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Passos N.86, Setembro 2007

IGREJA - Fraternidade Sacerdotal São Carlos Borromeu

Um abraço que derruba os muros

por Massimo Camisasca

Do Seminário de Roma a todo o mundo. Nestas páginas, os missionários da Fraternidade São Carlos Borromeu relatam suas vidas, os encontros, as dificuldades. Histórias de uma amizade “nas fronteiras do humano”


Muitas vezes, falando da Fraternidade São Carlos, me veio à mente o título do famoso livro de Gilbert Cesbron sobre os padres operários, Os santos vão para o inferno. Não, certamente, porque os padres da Fraternidade São Carlos desejem ter essa experiência como referência, mas porque nós queremos viver nas fronteiras do humano. Tudo o que é humano nos interessa, e nós nos sentimos enviados a todos os homens. Foi o que vi em Dom Giussani, o que aprendi com ele, o que ele me transmitiu. Para mim, Dom Giussani é um homem que buscava a si mesmo em qualquer homem, curioso a respeito da humanidade de todos e, ao mesmo tempo, um homem que mendigava Cristo em todas as coisas. Tornou-se testemunha disso. Então, mais do que relatar uma teoria, gostaria de revelar a nossa Fraternidade por meio de um pequeno-grande acontecimento.

Chegou a mim, nestes dias, uma carta de Giampiero Caruso, um nosso padre que vive em Novosibirsk, capital da imensa Sibéria. Entre outras tarefas, Giampiero visita regularmente três prisões. Uma delas está situada a noventa quilômetros da capital, numa pequena cidade de nome Tagucin. Deixo a palavra com ele.

“Entrando na prisão, caminho vários metros, em silêncio, escoltado por um policial. Atravesso um longo pátio, fechado com um altíssimo alambrado de arame farpado e ferro. Encontro alguns prisioneiros que passeiam, outros que recolhem a neve, outros ainda que jogam futebol num campinho. Coisas que eu havia visto somente no cinema. O policial, durante o trajeto, me sussurra ao ouvido que aquela prisão acolhe 2.200 pessoas. Num determinado local encontro 15 detentos; estão ali me esperando. No início, sinto medo, porque não sei direito como os prisioneiros podem reagir à minha presença. Mas depois penso que não estou só; penso nos sacerdotes da Fraternidade que vivem comigo; penso na frase do Evangelho na qual Jesus diz: ‘Ide até os confins do mundo... Eu estarei convosco’. O medo passou. Começo a olhá-los, um a um. É como se visse a minha própria humanidade: ferida, necessitada, mendicante. Depois começo com algumas perguntas: ‘Como vocês se chamam? Há quantos anos vocês estão aqui? Quantos anos ainda têm para cumprir?´. Eles me dizem que as penas são muito altas, porque o presídio de Tagucin é uma penitenciária de segurança máxima. O primeiro a responder é um homem que fala com dificuldade e pena para manter a cabeça erguida: dentre todos, é o que mais me impressiona, pela profunda tristeza que seus olhos azuis revelam, e pela cabeça que quase sempre está abaixada. Estou diante de prováveis assassinos, estupradores, ladrões, mas o meu olhar tenta captar a origem daquela tristeza, daquela dor, daquela profunda melancolia que seus rostos revelam. Tal como eu, esses homens desejam a liberdade, a felicidade. Eles, como eu, não podem consegui-las sozinhos; aguardam-nas. Conversamos durante três horas, sobre liberdade, fé, esperança, Cristo... Eu me sentia nu diante deles. Nu porque não podia usar frases, eu tinha que falar de mim e do meu relacionamento pessoal com Cristo como fonte da liberdade que eu vivo, da fé que eu vivo, da esperança que eu vivo. Eu lhes disse que o homem não coincide com seus próprios limites, com seus próprios pecados, que eles [limites e pecados] não são a última palavra sobre a nossa vida. Nós precisamos de perdão e de misericórdia. É essa a origem da nossa liberdade, da nossa esperança. Percebo que só pude balbuciar essas coisas porque Deus se humilhou, abaixando-se até mim. Intuo que, se não consigo todos os dias experimentar esse amor pessoal e totalmente gratuito, fico travado pelos meus limites. Aquele homem que tinha dificuldade para levantar a cabeça agita-se quando me ouve dizer que a fé é o ápice da razão. E começa a contestar, a me fazer perguntas. Algumas em tom polêmico, cético. O assunto é interessante, mas o tempo é curto: já estava na hora de ir embora. Antes que o policial chegasse, cumprimento um a um; me aproximo também dele; apoiando uma mão sobre o seu ombro, peço-lhe que levante a cabeça; ele se alça, eu lhe dou a mão e ele, puxando-me com força, me abraça. Depois me diz: ‘Volte logo, eu o espero’. Nessas palavras – ‘volte logo, eu o espero’ – está todo o sentido da Fraternidade São Carlos”.



