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Passos N.197, Novembro 2017

FÉRIAS REGIONAIS

Um povo que caminha no sertão d’Ele. E espera

por Viviane Belga

O Norte de Minas Gerais, com sua paisagem árida, foi o cenário para a convivência entre algumas comunidades de CL. Ainda nos interessa a salvação? Uma pergunta a ser descoberta e respondida


“Mas é claro que o sol vai voltar amanhã/ mais uma vez, eu sei...” (Legião Urbana). Esta é uma das certezas do povo de Januária, cidade do norte de Minas Gerais, onde as comunidades de Belo Horizonte e Brasília, além de outras pequenas cidades, foram passar as Férias Regionais de Comunhão e Libertação durante o feriado de 12 de outubro até domingo dia 15. O sol voltaria quente, sabia-se. Por volta das cinco e quinze da manhã nosso ônibus passa pelo São Francisco. Alguns acordam subitamente com os primeiros raios de sol no rosto, ainda sem saber se de fato era o grande rio. O céu, cortado por rajadas avermelhadas, mostrava que o sol levantava-se por trás das árvores secas. Uma composição perfeita. Os galhos secos pareciam bracinhos suplicantes e agradecidos, em direção a Deus. Todos eles erguidos ao céu, como se rezassem o Ângelus. Uma paisagem diferente, árida, fora do padrão, instigando nosso olhar. Uma paisagem meio desarrumada, como o quarto de Vincent van Gogh, mas uma paisagem que espera.
Às seis da manhã, chegamos ao hotel. Alojar, rever os amigos distantes, tomar café. Tudo era alegria e desejo. Às 10h, no salão, fizemos o grande encontro, já sentindo o sol bem quente. Diante da seca e do calor, curiosos, aguardávamos os avisos sobre como seriam os dias. O que haveria de belo naquele lugar? O que encontraríamos naqueles dias?
Nossa amiga Marcela Bertelli, que já conhece a região e as pessoas, ajudou-nos para que nos colocássemos com uma postura mais justa diante da proposta das Férias. Ela nos convidou a ficarmos atentos, pois a beleza não estava essencialmente no que víamos imediatamente, mas sim no que estava por trás da seca, que é justamente a espera. Ela contou que demora a chover ali, mas quando chove no chão, um pinguinho que seja, é motivo de alegria. As árvores dão um sinal com uma folhinha verde miúda e as pessoas transbordam de entusiasmo. Se há a certeza do sol hoje, amanhã e depois, há ainda mais a certeza de que vale a pena esperar porque virá aquilo que pode matar a sede e tornar a vida cheia de novo, abundante. Com esse sentido da espera e com o desejo de que a salvação chegue em nossa casa, começamos o gesto.
As músicas já contagiavam o ambiente e nos ajudavam a viver o encontro. No palco, a frase nos provocava: A salvação nos interessa? Diante do quarto de Vincent van Gogh, na tela, outra pergunta surgia: há espaço para Cristo no meu quarto bagunçado? Tudo isso nos convidava a viver os dias em Januária de maneira livre, mas atenta e humana.
As crianças brincam incansavelmente, levando a sério seu “ofício”. É bonito vê-los inteiros, felizes e pertencentes. Amigos de lugares diferentes, unidos por uma afeição que é simples e verdadeira. Os adultos, em suas rodas, conversam, jogam cartas e se ajudavam a cuidar dos filhos. No restaurante, Virgínia brinca com o pequeno Francisco, enquanto os pais cuidam da irmãzinha. No auditório, Marcinha olha os sobrinhos, Angélica organiza a secretaria, Raquel compartilha a cerveja; na quadra, Ivanildo ajuda as crianças no gol; na lanchonete, os adolescentes dividem uma porção de batata frita. À noitinha, todos partilham os repelentes (!). Na simplicidade dos gestos, era possível enxergar vidas que vibram. Esse viver juntos não é como uma diversão que teríamos em qualquer colônia de férias, mas é algo que comove, impulsiona, porque é um querer-bem gratuito, encorajado, que tem em si uma humanidade divina.

Música e leitura. Na noite de sexta, um grupo preparou um sarau com fragmentos de Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e músicas, que nos traziam o pensar sobre a vida, a salvação, Deus, o sertão, a travessia. Riobaldo, personagem do livro, passa sua vida nos sertões de Minas, Bahia e Goiás. A cidade de Januária é citada na obra, o que nos levou a aproveitar da literatura para olhar mais atentamente esse cenário das férias. Para Riobaldo, no sertão se dá a travessia da vida. Com sua natureza e suas gentes, o sertão é o lugar de relacionamento desse jagunço com o Mistério. Diz Riobaldo que “Deus é urgente sem pressa. (…) O sertão é d’Ele”.
A música belamente cantada, os acordes ajustados e significativos, os fragmentos impactantes e certeiros. Tudo ouvido em silêncio, com uma tensão e atenção de quem espera que a arte seja um instrumento que nos ligue ao infinito. A dor da música Disparada, é mesma que a nossa. “Tudo estava fora do lugar”. O desejo de que o amor chegue, que vá “ficando até ficar”, como na música Aconteceu, também é o nosso. As perguntas, as dúvidas e certezas de Riobaldo também as temos, em nossa travessia: “O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.” (Grande Sertão: Veredas)
O sarau foi um momento de beleza, que pretendeu lançar o olhar para além do óbvio, para além do enredo da história. Havia o desejo de despertar as nossas questões mais fundamentais, que ajudam a encarar a vida, o depois, lembrando que, como nos diz Carrón: “A vida é bela porque em cada dia há uma possibilidade de relação com o Mistério e tudo pode tornar-se um desafio para descobri-lo e receber um a mais para mim.” (Exercícios Espirituais da Fraternidade de CL, 2017, p. 7).

