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Passos N.194, Agosto 2017

SOCIEDADE

Cuidar da vida e da morte

por Dalton Ramos

O homem busca prolongar a vida. Mas, diante de uma grave doença, existem diferenças entre cuidados paliativos e obstinação terapêutica. Buscando uma ajuda para enfrentar estes temas, Passos convidou o Prof. DALTON RAMOS, Professor Titular de Bioética da USP d Membro Correspondente da Pontifícia Academia Pro Vita – Vaticano, para neste breve artigo abrir o diálogo em volta desta delicada questão

Charlie Grad era um bebê inglês de 11 meses. Tinha uma doença genética que provocava um tipo de atrofia muscular progressiva com prognóstico de morte ainda no primeiro ano de vida. Dependia, para sobreviver, de um suporte de ventilação mecânica, de alimentação e hidratação. Os médicos do hospital queriam desligar os aparelhos alegando que não havia mais tratamento possível. Os pais de Charlie, que não concordavam com os médicos, mobilizaram-se para buscar todos os tratamentos possíveis, inclusive os tratamentos experimentais, isto é, os tratamentos em fase de pesquisa. Mas uma Corte Inglesa entendeu que se devia desligar os aparelhos de suporte de vida como entendiam os médicos do hospital. Depois de grande repercussão na mídia internacional, de uma batalha judicial e na contramão da vontade dos pais, os aparelhos são desligados e, em 28 de julho de 2017, Charlie morre.
A esse respeito sugiro a leitura do artigo do Cardeal Elio Sgreccia, Presidente Emérito da Pontifícia Academia para a Vida, publicado no blog “Il dono della vita”(1). Ele é o autor que tenho como referência na Bioética.
E perguntas me chegaram de amigos e alunos. Oportuno, então, esclarecer alguns aspectos, sem me aprofundar no caso do Charlie em si, mas de conceitos que merecem ser bem entendidos até para participar desse debate. Dúvidas me foram levantadas sobre o que seriam os cuidados paliativos, obstinação terapêutica e onde as pesquisas de novos recursos terapêuticos podem ajudar em casos similares ao de Charlie.

AVANÇOS DA MEDICINA. A fronteira entre cuidados paliativos e obstinação terapêutica nem sempre é muito nítida. Os cuidados paliativos tomaram para si a missão de cuidar de doentes ameaçados por uma doença crônica durante todo o processo dessa doença, acompanhando o doente e a família até a morte e a família ao longo do processo do luto. Numa reação à medicina tecnicista, dispõem-se a abordar o ser humano desde vários aspectos que incluem o físico, mas não se subordinam a ele; os aspectos emocionais, sociais e espirituais têm igual importância para os cuidados paliativos. Pretendem encarar a morte com naturalidade, considerando-a como parte de um ciclo que valoriza a vida; para tanto prometem cuidar dos sintomas de toda ordem que possam transformar o processo de morrer em fonte exclusiva de sofrimento, transformando-o em digno, senão valioso. Pedem o concurso de vários profissionais da saúde que devem trabalhar de maneira integrada para o bem dos envolvidos. Representam, para a área da saúde, o reencontro com a possibilidade de integrar mente e espírito ao físico, e assim permitir uma visão mais abrangente da vida e da morte do ser humano(2).
Por outro lado, a busca da cura a todo custo, utilizando-se a medicina de alta tecnologia, serve exemplarmente à recuperação de doentes com doenças agudas ou daqueles que, mesmo portando doenças crônicas, evoluem com lentidão e poucas sequelas. Entretanto, naqueles doentes gravemente limitados ou, especialmente na fase de terminalidade, torna-se bastante questionável o uso de recursos extremos na tentativa de prolongar a vida sem que se atente para a qualidade dessa vida ou para as necessidades do doente e dos próximos a ele. A medicina e os médicos tendem a se tornarem terapeuticamente obstinados, prolongando muito mais o sofrimento do que atentando para a dignidade da vida dos seus doentes.
A pesquisa científica, especialmente aquela voltada ao desenvolvimento de novas terapêuticas para as áreas da saúde, representa a possibilidade de se ampliar os recursos que possam garantir uma maior qualidade de vida para as populações. Enquanto não se concluem todos as etapas de testes, para se avaliar eficácia e segurança, um uso experimental pode implicar em vários riscos. É justo que se ofereça, por compaixão, os tratamentos experimentais aos doentes que não têm mais possibilidade de cura por outros métodos. Mas não basta que se tenha como hipótese que o fim seja bom – como a busca da cura – mas também os caminhos empregados nessa busca devem considerar a proporcionalidade dos riscos. Por se tratar de recursos ainda em fase de testes, riscos existem. É uma decisão difícil principalmente para os que estão emocionalmente envolvidos. Importante que se ofereça a eles todas as informações e liberdade para decidir.