Taiwan

Na ilha que não existe

por Emmanuele Silanos


Lin Kuai Min tem 18 anos de idade quando seu melhor amigo morre repentinamente. “Mas se a amizade, inclusive a mais bela, é uma simples ilusão destinada a desaparecer – conclui –, então não vale a pena ser amigo de ninguém”. Assim, decide fechar-se em si mesmo, com a sua dor e a sua raiva. Matricula-se na Faculdade de Línguas, da Universidade de Taipé, para estudar Italiano. Mas não se relaciona com ninguém: senta-se na última carteira e depois da aula volta direto para casa. Seu isolamento prossegue até que Andrea, um professor ligado ao Movimento, puxa conversa com ele. Um dia, convida-o para a Escola de Comunidade. Lin Kuai Min passa a freqüentar os encontros, porque naquele lugar, diz ele, “fala-se de amizade como algo que não acaba nunca. Não me interessam as coisas que morrem”. O terceiro ano da faculdade ele faz na Itália, em Perúgia, e continua a se encontrar com as pessoas do Movimento, até o dia em que padre Paolo Desandré, da Fraternidade São Carlos, o acompanha numa visita a Roma. Quando Lin Kuai Min vê a famosa pintura de Caravaggio, A vocação de São Mateus, fica em silêncio durante meia-hora, com o olhar fixo naquele quadro. Na saída da igreja de São Luís dos Franceses, esse jovem taiwanês olha para Paolo e lhe diz: “Entendi: aquela luz que vai de Jesus a Mateus é a nossa amizade”. Hoje Lin Kuai Min se chama Vincenzo: é esse o nome de Batismo que escolheu para si, há três anos, em homenagem a um outro pintor, Vincent Van Gogh, o único capaz, com os seus quadros, de transmitir a mesma dramaticidade que ele viveu naquele período de grande solidão e desencanto.

As primeiras pessoas do Movimento a chegar a Taiwan foram Maurizio (“Icio”) e Isa, em 1991. Em 1996, começaram a ensinar Italiano na universidade. Foi por meio deles que Giovanna e Simona (esses os seus nomes de Batismo) encontraram a fé e o carisma de Dom Giussani. Depois vieram outros três italianos: Andrea, Cecilia e Valentina. Depois de alguns meses foi a vez de Marco, o professor que ajudou a mudar as vidas de Julie e da sua filha Penny. Enfim, em 2004, Carlo e Pina Corti, com seus dois filhos pequenos.

Nós, da São Carlos, vivemos estavelmente em Taipé desde 2001. Nesses seis anos, nossa história foi uma seqüência de encontros com o povo que vive na “Ilha que não existe”, um país que não pode ser reconhecido politicamente pelo resto do mundo e que corre o risco contínuo de sofrer um ataque militar por parte da China, a pátria-mãe que não aceita nem mesmo a hipótese de uma independência formal da ilha. Um país no qual convivem as milenares tradições familiares chinesas e os novos ideais propostos pelo mundo ocidental e consumista. Moramos na periferia, numa paróquia imersa num dos mais típicos bairros chineses, fervilhando de gente barulhenta e que não pára nunca, e por isso o pároco, padre Paolo Costa, é obrigado várias vezes a recomeçar o catecismo do ponto inicial. Estamos presentes na universidade, onde dois de nós – padre Paulo Costa e padre Paolo Cumin – lecionam Italiano. Por esse motivo, eu fui transferido para cá, e decidi iniciar o longo caminho de aprendizado do Chinês. Estamos ultimando a árdua tarefa de traduzir O senso religioso, de Dom Giussani, para a língua deste povo, para testemunhar Cristo também para esta gente, que vive às portas do mais misterioso e impermeável país do mundo; o Cristo que é a resposta às demandas do coração de cada pessoa, presente agora nos sacramentos e na comunidade eclesial. Sempre nos surpreende o quanto isso é verdade: há um mês, a Escola de Comunidade na casa de Carlo e Pina, Steve, 50 anos, nosso amigo há mais de dois anos, nos disse que gostaria de receber o Batismo. E Naomi, jovem mãe japonesa, iluminou-se: “Eu também quero, para mim e para os meus dois filhos. Porque a amizade com vocês me curou, e esse é o primeiro milagre que Jesus fez em minha vida”.



