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Passos N.82, Maio 2007

EXPERIÊNCIA – Brasil/ Milão

Viver a fé apaixonadamente

por Ana Lydia Sawaya

De 19 a 23 de março de 2007, foi realizado, em Bogotá (Colômbia), um encontro de preparação ao 5º Celam, sobre o tema da missão. Do grupo de apenas doze pessoas, participou Ana Lydia Sawaya, uma das responsáveis de CL no Brasil. A seguir, a primeira parte de sua colocação no evento, cujo título era: “A verdadeira ação missionária: o encontro com pessoas que Cristou mudou e a convivência em uma comunidade cristã”

Minha abordagem a este encontro sobre a missão nasce da experiência que vivo e do que aprendi a partir do pertencer ao Movimento Comunhão e Libertação. Assim, gostaria de falar a partir da experiência de quem é leigo, encontrou um movimento essencialmente leigo e vive sua missão dentro do ambiente leigo; no meu caso, na universidade e no trabalho para a erradicação da fome, desnutrição e obesidade no Brasil e no mundo. Conheci o Movimento por meio de um colega de classe que me convidou, insistentemente, para participar de encontros entre universitários e de missas que aconteciam na minha universidade. E fiquei, sobretudo, por ter me apaixonado pela experiência de “caritativa” que o Movimento realizava na cidade de São Paulo com crianças moradoras em favelas.

Conto esta experiência para dizer que a missão no mundo atual precisa ser pró-ativa e encontrar as pessoas no seu ambiente de estudo ou trabalho e dedicar-se, sobretudo, aos jovens. Para mim, é muito claro que a estrutura da paróquia, que, de certa forma, espera “passivamente” o fiel vir até ela e cuja vida acontece em momentos “fora” da vida normal, é insuficiente para a missão católica no mundo atual. Pode haver paróquias com mais ou menos vida comunitária, com diversos grupos e iniciativas para ajuda em vários aspectos da vida, dependendo da vitalidade do pároco. Mas a estrutura paroquial não possui meios estáveis para uma presença, durante a semana, no mundo do trabalho, da escola, das universidades, onde as pessoas vivem a maior parte das suas vidas hoje em dia. Eu nunca teria encontrado e entrado na Igreja Católica se não houvesse na minha faculdade um grupo de estudantes católicos que se reunia semanalmente e se envolvia ativamente em trabalhos sociais e culturais, não só falando sobre as coisas de Deus e da nossa vida de estudantes, lendo textos ou discutindo, mas trabalhando juntos nas favelas de São Paulo, onde pude aprender a gratuidade, a condivisão, o abrir os horizontes e não cuidar só de mim e do meu namorado. Acredito que sem a presença real, dialógica, explícita, pró-ativa no ambiente em que vivemos – escola, faculdade, trabalho –, não podemos falar verdadeiramente de missão hoje. Ao dizer isso, não desejo colocar o movimento de ambiente em contraste com aquela estrutura original que é a paróquia. Mas para uma missão efetiva que chegue a todas as pessoas, a presença no ambiente onde o indivíduo é mais impressionado e onde sofre mais influências, é fundamental.
A presença no ambiente permitirá, assim, o reflorescimento do local onde o católico cresce, recebe o catecismo e os sacramentos.

Olhando ainda para a minha experiência, posso dizer, com segurança, que se apoiar, gastando muita energia e recursos, nos meios de comunicação de massa para a evangelização do mundo atual é, da mesma forma, insuficiente.

Dom Giussani nos diz que “a consciência existencial do que é a fé, e, portanto, do que é Cristo; a descoberta viva do valor de nossa unidade, de nossa comunhão, ou seja, do que
é a Igreja, não são fruto de um raciocínio e nem de um estudo. São, sim, fruto de um encontro. Encontro significa o acontecer do relacionamento com uma pessoa ou com uma realidade comunitária, para nós tão ricas de autenticidade, que nos sentimos atingidos como que por uma luz e atraídos a uma vida diferente e mais verdadeira. Nesse encontro, o valor de toda a fé e da realidade histórica da Igreja começam a aparecer de maneira concreta, não abstrata ou teórica, de maneira real, a tal ponto que provoca a nossa pessoa a dar uma resposta total. Porque, quando a pessoa é realmente provocada, sente a totalidade de sua vida posta em jogo. Se não for assim, se não se tratar da totalidade, não se trata ainda da descoberta da fé, mas simplesmente de um conhecimento e de uma prática de formas religiosas. Pode-se dizer, paradoxalmente, que o cristianismo não é uma religião, mas uma vida” (in Giussani, L. Em busca do rosto do homem, Companhia Ilimitada, São Paulo, 1996, pp. 159-160).

