IMPRIME [-] FECHAR [x]

Passos N.196, Outubro 2017

RUBRICA

Cartas

O RAMADÃ, A CONFISSÃO E O SENSO RELIGIOSO
Vivo em Londres há alguns anos e há seis meses compartilho o apartamento com uma jovem muçulmana. De imediato o relacionamento com ela foi um desafio fascinante, porque significou, e significa, encarar diariamente uma cultura diferente daquelas encontradas até hoje por aqui. Durante o Ramadã, um pouco por brincadeira, perguntei se também entre eles existe a possibilidade de quebrar o jejum para depois reparar com algo semelhante em nossa confissão. Na resposta, levando a sério a pergunta, ela me disse que não e me pediu para lhe explicar o significado da confissão e do porquê, numa relação privada como aquela entre você e Deus precisa entrar um outro homem. Inicialmente fiquei surpresa, porque, em geral, pelo menos na Grã Bretanha, quando a gente está diante de alguém com ideias diferentes das nossas, procuramos ser o mais superficial possível e evitar fazer muitas perguntas, para não provocar atritos desagradáveis ou incompreensões. Ela, ao invés, me pedia exatamente o contrário. Não possuindo grandes bases teológicas, falei de uma confissão que fiz há alguns meses com um padre de quem eu gosto. Submeti a ele, além dos meus pecados, uma série de dúvidas que tenho sobre a fé, em oposição a todo o mundo em volta. Assim, contei a ela como eu me senti acolhido porque o padre, antes de me absolver, me relatou quais eram os pontos de luz na sua experiência cotidiana que lhe davam força frente à escuridão que em geral nos circunda. Procurei explicar a ela que se não fosse aquele padre e alguns amigos, para mim teria sido impossível encontrar Deus. Então ela me disse: “Eu também com frequência me coloco essas questões”, e daí nasceu um diálogo muito intenso sobre o significado que a religião tem na nossa vida, sobre o relacionamento com os nossos amigos, em sua maioria ateus. Na medida em que a conversa progredia, o diálogo se focalizava cada vez mais na definitiva pergunta que todos carregamos dentro de nós. No final, eu disse a ela que a maior parte daquilo que eu havia contado a ela vinha de um encontro com um tal de Luigi e com os amigos que me haviam levado a encontrá-lo, e assim mostrei a ela o livro O senso religioso. Ela me perguntou se podia lê-lo e eu concordei, embora sabendo que todos os outros livros que eu lhe aconselhei tinham voltado logo, pois ela havia achado pesados demais. No dia seguinte, ela me disse: “Mas o livro que você me deu é belíssimo, já li quase tudo”. Eu achei que ela estava brincando, ela percebeu e então acrescentou: “Falo sério, seria um livro que todos os nossos amigos não crentes deveriam ler”. Embora vivendo numa época em que geralmente fico abalado com o nível de grande ódio e divisão, naquela noite fui dormir um pouco mais contente e certo de que o coração do homem é um só e deseja o abraço d’Ele.
Mario, Londres (Grã Bretanha)

A REALIZAÇÃO DA VIDA DE PADRE PAOLO BARGIGIA
Dia 24 de agosto, aos 57 anos, morreu o padre Paolo Bargigia, sacerdote de Florença que desde 2008 esteve em missão em Lima, no Peru. Em 2014 ficou muito doente, sendo acometido de Esclerose lateral amiotrófica (ELA), o que o obrigou a voltar para a Itália. Passou o último ano na paróquia de Jesus Bom Pastor, na sua região. Pe. Julián Carrón, na mensagem pela sua morte, escreve: “A doença foi vivida pelo pe. Paolo como uma ‘vocação na vocação’. Progressivamente despojado de tudo, a sua pobreza revelou a todos a sua riqueza: Cristo”. A seguir, a carta de uma amiga sua.
Depois de três anos de doença, pe. Paolo Bargigia chegou à realização definitiva da sua existência, junto com o amor da sua vida, Jesus. Viveu parte dela no Peru, ao lado das crianças, jovens, famílias, com a certeza de que só Cristo presente pode tornar as coisas novas e belas. Participei com ele do coro; a precisão das notas, o modo de cantar, dirigir, respirar e até como se vestir eram quase que uma sua obsessão, consciente como era de que a ordem tornava mais fácil a expressão da beleza e, portanto, de Deus. Junto com ele, o seu amigo pe. Giovanni Paccosi deixou o Peru para acompanhá-lo na caminhada da sua doença, experiência que se transformou, em Giovanni, na descoberta de si mesmo e, ao mesmo tempo, num espetáculo aos nossos olhos. Quando cheguei à Itália, no primeiro dia, durante o velório, sentia todo o peso da perda, mas quando Giovanni nos acolheu foi uma companhia recíproca, eu não o compreendia totalmente, mas percebia que naquele abraço tudo tinha sido acolhido. Eu via vários rostos, cada um com a sua história, mas unidos por alguém que nos convocava a viver a provocação do que havia acontecido. Tínhamos encontrado Jesus e Ele nos doa testemunhas que nos envolvem de um modo que nós não podíamos pensar nem calcular, mas que corresponde totalmente e nos completa, a nós pobres homens mendicantes, sedentos d’Ele. Por outro lado, eu pensava em todos os seus amigos no Peru e na possibilidade que eu estava tendo de estar aqui com Paolo e voltar a me perguntar o que significa a expressão de que a morte não tem a última palavra. Uma frase repetida muitas vezes. Mas observar o que estava acontecendo no velório, ou melhor, olhar o que, talvez, em outras ocasiões, eu não tinha sabido ver, me fez recuperar a minha humanidade e me deixou tranquila por todos aqueles que acompanhamos. Nestes dias fui ajudada pela lembrança da exortação Evangelii Gaudium (n. 276): “A Sua ressurreição não é uma coisa do passado; contém uma força de vida que penetrou no mundo. Onde parece que tudo está morto, de todos os lados voltam a aparecer as sementes da Ressurreição. É uma força sem igual. É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe: vemos injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não diminuem. Porém, é igualmente certo que no meio da escuridão começa sempre a desabrochar algo de novo, que cedo ou tarde produz fruto. Num campo arado volta a aparecer a vida, obstinada e invencível”.
Sílvia, Lima (Peru)