Chile

Nas pegadas do rei

por Marco Aleo


Caríssimos, desta vez gostaria de lhes contar algo sobre a escola na qual leciono. Um dia, fiz aos meus alunos algumas perguntas, que preparei junto com o padre Martino. A primeira era esta: “O que você espera deste ano?” As respostas seguiram todas esta linha: “Quero passar de ano, quero me comportar bem”. Todas intenções voltadas para o futuro. E o presente, onde estava? O desejo de ter uma vida plena hoje, que fim levou? Será que, sob o estímulo do ambiente cultural, a máxima aspiração seja simplesmente a de se tornarem ‘boas pessoas’? A outra pergunta era uma provocação: “Que diferença existe entre o que quero ser e quem quero ser?” Chegamos a falar da promessa de todo início de qualquer aventura. Vem à mente a lição de Henrique V, antes da batalha: “Tudo está pronto se o coração estiver pronto”. A descoberta do próprio coração é decisiva. Aos treze anos de idade, com a vida toda pela frente, não se pode partir com tamanha redução do desejo. Assim, surgiu espontânea a outra pergunta: “O que é o coração?” Um rapaz acha que tem a resposta exata: “O órgão que faz o sangue circular nas veias”. Chegamos à conclusão de que o nosso coração, hoje, deseja a felicidade, a plenitude do amor, a beleza. Depois, prosseguimos com outras questões. Pergunto-lhes se já ficaram tristes. No final, uma conclusão: a tristeza é sinal de que desejamos ser felizes. Mas isso não me basta e continuo a provocá-los: “Será que ser feliz quer dizer não ter problemas?” E continuo: “Vocês já viram alguém que era feliz, mesmo tendo problemas? Alguém capaz de atravessar os problemas?” Com essa pergunta e com o fervor das respostas, concluiu-se a aula, que foi um acontecimento para mim. Não posso prever o que vai acontecer, mas posso preparar essas aulas. É um trabalhão, pois na classe tenho 46 adolescentes, todos na faixa dos treze anos! Mas apontar para o conhecimento de si mesmo é o ponto de partida privilegiado para se chegar a Cristo. Porque é a partir desse conhecimento que se acende o interesse pela realidade, que nasce o compromisso com ela. Veremos o que acontecerá. De qualquer modo, pretendo continuar por esse caminho, eu o acho bastante adequado. Saudações a todos.



Alemanha

Emergência Educativa

por Gianluca Carlin


Caríssimo padre Massimo, desde a metade de novembro a situação nas escolas alemãs está se tornando cada vez mais dramática. Em Esmerdetten, um jovem, depois de ter atirado contra seus ex-colegas e professores, tirou a própria vida com um tiro. Não é a primeira vez que isso acontece. O país todo ficou chocado, inclusive porque se descobriu que esse jovem havia simulado em seu computador, durante meses, esse evento, treinando os procedimentos por meio de um videogame. No nível político nasceu um debate muito aceso. A conclusão foi a mais simples possível: declarar o estado de emergência, fechar muitas escolas ou continuar a dar aulas normalmente, mas com as portas trancadas. Depois de um certo tempo, uma outra notícia contribuiu para espalhar o pânico: um outro jovem, sempre pela internet, estava se preparando também para uma chacina. O terceiro episódio verificou-se justamente na nossa cidadezinha: um estudante, de arma em punho, ameaçou disparar contra um professor. Tinha um revólver de brinquedo, mas isso só se descobriu depois. Episódios como esses nos fazem refletir sobre a educação, tema sobre o qual todo mundo fala. Alguns intelectuais escreveram nos jornais que só nos resta resignar-nos com uma situação que já está fora de controle. Em nossa casa, conversamos longamente sobre como responder a essa emergência. No final, decidimos organizar um encontro sobre o tema, justamente no recinto de uma escola e não na paróquia, como se pensou inicialmente. Compareceram cinqüenta professores e muitos pais. A intervenção de um deles me impressionou bastante. Suas palavras: “Discutir sobre educação é perda de tempo se não soubermos para onde queremos ir. Eu, pessoalmente, não sei”. Foi justamente a essa objeção e ao implícito pedido de ajuda – tão trágico quanto honesto – que quisemos dar uma resposta. Por outro lado, esses dramáticos acontecimentos são uma grande possibilidade de recomeçar, unindo-nos a esses professores.