Há uma ânsia em quem se preocupa em criar estratégias de evangelização, procurando conquistar as massas rapidamente, refém do estilo das igrejas “evangélicas”, que, a meu ver, esconde um ceticismo sobre o próprio agir de Cristo no mundo e na Igreja. É como se Cristo tivesse “perdido a parada” nestes tempos. Fixar os olhos nos métodos das outras igrejas parece uma atitude subserviente ao método das outras igrejas, ao mesmo tempo em que revela um desconhecimento da tradição católica. Arrebatar massas nunca foi o método cristão, é o encontro pessoa a pessoa, o tocar a veste de Cristo, o “mas Pedro, você me ama mais do que estes?”. Os movimentos eclesiais que mais cresceram no mundo nas últimas décadas, trazendo grande número de vocações e obras, não se apoiaram nos meios de comunicação de massa; estes são, na verdade, apenas coadjuvantes. Um trecho muito interessante do Cardeal convertido J.H. Newman (Historical Studies, II) conta como São Bento difundiu o cristianismo na Europa: “São Bento encontrou o mundo social e material em ruínas, e a sua missão foi a de recolocá-lo em ordem, não com métodos científicos, não com meios naturais, não se obstinando na pretensão de fazê-lo dentro de um tempo determinado ou fazendo uso de um remédio extraordinário ou por meio de grandes empreendimentos; mas de um modo tão calmo, paciente, gradual, que com muita freqüência se ignorou este trabalho até o momento em que ele se via terminado. Tratou-se de uma restauração, mais que de uma obra caritativa, de uma correção ou de uma conversão. O novo edifício, que ele ajudou a fazer nascer, foi mais um acréscimo que uma construção. Homens silenciosos, que não eram vistos, ficavam sentados no frio do claustro, cansando os olhos e concentrando a sua mente para copiar e recopiar penosamente os manuscritos que eles haviam conservado e outros homens silenciosos eram vistos no campo ou avistados na floresta: escavando, desterrando e construindo. Nenhum deles protestava, nenhum se lamentava, nenhum chamava a atenção para aquilo que fazia, mas aos poucos os bosques pantanosos se tornaram eremitério, abadia, casa religiosa, seminário, escola e por fim cidade”. Essa “restauração” é muito diferente dos movimentos evangélicos de conversão em massa, arrebatamento entusiasmado, que pelas estatísticas mais recentes, mostram uma adesão passageira, não profunda, nem estável, como nos indicam o grande trânsito entre as igrejas.

Essa maneira nova de viver as relações humanas com todas as pessoas, mas antes de tudo, com aquelas que fizeram o encontro como ela, gera a comunidade cristã. Assim, a experiência do encontro permanece e se aprofunda, necessariamente, numa experiência de comunidade. Só pode perdurar, crescer e se aprofundar num caminho de santidade (pois esta é a razão última da proposta de Cristo e a experiência suprema da felicidade, liberdade, justiça, verdade, amor que existe como urgência no coração de todo ser humano), se a pessoa for colocada em um lugar de humanidade diferente cuja regra fundamental é a caridade. “Isso faz com que a comunidade que surge seja fonte de iniciativas sem limites. Estas produzem um pedaço de humanidade mais desejável, no qual, por exemplo, o nascimento de um filho é motivo de alegria e celebração de todos, o casamento de duas pessoas é motivo de festa para a comunidade, ou então onde os doentes são socorridos, ou o despejo de uma família cai sobre os ombros de toda a comunidade, nos limites do possível e da liberdade de cada um. O mundo e a sociedade mudam por meio de realidades humanas já mudadas” (in Giussani, L. Em busca do rosto do homem, Op. cit, p. 161). Quando o cristão está inserido em uma comunidade cristã, a fé investe o sujeito inteiro e determina assim toda a ação da pessoa.

O caminho para a missão católica verdadeira é, ao nosso ver, o encontro com Cristo por meio do encontro com pessoas vivas, mudadas, fascinantes que vivem em uma comunidade cristã. É, portanto, necessária a convivência em uma comunidade que nos ensina a viver a gratuidade. Só no relacionamento com pessoas reais a quem podemos seguir na vida cotidiana, e com quem vivemos cada aspecto da vida, podemos realizar o objetivo pelo qual Cristo veio ao mundo. A urgência dos tempos atuais é tal que não podemos nos satisfazer com respostas parciais.

Por isso, seguindo sempre a experiência de Comunhão e Libertação, falar de missão me leva, mais do que pôr o acento sobre as estratégias e métodos missionários, ou mesmo sobre as características da pessoa – objeto da ação missionária –, a pôr o acento sobre mim, sobre nós, sobre a urgência de mudança do meu eu, sobre a experiência de fascínio por Cristo que nós que estamos aqui, o clero e os fiéis que vão à missa, vivem ou não. A verdadeira atividade missionária é reacender o fogo no meu coração que virou brasa – é mover o centro do nosso eu, do eu de cada um de nós. Padre Julián Carrón, no encontro que tivemos em Bogotá, em março de 2006, dizia: “Hoje nós somos mais conscientes da verdadeira natureza da crise. Não basta falar de Nova Evangelização sem perguntar-se sobre o sujeito que a levará a cabo. Seria ilusório dar isso por óbvio, pois são tantos os homens e as mulheres latino-americanos que acreditam já saber o que é o cristianismo e não têm curiosidade alguma em conhecê-lo. Por isso não é suficiente uma estratégia propagandista para atraí-los para a fé, nem sequer ter um pouco mais de formação ou de vida interior. É necessário começar a despertar o interesse por Jesus Cristo e seu Evangelho. Esta tarefa é especialmente árdua nos dias de hoje, pois são já muitas as pessoas que pensam que conhecem o cristianismo ou o confundem com uma vaga religiosidade”.


