a importância desse saber. Muitas vezes, o significado do que é ensinado torna-se esvaziado. Isso porque, quando se trata das escolas com os piores índices de avaliação educacional, os alunos sabem muito bem que a instituição não tem condições de prepará-los adequadamente para a concorrência existente no ingresso ao ensino superior e na conquista do mercado de trabalho. Geralmente, são escolas assoladas por problemas sociais e caracterizadas por alta rotatividade de professores. Quando tratamos de boas escolas, incluindo nelas as melhores do ensino público e do ensino particular, é comum que os alunos se sintam reduzidos por uma organização dos tempos e dos espaços escolares voltados exclusivamente para os números a serem produzidos no vestibular.
Pensemos, então, que, numa época na qual as redes sociais levam os jovens brasileiros a terem contato até com colegas de Bangladesh, ampliando as inúmeras possibilidades e desejo de saber sobre o mundo vasto e amplo, nossos currículos espremem os alunos em estudos de tempo integral, voltados exclusivamente para a disputa e conquista do ensino superior. Na escola atual, adolescentes e jovens sentem falta de saberes que permitam romper os limites e horizontes dos muros da escola. A mudança curricular precisa, portanto, contemplar o desejo de abertura que os estudantes possuem.
Por fim, para o Ensino Médio que desejamos, é fundamental o enfrentamento de aspectos como a valorização do professor, a melhoria da formação dos gestores escolares, a garantia de maior autonomia das escolas e a desvinculação de projetos educacionais das ideologias partidárias. Ao lado disso, é preciso que as escolas sejam capazes de propor estratégias que favoreçam o protagonismo juvenil, formando-os sim, através de “conteúdos” e saberes, sem desconsiderar a humanidade dos sujeitos envolvidos no processo educativo.