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Passos N.80, Março 2007

IGREJA - Celam / Entrevista com Dom Filippo Santoro

A hora de Aparecida

por Alver Metalli

De 13 a 31 de maio será realizada a V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, no santuário de Nossa Senhora Aparecida, no Brasil. O encontro contará com a presença de Bento XVI. Diálogo com o bispo de Petrópolis


Pedro II, sentado, a mão apoiando o rosto, observa pensativo a movimentação do povo na praça fronteiriça, a ele dedicada. As agulhas das torres da catedral perfuram o véu de neblina; é surpreendente encontrar aqui um neogótico dessa dimensão; no entanto, a catedral de Petrópolis, a cidade imperial, ostenta-o em toda a sua plenitude, apesar da fundação teotônica da cidade, devida ao colono Julio Koeler e aos seus colegas da Renânia e Westfália (Alemanha), no início do século passado. O Rio de Janeiro está logo abaixo. Também não está longe a cidade de Aparecida: algumas horas de ônibus, e o coração do Brasil católico se apresenta ao visitante, ostentando de imediato o gigantesco santuário, que disputa o primado do número de peregrinos com o santuário de Guadalupe, no México. Mas Bento XVI não percorrerá esse trecho de estrada. Ele passará primeiro por São Paulo, onde rezará uma missa campal para milhares de pessoas, que de outro modo acorreriam em massa até a cidadezinha de Nossa Senhora, transtornando a rotina diária dos seus 35 mil habitantes.

Em Aparecida acontecerá, de 13 a 31 de maio, a V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Evento para o qual Dom Filippo Santoro, Bispo de Petrópolis, membro da Conferência episcopal brasileira, dedica toda a atenção. “Gostaria que a Conferência evidenciasse com força e clareza, inclusive conceitual, que é possível fundar uma verdadeira experiência cristã, tanto no contexto urbano das cidades brasileiras como nas favelas e nos ambientes de estudo e de trabalho”, diz ele.

Por que esse aceno ao contexto urbano?
Porque a apatia religiosa da população dos núcleos urbanos e o persistente fenômeno da pobreza nas periferias – onde se verifica a perda maior de católicos, que migram para o protestantismo pentecostal – estão entre as principais manifestações vividas hoje pelo Brasil. Aí é que é preciso comunicar o encontro com Cristo como um evento que dá esperança, certeza e significado à vida.

Além disso, o que mais se espera dessa reunião de cúpula em Aparecida?
Não há um “além disso”. Haverá um aprofundamento disso que acabei de dizer, isto é, uma recuperação do essencial, dos elementos-base de uma experiência de fé em que a pessoa possa encontrar-se a si mesma, esperar, agir numa perspectiva de mudança verdadeira da realidade. Visitando as favelas, mas também as paróquias e muitos outros lugares da diocese de Petrópolis, constato que essa é a principal carência: uma experiência de Igreja, de comunidade, de comunhão imersa na vida do povo. Essa experiência, quando existe, oferece os recursos para se reconstruir um tecido humano destruído por tantas formas de individualismo e de consumismo. Se for o caso, incluo também a palavra “missão” ao que já disse: é uma palavra que sintetiza uma dimensão importante para toda a América Latina e para o Brasil em especial.

Há alguma experiência, alguma coisa que, na sua diocese, evidencie esse movimento na direção que o senhor indica?
Em vários pontos de Petrópolis lançamos a missão popular diocesana. É um encontro sistemático com todas as realidades e pessoas que vivem no território da diocese. Digo sempre que devemos passar de uma “pastoral do banco” – onde tudo se reduz a estar sentado no banco da igreja – para a “pastoral da missão”.

Qual o objetivo dessa missão popular?
Que a fé forme personalidades cristãs adultas. Quando a pessoa é mandada para a missão, as razões da fé se aprofundam e se fortalecem. Os que são encarregados de visitar as casas, as famílias, se dão conta dos problemas reais, enfrentam situações difíceis, precisam compreendê-las, compartilhá-las, gerar respostas. A missão é um grande momento de crescimento pessoal e das comunidades.