A DIGNIDADE DA PESSOA. Oportuno que se retome que para a Doutrina Católica, expressa em seu Catecismo(3), “Quaisquer que sejam os motivos e os meios, a eutanásia direta consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou moribundas. É moralmente inaceitável”. Quanto a rejeição à obstinação terapêutica o Catecismo ensina que “A cessação de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados, pode ser legítima”... “Não que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o fato de a não poder impedir”. Quanto aos cuidados paliativos anuncia que “constituem uma forma excepcional da caridade desinteressada; a esse título, devem ser encorajados”. É ainda importante destacar uma afirmação do Catecismo: “As decisões devem ser tomadas pelo paciente se para isso tiver competência e capacidade; de contrário, por quem para tal tenha direitos legais, respeitando sempre a vontade razoável e os interesses legítimos do paciente”.
Em uma carta publicada no site de Passos, Davide Prosperi e Fabio Corsi impactaram-me quando, entre outras coisas, escreveram que “Para não sofrer seria necessário não amar”. Afirmo, não só com base na minha experiência afetiva pessoal, mas também com base no meu trabalho acadêmico e sem ingênuo sentimentalismo, que esta questão do olhar amoroso é o núcleo de toda a questão. E é a partir deste olhar que podemos identificar o caminho a ser seguido no enfrentamento dos desafios das questões técnicas e do dilema ético.
O principal problema é, antes de tudo, reconhecer e respeitar a dignidade da pessoa humana e nos empenhar em promover seu bem integral. E, ainda, aos mais vulneráveis, como é o caso de um recém-nascido, temos o dever de respeito especial. Testemunhei recentemente a experiência de uma gestante que recebeu o diagnóstico do gravíssimo comprometimento da vida do feto, devido a uma má formação, com prognóstico de morte do nascituro logo após o parto. Acontece que lhe foi permitido encontrar amigos que a ajudaram a viver esse momento e encontrar uma equipe hospitalar disposta a acolhê-la e ampará-la em levar a termo a gravidez, mesmo existindo a previsão legal para a realização de aborto. Contando, com a devida assistência de equipe médica, ela pôde ter em seus braços seu filho pelos 40 minutos que este viveu, do parto até sua morte. Essa mãe nos testemunhou que esses minutos foram para ela “os mais bonitos de sua vida”. Um significado que foi possível mesmo no sofrimento de uma morte que não era desejada. É possível se nos empenhamos em oferecer uma companhia humana e os recursos adequados.

Notas:
1) http://www.ildonodellavita.it/card-sgreccia-10-punti-critici-sul-caso-del-piccolo-charlie-gard
2) Figueiredo, MGMTC. Cuidados Paliativos. In: Ramos, DLP. Bioética, Pessoa e Vida. Uma abordagem personalista. 2ª ed. Ed. Difusão, 2017, no prelo
3) Catecismo da Igreja Católica, nums. 2277 a 2279.

*O autor é Professor Titular de Bioética da USP. Membro Correspondente da Pontifícia Academia Pro Vita – Vaticano.

APROFUNDAMENTOS
> Artigo do Cardeal Elio Sgreccia publicado no site ACI Digital.