VOLTAR PARA CASA, APÓS TRINTA ANOS
Caro pe. Julián, retornamos ontem das férias dos “Zaqueus”. Tenho 55 anos e tendo participado do Movimento anos atrás, frequentei dezenas de férias, Exercícios, tríduos e Escolas de Comunidade. Mas se alguém me dissesse, há algum tempo, que eu estaria, hoje, num lugar como Pejo, com pessoas assim, eu lhe diria... você está louco! Estas férias, como vários acontecimentos deste último período, têm para mim o sabor do Milagre. Sim, com “M” maiúsculo. Fiquei fascinado com a experiência do Movimento quando era colegial, por meio de um padre entusiasmado. Eram anos importantes feitos de debates, mesmo duros, e de grande paixão. Não me faltou nenhuma circunstância, nenhum acontecimento, nenhuma ocasião. Continuei a experiência na Universidade, depois... nada. Fui embora. Fiquei trinta anos longe, distante e cada vez mais bravo com o Movimento e suas pessoas, com suas escolhas e suas tomadas de posição. Casei, me tornei marido e pai de três esplêndidos filhos. A carreira, os sucessos não me faltaram. Depois um sinal de quem menos se espera, aliás daquele ex-amigo com quem, nos anos de “militância” no Movimento, eu estava menos ligado. O pretexto foi a avaliação de um trabalho feito na paróquia comum que frequentamos. Um e-mail, um convite para tomar uma cerveja juntos e aí retomamos as nossas conversas. Mas ainda com o olhar cheio de pretensão, como se dissesse: veja que no fim eu é que tinha razão... Porque a história é feita de incrustações, a raiva nos enche daquilo que a gente já sabe. Nós nos elevamos à condição de deus, de senhor das coisas, como detentor do verbo, mas desse modo você jamais se sente em casa, tem sempre um coração inquieto, que procura a paz e não a encontra. Você é a referência de tudo, a sua inteligência, a sua visão das coisas, mas você nunca está satisfeito com o que tem ou com o que você é. E depois pode acontecer uma reviravolta na vida. Você decide começar uma nova atividade de trabalho, que porém não acontece como você havia pensado, apesar de um plano de negócio “quase perfeito”. E assim vão por água abaixo a carreira, o sucesso e os benefícios anexos. Para piorar tudo, minha mulher vê agravar-se a sua doença. Muita coisa desaba junto. Levantar-se de manhã se torna difícil, e nem mesmo as pastilhas “milagrosas” dos antidepressivos parecem fazer efeito. Você está sob o peso das coisas que passam. Começa a pensar que o belo da vida pode ter ficado para trás e que pouca coisa permanece de pé. Agora não basta mais o meu esforço, a minha performance. Eu, sozinho, não consigo me salvar, não consigo ser apoio e força nem para mim, nem para minha mulher, menos ainda para quem optou por trabalhar comigo. Durante a assembleia final nas férias, dei um pequeno depoimento no qual, dirigindo-me a minha mulher, lhe disse que sozinho eu não podia ajudá-la na sua doença, não conseguia mais apoiá-la. Nessa altura, a vida fica simples: ou Cristo fica com a letra minúscula, isto é, passa a ser o meu deus, que submeto à minha vontade e à minha inteligência e, então, estamos apenas brincando; ou Deus é o Deus da história e, então, tudo muda. Nós não voltamos porque tomamos uma decisão de fazê-lo ou porque somos bacanas. Voltamos porque Alguém nos trouxe de novo para casa. Hoje basta ter “olhos para ver”, como me dizia padre Bernardo: “Quando você se levanta de manhã e não se lembra de Deus, mas só dos seus problemas, basta respirar pois não deve procurá-Lo. É Ele que encontrou você e que está ali com você, porque Ele não o larga nunca”. Juntos podemos aprender de novo o que acreditávamos que já sabíamos.
Ângelo, Milão (Itália)

