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Passos N.198, Dezembro 2017

TESTEMUNHO

A cinza e o fogo

por Alessandra Stoppa

“Achamos que possuímos as coisas para sempre. Porém, elas nos são dadas. E se perdemos a origem, tudo seca...”. A história de MIREILLE E VICTORIEN, um casal africano de Camarões

«Quem não desejaria ter amigos assim?». Foi a pergunta que Julián Carrón fez na Jornada de Início de Ano de CL (ver Passos de novembro 2017) depois de ter citado a carta de Mireille Yoga, que contava a experiência que viveu com seu marido. Carrón prosseguiu, usando as palavras do Papa Francisco: «Frequente pessoas que conservaram o coração como o de uma criança. Na sua humildade está a semente de um mundo novo».

Mireille e Victorien são casados há dezoito anos. Moram em Yaoundé, Camarões. Sua história é a de um amor mais forte do que tudo. Não tiveram filhos naturais e, na cultura deles, uma mulher estéril é uma vergonha, se não uma maldição: sempre percebia o olhar e os comentários das pessoas. E pedia um milagre, que, porém, não chegava. Ano após ano o desejo de dar um filho a Victorien tornou-se uma obsessão. Até o dia em que ele lhe disse: «Não chore mais. Para mim, você vale mais do que dez filhos. Eu me casaria novamente com você agora».

Essas palavras, impronunciáveis por um homem da cultura deles, eram fruto da experiência que viviam. Mireille diz: «Era o fogo que vinha de Cristo». Que ardia desde o encontro que fez com o Movimento de CL, alguns anos antes de se casar. Um encontro simples – como seguir a curiosidade por dois jovens do coro da paróquia – e total, a ponto de fazê-la dizer a Victorien quando a pediu em casamento: «Saiba que esta mulher é "produto" da fé. É por isso que você quer se casar comigo. Nunca me impeça de seguir o caminho em que me encontrou, porque ele é a minha vida com Jesus». Victorien a seguiu. «Assim, vimos o nosso amor crescer».

O encontro com um cristianismo vivo se renova no “sim” de Mireille a padre Maurizio Bezzi, missionário do PIME, que a convida para trabalhar numa obra educativa para jovens em situação vulnerável. Sua vida com o marido se alarga, abrem a casa para os jovens nanga boko, "aqueles que dormem fora", meninos que vivem entre as ruas e a penitenciária, roubando e fumando maconha, com AIDS ou à mercê da sorte. Eles os acompanham, um a um, «para que sobre cada um pouse o olhar amoroso que nunca receberam». Hoje, também têm dois filhos: Jérémie, de quatro anos, em guarda provisória, e a mais velha, Andrée, de sete anos, que foi adotada em 2012.

Mas, num determinado momento, daquele “fogo” que os lançou em uma vida a dois e que os fazia sentirem-se únicos no mundo «restava apenas uma brasa que corria o risco de se tornar cinza», conta Mireille. Ela toma consciência disso através de um fato muito simples: um homem se apaixona por ela. «Uma pessoa que conhecia há vários anos convidou-me para jantar. Estava contente por sair um pouco do ambiente de casa». Diz a Victorien que chegará tarde e pede que ele cuide das crianças. «Aquela noite foi muito bonita. Estava com alguém que me dava toda a atenção, percebia se meu copo estava vazio, olhava para mim atento aos mínimos detalhes e me fazia falar de tudo e de nada com especial atenção. Senti-me leve».

Algum tempo depois, convidou-a novamente: «Aceitei porque a sua companhia me fazia bem». Mas desta vez, ele disse que há algum tempo estava apaixonado por ela. «Sua declaração fez minhas pernas tremerem. Quando voltei para casa, estava feliz porque alguém me desejava, porque alguém me dizia coisas que não ouvia mais. Qual tinha sido a última vez que eu e meu marido tínhamos tido um momento assim? Que ele me disse que me amava, ou que eu lhe tivesse dito isso? Havia muito tempo».

Entre eles se insinuara uma distância profunda, sutil, sem que percebessem; faziam as coisas que tinham para fazer e terminavam o dia com o celular na mão antes de deixar-se vencer pelo sono. «Quando me dei conta, senti um abismo sob meus pés», continua Mireille: «Cuidamos da família, da casa, acolhemos os meninos de rua, ajudamo-nos reciprocamente... Mas nos afastamos, nos distanciamos».

