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Passos N.91, Março 2008

SOCIEDADE / Bento XVI

Da “Sapienza”... à Razão

por Stefano Filippi

A Universidade La Sapienza fechou as portas ao Papa. Para muitos, um simples “acidente de percurso”, que se deve arquivar o mais rápido possível. Mas é uma extraordinária oportunidade para entender a relação entre fé, conhecimento e busca da verdade. Como demonstra a mobilização que aconteceu nos corredores e nas salas de aula. Uma coisa que interessa a todos nós

A mobilização aconteceu rápido, tão logo foi divulgada a “carta dos 67”. Antes mesmo que Bento XVI desistisse da visita à Universidade La Sapienza, de Roma. Não se tratava simplesmente de uma resposta aos antipapistas, como gostaria de caracterizá-la o clima cultural italiano, que hoje vive apenas de bate-bocas, de polêmicas, de declarações, que, depois, nos telejornais, são emparelhadas umas ao lado das outras, independentemente de seus respectivos conteúdos. Era também algo que ia além da simples manifestação de apoio ao Pontífice, que naquele momento (eram os primeiros dias do ano) encontrava-se ainda quase completamente sozinho. Era evidente que se estava deflagrando uma batalha cultural, um confronto em torno das ideias de fé e razão. A enésima frente aberta por causa do magistério de Bento XVI.
Nasce um primeiro apelo: um texto dirigido não genericamente ao mundo universitário, mas ao corpo docente, um pedido para que os colegas tomassem posição. Em poucos dias, o documento (uma carta ao professor Ruggero Guarini, reitor da Sapienza) recolhe cerca de 650 adesões, um número de assinaturas dez vezes superior ao da carta dos 67 “cientistas fiéis à razão”. Assinavam o documento professores e pesquisadores, em grande parte atuantes na área científica. Nomes como o físico Ugo Amaldi, membro da Academia das Ciências e diretor de pesquisa do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern, na sigla em francês), em Genebra; o matemático Giorgio Israel, o físico nuclear Gianpaolo Bellini, o filósofo Enrico Berti. E mais: Piero Benvenuti, presidente do Instituto Nacional de Astrofísica; William Shea, da cátedra galileana de História da Ciência na universidade de Pádua; Massimo Castagnaro, presidente do departamento de Medicina na mesma universidade. Embora tendo partido do mundo católico, a coleta de assinaturas logo alcança uma ampliação de 360 graus.
“No fundo daquela carta havia o espontâneo desejo de manifestar desapontamento e tristeza, suscitados pelos professores de Roma, que não quiseram aproveitar a grande oportunidade e o privilégio de hospedar um colega”, diz Marco Bersanelli, professor de Astrofísica na universidade de Milão. “Porque Joseph Ratzinger, além de Papa, é um colega, um grande estudioso. Isso fala muito do empobrecimento cultural que acometeu a nossa universidade”.

A pretensão do cientificismo
Reflexão semelhante faz um outro promotor do documento, Giovanni Maria Prosperi, professor emérito de Física teórica na universidade de Milão. “Isso não é ciência, mas cientificismo, isto é, a pretensão ideológica de explicar toda a realidade sem sair do recinto do método científico. Mas a racionalidade, entendida corretamente, obriga a confrontar-se com horizontes bem mais vastos”.
A “carta dos 600”, que se solidariza com Guarini e o encoraja a resistir ao “preconceito e intolerância”, julga “inaceitável o tom, a forma, a substância da carta” que pedia se mantivesse o Papa longe da universidade. “A atitude do Papa e da Igreja, com seu forte apelo à razão e contra o relativismo, parece-nos muito mais respeitoso e alinhado com o espírito científico do que várias correntes do pensamento moderno”, diz-se ali, entre outras coisas. E mais: “A ideia de que os conhecimentos obtidos com os métodos das ciências naturais não podem pretender esgotar tudo aquilo que o espírito humano pode aspirar não nos parece absolutamente lesiva à Ciência; ao contrário, alinha-se com a mais moderna epistemologia. De qualquer modo, pensamos tratar-se de uma tese digna de respeito e que deve ser objeto de um confronto cultural sereno”.
Quando o Papa desiste de ir à Universidade La Sapienza, o documento parece ter ficado superado. Na realidade, a batalha cultural estava apenas começando. “Depois de ter lido o discurso preparado por Bento XVI”, explica Bersanelli, “ficou evidente a desproporção entre a atitude rígida e ideológica dos ‘67’ e o conceito alto de razão expresso pelo Papa, o verdadeiro defensor da liberdade e da laicidade”.
Uma ideia de razão que, porém, ainda não alcançou pleno status de cidadania na universidade italiana. Superado o problema da Sapienza, continua-se como se nada tivesse acontecido; procura-se liquidar o episódio como um acidente de percurso, enquanto que a atmosfera de fechamento e de intolerância continua a permear as universidades. E a palavra de ordem permanece sendo uma “laicidade” mal-entendida. Uma prova? Rita Levi Montalcini, Prêmio Nobel de Medicina, que estava em Milão para receber um título honoris causa em biotecnologia industrial pela Universidade Bicocca, assim responde aos jornalistas se teria aceitado que o Papa falasse na Sapienza: “Sou membro do Vaticano (da Pontifícia Academia das Ciências; nde) e assim não podia assinar algo que eu aprovava completamente”. Ou seja, a imposição do silêncio a Ratzinger.