Desafios atuais: o despertar do eu e o cristianismo como acontecimento

O niilismo que acontece hoje é o niilismo festivo, no sentido de que carece de inquietude. Poder-se-ia defini-lo como tentativa de superação do inquietum cor meumagostiniano agostiniano. Este é o desafio que temos diante de nós: como despertar a pessoa desse letargo em que se encontra para que se interesse por algo e não morra de inanição. O eu do homem está todo presente e, portanto, não cede ao niilismo, quando se sente envolvido pela presença de algo que o interessa totalmente. A questão é que o mistério de Deus enquanto permanece obscuro, não é bastante claro, concreto, para atrair a totalidade da pessoa. “Somente Deus corresponde à exigência de totalidade que o coração humano tem. Uma vaga religiosidade não é capaz de despertar a pessoa. O exemplo mais evidente são as seitas, que não conseguem despertar a razão e a liberdade do homem que participa delas até o ponto de gerar uma mentalidade e afeição novas” (J. Carrón, Bogotá, 2006). Um exemplo dessa dificuldade para despertar o coração, ao nosso ver, é a crise de tantas escolas católicas para educar os jovens. Essa crise revela a ruptura generalizada, na educação católica, entre os desejos do coração e Cristo. A educação católica começou a ruir, e os jovens a fugirem da Igreja quando o catolicismo foi sendo reduzido, do ponto de vista educativo, à ética, normas, preceitos, proibições, formas de comportamento e a Igreja foi tendo “vergonha” de falar de Cristo, como disse Dom Giussani em entrevista pelos 50 anos de CL, em 2005. A dificuldade de enfrentar, com o jovem, de forma racional e interessante, a questão “Cristo pode responder, completamente, ao anseio que grita no meu coração agora?” mostra bem o desvio da ontologia à ética. Assim, antes de mais nada, o gesto missionário precisa partir do despertar do eu, do interpelar o coração que espera, inevitavelmente, pela sua plenitude.

O outro grande desafio para a missão hoje é a necessidade de se retornar ao cristianismo como acontecimento. “Basta dar-se conta da surpresa que cada um de nós experimenta diante de alguém para quem Cristo é real. É tão surpreendente como a primeira vez. Os evangelhos nos deixaram o admirável testemunho da maravilha que despertava o encontrar com um homem que ‘falava com autoridade’, e não como os escribas. Era esta maravilha que os levava a afirmar: ‘nunca vimos coisa igual’. Essa falta de experiência pessoal do acontecimento cristão dificulta sua compreensão. Afirmar as verdades da fé sem ter sido tocados pelo fascínio das realidades celestes significa tomar estas verdades em um sentido que não é o mesmo com que Deus as afirma” (J. Carrón, Bogotá, 2006).

Há uma diferença infinita entre o anúncio de uma pessoa apaixonada por Cristo, que vive o relacionamento com Ele vivamente e o daquele que passa aos outros noções de vida cristã. O cristianismo não é ouvir uma frase verdadeira, mesmo que a frase seja verdadeira, mas é algo que acontece, algo que faz exultar de alegria, que exulta o coração. Toda a questão do anúncio depende se há ou não algo que está me fascinando agora. A verdadeira questão “missionária” recai sobre o sujeito que anuncia: o meu coração está vibrando por alguma coisa agora? É só a presença dessa vibração no coração do sujeito que anuncia Cristo que permite a missão de forma verdadeira e o envolvimento totalizante da vida do outro. Há uma diferença infinita entre a ânsia, a preocupação estratégica, o voluntarismo missionário, e a experiência de, por exemplo, como contava Dom Giussani, subir num trem e experimentar piedade por todas aquelas pessoas ali: “Mas como você faz quando sobe no trem – partícipe de Cristo, membro de Cristo como você é – como pode ficar indiferente diante de todas aquelas pessoas ali? Não é possível! ‘Mas o que eu posso fazer?’ ‘Faça aquilo que você pode, pede a Deus por eles’” (L. Giussani. Tu, o dell’amicizia, Bur Rizzoli, Milão, 1997, p.159). A verdadeira missão é o acontecimento de uma piedade para com todos os homens, uma simpatia, um ímpeto de amizade para com quem você não conhece. “O que toca o outro é uma atenção a uma necessidade humana particular que ele tem. Basta isso para derrubar muros. Por isso tudo depende de como você olha o outro. Porque as pessoas percebem se você as olha por um interesse teórico, abstrato, ou então sentimentalmente (por um gosto seu), ou ainda por um seu poder sobre elas. O modo como você fala, o seu tom de voz, o modo como você as olha, isto é, o seu comportamento revela se o fascínio por Cristo e a piedade para com o destino delas acontece em você” (cf. L.Giussani, Dal temperamento un metodo, Bur Rizzoli, Milão, 2002, pp. 335-336).