FUNDO COMUM. VOLTAR À ORIGEM
Quando terminei a universidade e no início do meu casamento, eu era mais regular com o pagamento do Fundo comum. Depois, com a chegada dos filhos tive mais dificuldade e eu e meu marido decidimos diminuir a contribuição. Nos últimos anos fazemos apenas um depósito, normalmente na época dos Exercícios, e obviamente não estamos mais em dia. A justificativa que eu dava era que no fundo já sou generosa, pois procuro responder aos pedidos de ajuda da paróquia, os projetos da escola, jantar beneficente, Banco de Alimentos. Porém, quando na assembleia da Fraternidade, Pe. Carrón nos disse que a nossa generosidade não dura se não fizermos memória do ponto de origem, a minha mente se abriu. É verdade, tudo começou ali, de Dom Giussani que nos educava a oferecer livremente algo nosso para a construção da obra do Movimento no mundo. Agradeço também pela ajuda a descobrir o verdadeiro significado dos gestos que fazemos, e sobretudo pela possibilidade de recomeçar sempre.
Giusi

GRATIDÃO PELA MISERICÓRDIA

Ir aos Exercícios da Fraternidade nunca foi uma prioridade pra mim, sempre escolhia as férias e outras oportunidades de estar com os amigos. Mas esse ano, após o acampamento de carnaval, tive o desejo de voltar a fazer Escola de Comunidade e de retomar o trabalho do Movimento. Durante um período, estive envolvida em outros movimentos da Igreja Católica, o que me afastou um pouco de CL, porém, mesmo distante, sempre me sentia preferida, pois a forma de olhar para a vida a partir do método ensinado por Dom Giussani é uma forma excepcional e depois que entra na sua carne, já não basta julgar as coisas superficialmente. Então, após o incentivo de alguns amigos, decidir ir aos Exercícios deste ano. Nos dias do encontro, cada dia sentia que era para mim, pois a forma como Carrón nos fala, de modo tão simples, fazia meu coração vibrar novamente. No sábado à noite, eu estava provocada com 3 pontos e os três foram citados por Carrón, na finalização na manhã do domingo. Mais uma vez meu coração se encheu e tive certeza de que não eram coincidências e sim sinais de que era aqui que eu precisava me empenhar. Fiz experiência de que aqui é possível viver diferente, pois Cristo não está distante e sim está em tudo o que vivemos. No trabalho, voltei com mais vontade de entender o que Cristo tem para mim ali, com aquelas pessoas, com aquelas circunstâncias, e pude perceber que não é bater a meta e ser uma funcionária de destaque que geram a minha felicidade. Quando faço algo, devo fazer por mim, pela misericórdia que Cristo tem por mim, sem esperar nenhuma atitude do outro. Quando entendo que tudo é uma possibilidade de relacionamento com Cristo, vem o desejo de viver todas as circunstâncias a fundo, de fazer a experiência de misericórdia em tudo, em todos os relacionamentos, não por uma capacidade minha, mas sim por gratidão ao olhar e à misericórdia que eu recebo quando me perco.
Thiciane, Brasília (DF)

FÉRIAS. A LIBERDADE NAS PEQUENAS COISAS

É a primeira vez que participo das férias dos colegiais, e por isso esta é uma experiência nova para mim. Antes de tudo, entendi que a liberdade está nas pequenas coisas, como fazer a escolha de respeitar os horários e manter o quarto em ordem. Liberdade é escolher entre duas opções conhecendo as consequências de ambas. Liberdade é escolher pensar, e pensar não é algo óbvio. Quantas vezes eu ouvi relatos ou sermões de modo passivo, sem entender seu sentido e sem mergulhar na situação. Nesses dias foi diferente, escolhi pensar, raciocinar durante os testemunhos e homilias da missa, e foi o clima presente que me permitiu isso. Enfrentei as atividades de todos os dias com outro espírito, observei tudo com outros olhos. Tudo parecia diferente, digno de atenção. Ser livre é também escolher observar as coisas de todos os dias de modo diferente. E fiquei focalizada nos momentos e objetos. Passei a observar, e não mais apenas olhar. Levando em conta o meu jeito de ser, não me contento em crer; preciso de provas, de fatos, de sensações. É um percurso longo e talvez não se concluirá jamais, e vai adiante por etapas. E estas férias foram uma etapa importante, que me fez avançar bastante, me permitiu pensar, dar uma pausa no frenesi de todo dia.
India, Milão (Itália)