Diante do encontro com aquele homem, ela permanece leal. Para, olha para si, e sente-se como uma máquina girando no mesmo lugar, sem ter mais a força de propulsão do motor para avançar. E entende o que aconteceu: «Achamos que possuímos as coisas por toda a vida. Porém, elas nos são dadas. Até que perdemos a origem, e tudo seca». Vendo-se assim, empobrecida, percebe o verdadeiro problema entre ela e seu marido: «Cristo não era mais o ponto de partida do nosso cotidiano». Fazia tempo que não rezavam juntos, ou que «não saboreávamos as coisas, agradecendo a Deus por nos tê-las dado». Foi «uma descoberta dolorosa», mas ela não opôs resistência, pelo contrário, «fiquei contente por essa descoberta. Porque o Senhor usava de um encontro qualquer para me restituir a mim mesma. Vinha novamente tomar conta de nós».


Pouco depois, no dia do aniversário de casamento deles, insiste com o marido para saírem para jantar. Ele não tem vontade, mas aceita, e se vê à mesa com a cabeça cheia de pensamentos enquanto a mulher olha-o nos olhos, paciente, esperando-o: “Eu queria encontrá-lo» , diz ela. Conta o que lhe aconteceu e se abrem um com o outro, se acolhem. «Você tem razão», diz Victorien: «Nosso amor cresceu como uma árvore. Os pássaros pousam em seus galhos, as pessoas encontram sombra... Mas se pararmos de nos alimentar da fonte, secaremos».

Naquele instante, o coração de Mireille se encheu de gratidão. «O Senhor nos dava novamente a intensidade de nossa vida conjugal. Assim, rezamos o Angelus, comemos algo e, como duas crianças, voltamos timidamente para casa com a certeza de que éramos amados e desejados por um Outro. Aquele que começou conosco a nossa história, antes de nós, veio mais uma vez nos ajudar».

É o exemplo da disponibilidade à maneira com a qual Deus quer arrombar as nossas portas, aos “sintomas” que emergem em nós, como dizia Carrón: «Os sintomas são como o grito que Deus, cheio de ternura por nós, faz brotar das nossas entranhas. Como se nos dissesse: "Será que você não se dá conta da necessidade que tem de Mim?"». Depois daquele jantar de aniversário, «o cotidiano não deixou de ser duro”, conta Victorien que, há poucos dias, teve um problema no trabalho e disse a sua mulher: “Se não estamos ‘juntos’, eu faço as coisas mal”. Ela respondeu: “Sim, mas não existe estar juntos sem Cristo”.

Cristo como ponto de partida do cotidiano é muito concreto. Mireille conta: «De manhã eu rezava com as crianças porque ele tinha muitas coisas para fazer. Sempre lemos o Evangelho do dia para saber "o que Jesus nos diz hoje", mas eu estava fazendo isso sozinha, assim como ir à missa todos os dias. Não havia mais unidade. Porque a unidade está em Cristo, no "início" das coisas. No início do dia».

«Cresceu em mim o desejo de ter o "meu" relacionamento com Deus», diz Victorien: «De que aflore o meu coração, a minha liberdade». Ajudando-nos a tomar e retomar consciência, «estamos nos tornando mais amigos», dizem: «Temos a certeza de que a nossa vida é carregada por um Outro. E isto nos dá simplicidade e mais amor pela liberdade do outro. Estamos aqui... como dois filhos perdoados pelo pai. Os problemas do matrimônio tornam-se ocasião para sermos mais verdadeiros, para recomeçarmos».

Mantendo-se aberta, Mireille descobriu quanto o coração estava afastado de Cristo também diante da amizade de padre Remigio, que acompanha da Itália a comunidade de Camarões. Ele foi visitar a comunidade e, com simplicidade, ficou perto deles: «Embora seja nobre o que fazem, gostaria de saber como vocês estão». Ver a afeição de padre Remigio derrubou todos os muros que ela tinha construído, também em relação aos amigos do Movimento com quem o relacionamento tinha se perdido. «Dizia a mim mesma que não deveria procurá-los, que se quisessem, sabiam onde nos encontrar... Criava muitas objeções». Mas padre Remigio perguntava sobre cada um de nós, se preocupava.

«Via no olhar de padre Remigio como era importante para ele que cada um fosse feliz. Foi um choque para mim. E desejei ter aquele mesmo olhar de ternura. No meu íntimo, comecei a rezar e a pedir perdão: por todas as vezes que impedi Cristo de usar o meu coração e o meu olhar para se manifestar em minha volta». A partir daí, começou a procurar os amigos que não via há tempos. «Plena dessa amizade que perturbou a tranquilidade na qual estava estagnada». Cita apenas a mensagem de um deles, que recebeu em resposta: um simples «Obrigado». «Um obrigado cheio de coisas não ditas».