Roma

Uma toalha para a eternidade

por Emmanuele Silanos


Todo sábado à tarde, um grupo de seminaristas vai visitar um asilo no bairro da Magliana, em Roma. A seguir, o testemunho de um deles.

“Como está, dona Lina?” “Meio lá, meio cá”. Ela tem 96 anos de idade e responde sempre assim. Com uma pincelada, descreve a vida na casa de repouso, onde tudo transpira precariedade. Para esses idosos, cada instante pode ser o último. Eles sabem disso, inclusive os menos lúcidos. E isso é muito triste. Sobretudo para quem, como a maior parte deles, está sozinho. Para todos os homens, a vida pode ser interrompida a qualquer momento. Mas ninguém fica pensando nisso. Todos morrem e todos os relacionamentos são destinados a acabar. Então, seria uma ilusão essa tensão que existe em nós, que nos leva a amar os nossos irmãos? Não. Porque nós, na Terra, vemos apenas o início do relacionamento. Mas ele continuará no Paraíso. Lá nos veremos todos de novo e estaremos juntos para sempre. É uma certeza libertadora.

No Paraíso reverei Giuseppina, que não mais encontrei depois das férias. Poderei também abraçá-la, ela que tinha medo de que alguém se aproximasse dela. Passou na cama os seus últimos sete anos de vida. Nunca a vi reclamar. Preferia me falar de sua provisão de doces, que guardava em local seguro, sob o travesseiro (no verão, a barra de chocolate derretia e sujava toda a roupa de cama). Agora, tenho certeza, está orando por mim e pela minha vocação. Eu também rezo todos os dias por ela, para que o Senhor a tenha junto de Si. E rezo por Dante, por Jone e pela fantástica Concetta, que agora, com a sua coleção de papel higiênico numa sacolinha de plástico branca, passeia pelos corredores do Céu.

Nesse lugar aprendi que só se pode amar o que não dura em nome de algo que dura para sempre, e entendi que o sofrimento tem valor. Os doentes, as pessoas sofredoras, são o Cristo em pessoa, Cristo que morre na cruz por mim. Deus pensou o mundo assim, ligando entre si todas as nossas vidas. Nesse desígnio, os velhinhos têm uma missão especial. Uma delas tem plena consciência disso. Ela se chama Anna e tem uma doença que a impede de ficar parada, como se tivesse dentro de si uma mola. No entanto, está sempre sorridente, pronta para ajudar os outros. Junto com Giulia, foi a alma do bazar beneficente feito para coletar ajuda para os pobres de Moçambique. Uma frágil senhora doente, recolhida numa casa de repouso, que vive a responsabilidade com o mundo todo. Seus olhos brilham sempre, como se tivesse um íntimo e luminoso foco de alegria. Nossos superiores nos repetem sempre que toda pessoa, até o último instante da sua vida, é digna de receber o anúncio de Cristo. Então nós, sempre que há a possibilidade, falamos de Jesus, do nosso relacionamento com Ele, da vida em seminário. Eles nos ouvem atentamente.

Pedi a Fernanda, que sempre reclama da doença nos ossos, que fizesse uma prece por mim toda vez que lhe viesse a vontade de reclamar. Ela ficou toda feliz e escreveu essa nova intenção num papel. Creio que o perdeu no minuto seguinte. Mas o Senhor viu tudo e se lembrará do propósito dela. Como também não se esquecerá do tempo que ela gastou costurando uma toalha de crochê para o nosso altar. Ela trabalhou durante todo o verão, e depois me mostrou a sua obra-prima. Ela não prestou, assim, um serviço ao Senhor? Será que não estava se preparando para o encontro com Ele? No fundo, nossa vida só vale por essas coisas. O Senhor nos dá a velhice para que a gente tome consciência disso.

 


FRATERNIDADE E MISSÃO

Fraternidade e Missão é o jornalzinho mensal da Fraternidade São Carlos e relata os desafios que os seus sacerdotes enfrentam nas diversas partes do mundo: Europa, Rússia, Estados Unidos, América Latina, Taiwan. Em agosto, por ocasião do Meeting de Rímini, o jornalzinho se renova na gráfica: oito páginas, todas coloridas. O centro do jornal são os testemunhos de vida das casas da Fraternidade e das pessoas que eles vão encontrando.

Para maiores informações visite o site: www.sancarlo.org