O jogo mais interessante
Por isso, a mobilização continua. E toma a forma do Apelo em favor da razão e da liberdade na Universidade, lançado por noventa professores, cujo número em poucos dias quadruplica, com a adesão também de quatro reitores (Lorenzo Ornaghi, da Católica de Milão; Giuseppe Dalla Torre, da Lumsa; Roberto Sani, de Macerata; e Paolo Scarafoni, da Universidade europeia de Roma) e de numerosos diretores de faculdades. Ao convite para se “defender aquela amplitude e vastidão da razão, aquela liberdade de pesquisa e de confronto essencial ao exercício da profissão de docente e para a construção de uma convivência civil” unem-se nomes de importantes personalidades do cenário político e acadêmico italiano. O site da internet (www.appellouniversita.net) recolhe, em apenas três dias, 350 adesões, inclusive do exterior. E isso é apenas o início. Mas é nas classes e nos corredores das universidades, no relacionamento entre os professores, que se dá o jogo mais interessante. E onde acontecem os fatos mais inesperados. Sucede que muitos reitores lêem o Apelo, aprovam-no, mas depois não o assinam, porque dizem preferir a prudência e que é melhor esperar a poeira abaixar. Muitos diretores de faculdade fazem o mesmo, talvez na expectativa de que a assinatura do reitor libere o caminho também para o apoio deles.
Incrível o que aconteceu no Politécnico de Milão. Na diretoria acadêmica foi apresentada uma longa moção condenando “os fatos tristes e inoportunos de Roma”, reforçando que a universidade é “um lugar aberto e de diálogo”, e agradecendo ao Papa “pelo alto conteúdo do seu texto”. Depois de uma hora e quarenta minutos de discussão, a moção foi aprovada. Com um pequeno corte: a referência direta a Bento XVI. O documento elogia a ideia de universidade promovida por Ratzinger, mas sem citá-lo.

Posição leiga
Uma parte do mundo acadêmico, porém, ficou abalada com o que aconteceu na Sapienza, está consciente da batalha e não quer deixar a coisa cair no esquecimento. Na Universidade Católica de Milão, o discurso do Papa foi lido no salão nobre, lotado com cerca de 700 pessoas, alunos, professores, pessoal técnico. A partir de Milão (Politécnico e Católica), espalham-se por toda a Itália os encontros públicos centrados no texto do Apelo e, sobretudo, no conteúdo do texto de Bento XVI.
E chovem adesões inesperadas, como a do professor Bruno Bosco, titular de Ciência das Finanças na Universidade Bicocca. Bosco é conhecido pela militância na esquerda e pelas pesquisas sobre a Tobin Tax e a economia de Cuba. Mas no dia em que o Papa desistiu de ir à Sapienza ele propôs dedicar a metade das duas horas de aula à discussão do fato do dia. Muito bem, os alunos aprovaram. Mas permaneceram calados. Coube a ele manifestar um juízo, afirmar que “se o Papa viesse à Bicocca, eu consideraria isso uma honra imerecida”. Aplausos, mas de novo volta a reinar o silêncio. Quando lhe é submetido o Apelo, assina-o imediatamente. “Não estou de acordo com tudo”, diz, “mas neste momento quero afirmar uma verdadeira posição laica. O que está em jogo é o futuro da universidade”.

Em favor da razão e da liberdade na universidade

Por ocasião da publicação do discurso que Bento XVI pronunciaria na Universidade La Sapienza, de Roma, sentimos a necessidade de manifestar nossa indignação e nossa preocupação com a inopinada gravidade dos fatos acontecidos. Como pessoas empenhadas cotidianamente na pesquisa científica e no ensino universitário, consideramos inadmissível que, numa universidade, lugar privilegiado do livre confronto de ideias, uma exígua minoria de docentes e estudantes tenha conseguido impedir o Papa de aceitar o convite para participar da inauguração do ano acadêmico e ali expressar seu pensamento. Tocamos, assim, o ponto mais baixo da intolerância ideológica e escrevemos uma das páginas mais negras da história da liberdade de expressão em nossas universidades e na sociedade civil.
Colocamos em anexo o discurso de Bento XVI, com o qual ele quis realçar, de um modo lúcido e vibrante, “a responsabilidade própria da razão”, a “missão de manter desperta a sensibilidade pela verdade”. “O perigo do mundo ocidental – para falar só deste – é que, hoje, o homem, justamente levando em conta a grandeza do seu saber e poder, se renda frente à questão da verdade. Isso significará também que a razão, no fim das contas, cede face à pressão dos interesses e da atração da utilidade, obrigada a reconhecê-la como critério último”.
Não podemos deixar de ouvir as afirmações do Papa contidas nesse discurso, profundamente pertinentes à experiência de cada um de nós. Reconhecemos nelas a perspectiva de uma consciente e vigorosa defesa daquela amplitude e vastidão da razão, daquela liberdade de pesquisa e de confronto, que consideramos essenciais ao exercício da nossa responsabilidade de docentes, tendo em vista o presente e o futuro da universidade e, por isso, da nossa convivência e civilização.

Esse texto do Apelo em favor da Razão e da Liberdade na Universidade, antes mesmo de ser enviado à imprensa, já havia recebido mais de quatrocentas assinaturas. Entre os primeiros aderentes, alguns reitores (Lorenzo Ornaghi, da Universidade Católica de Milão; Roberto Sani, da Universidade Macerata; Giuseppe Dalla Torre, da Lumsa; e Paolo Scarafoni, da Universidade Europeia de Roma). Podia-se aderir ao Apelo acessando diretamente o site www.appellouniversita.net.