Uma natureza extraordinária. O desafio do dia seguinte foi caminhar na mata seca do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, onde há cavernas e trilhas de todos os tamanhos e para todos os gostos. Sol a pino, mochila nas costas, muita água e disposição. Saímos em ônibus distintos até o ponto de apoio do parque e lá nos separamos, conforme o destino escolhido. Com o Grande Sertão na mente e no coração, fizemo-nos Riobaldo, querendo apreender cada palmo de galho seco, de terra, de rio que se acaba, de gente que se move no sertão. Muitas árvores brotam dentro das pedras, dos paredões. A copa seca busca o céu, as raízes buscam a terra, desejosas de alguma umidade do rio Peruaçu que quase não existe. Aquelas árvores eram, para mim, sinal de persistência. É como se dissessem: “É possível!”. Lembrei-me de Pe. Carrón que nos diz que “Deus nos quer verdadeiramente protagonistas da nossa salvação”. Os condutores que nos guiaram são dali, da região. A vida do parque se revela neles, que ajudaram a construí-lo e que o sabem de cor. No trabalho, expressavam um pertencimento que educava o meu olhar. Pensei que, na segunda-feira, queria dar aula com aquela gentileza deles. (Abro um parênteses para dizer que cheguei de fato feliz na segunda, contando aos meus alunos onde eu havia passado o fim de semana, e disse a eles que estava cansada. Depois, no decorrer do dia, um aluno disse: “Nossa, professora, você está dando uma aula tão entusiasmada que nem parece cansada”. E era isso mesmo. Um acontecimento que me invadiu). Ao fim de cada trilha, todos puderam se maravilhar com as cavernas e pinturas rupestres. No almoço, quando nos encontramos, cada grupo vindo do seu destino, o que prevalecia nos rostos não era o cansaço, mas a beleza. Dos roteiros mais simples aos mais monumentais, os comentários expressavam o reconhecimento de que Deus é grande, não só porque tínhamos nos deparado com uma natureza extraordinária, mas porque estando juntos tudo se torna mais potente, torna-se mais fácil decidir ficar do lado de Jesus. Um povo que caminha no sertão Dele.
Na noite do sábado, mesmo de banho tomado, ainda sentíamos impregnados em nós o sol e a poeira. No entanto, estávamos impregnados ainda mais de maravilhamento do dia, e também do encontro com as cozinheiras dedicadas da pousada que nos acolheu, no almoço, depois da caminhada, com sua comida simples e gostosa, do interior. Depois do jantar, um forró animado, bem à moda do sertão.

Desejo de ser ponte. Chega a hora de partir, minha gente! A segunda-feira vem aí! Malas arrumadas, café da manhã, assembleia e missa para terminar as Férias. Marco Montrasi, o responsável nacional do Movimento, chegou na sexta à noite e pôde nos ajudar a entender que precisamos manter tensionado o arco da promessa. E o gesto daqueles dias foi uma possibilidade de não nos mantermos frouxos, mas, ao contrário, firmes. Leandro disse que saía das férias querendo muito arrumar o quarto para que Cristo possa entrar, porque isto lhe é mais correspondente. Ele dizia: “Volto diferente de como cheguei”. Amandinha contou que precisava ter claro o significado de ir às Férias, já que a sobrinha ia nascer naqueles dias e tinha dúvidas se deveria participar. Decidiu ir e entendeu que voltava mais inteira, com uma alegria plena para acolher a irmã e o bebê que nasceu. Marcelo contou que nos últimos tempos tem tido dificuldade de encontrar os jovens na Escola de Comunidade. Aparentemente, o que há é um grupo desconectado, sem a forma “normal” da reunião, entretanto, ao precisarem se decidir sobre que grupo formar para a caminhada às cavernas, imediatamente os jovens se colocaram unidos, como se estivessem sempre assim. Para Marcelo foi um presente, algo dado, que não se podia ver claramente, mas ali se iluminou. Na homilia, padre Giovanni Vecchio nos chamou a atenção sobre as ações importantes e urgentes. Convidou-nos a verificar se, sob o pretexto da urgência, não estamos deixando de lado o que de fato é importante.
Com essas palavras, terminamos as Férias. Repletos, em abundância, desejamos ser ponte, como exclamou Montrasi: “Que bonito ser ponte!”. Devemos ser a ponte que liga o pai, a mãe, os filhos, amigos a Cristo, através do nosso testemunho. Devemos ser como João e André que, maravilhados, seguiam Jesus e, a partir disso, a vida mudava.
Hoje as Férias já viraram memória, mas o gesto ali inundou a gente e se derrama pelos dias que vêm chegando porque algo acontece agora, nas “minudências”, como Guimarães Rosa chama a pequena parte que completa o todo. A salvação acontece agora. “Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre” (Grande sertão: Veredas).