E o que se espera da visita do Papa?
O contágio da sua fé, forte, simples e imediata. O tipo humano brasileiro é muito sensível e percebe logo a presença do Senhor na expressão amável e segura do Papa. A imagem de Bento XVI, aqui, mudou um pouco: era aquela do guardião da fé, do defensor ferrenho da ortodoxia. Depois desse primeiro momento, em que sobretudo alguns meios de comunicação o pintaram como o defensor da restauração doutrinária, veio um outro momento, caracterizado por um interesse e uma expectativa cordial. O povo comove-se com sua amabilidade, com sua confiança, com o modo como fala da fé e do cristianismo, como algo grande, belo, entusiasmante. Seus discursos, suas intervenções, geraram um verdadeiro movimento de simpatia em relação a ele.

O senhor prevê, então, um benefício para a Igreja brasileira enquanto tal?
Tenho certeza de que o Papa nos ajudará a insistir menos em certos aspectos analíticos da realidade – as contradições da pós-modernidade, a análise da pobreza, os efeitos deletérios da globalização, e assim por diante – e nos ajudará a enfatizar o conteúdo central da fé: a ressurreição de Cristo, que continua a acontecer no presente.

Se observarmos os outros compromissos do Papa nestes últimos meses – como a viagem à Alemanha, o encontro com a Igreja italiana reunida em Verona, a viagem à Turquia – pode-se prever que, também no Brasil, o Papa não perderá a ocasião de falar da identidade latino-americana, de recolher as reflexões feitas nesses meses de preparação, mas também de dizer o que mais o preocupa no momento.
É o que nós, Bispos, desejamos. Na experiência eclesial brasileira nos defrontamos com uma variedade muito grande de fenômenos, às vezes contraditórios entre si: explosão de religiosidades desordenadas; retorno de abordagens sociológicas ultrapassadas, junto com outras positivas; uma unidade mais cordial no seio da hierarquia; uma reflexão teológica mais centrada; em meio a tudo isso – fenômenos positivos e outros equivocados – uma palavra clara é essencial. Tenho também a impressão de que o Papa colocará uma certa ênfase na identidade latino-americana, porém conectando-a firmemente com o núcleo central do anúncio de Cristo, que constituiu a “maior mutação” jamais ocorrida na História, o “salto decisivo” rumo a uma dimensão de vida “profundamente nova”, como ele disse à Igreja italiana recentemente.

O Brasil demonstrou muito afeto por João Paulo II. Será assim também com Bento XVI? Os brasileiros não sentem saudade de seu predecessor?
Saudade de João Paulo II existe, é claro, mas ela não se apresenta como alternativa a Bento XVI, de quem – repito – está se consolidando uma imagem diferente. A idéia que toma corpo é que, se se quiser seguir as pegadas do Papa Wojtyla, é preciso seguir os passos do Papa Ratzinger.

Está começando o segundo mandato do presidente Lula. Será igual ao primeiro?
Estou convencido de que se Lula quiser terminar o segundo mandato deixando uma marca forte na História, deve mudar.

O quê, na sua opinião?
No primeiro mandato presidencial ele teve que afastar as pessoas do seu próprio partido, o PT, das posições de comando, por envolvimento com gravíssimos fatos do ponto de vista moral, que em qualquer outro país teriam provocado o impeachment presidencial. Ele se salvou pelo seu prestígio pessoal, pela fama de presidente operário, pelo carisma que tem.

As coisas que ele anunciou no início do segundo mandato, os gestos feitos, vão nessa direção apontada pelo senhor?
Lula está dando sinais de que não quer restringir o seu governo apenas aos membros do seu partido. Está tentando estabelecer novos contatos, valorizar novas experiências, e isso é certamente positivo.

Inclusive para a Igreja?
Inclusive. Afastando-se do núcleo-duro do Partido dos Trabalhadores, atenua-se aquela orientação segundo a qual tudo tem que passar pelas instâncias do Estado. Porém, em relação a outras coisas, como os temas morais, há o risco de um desvio: o casamento entre homossexuais, a experiência com células-tronco embrionárias, a própria questão do aborto. Ele havia prometido aos Bispos, durante uma visita, que jamais assinaria qualquer documento que fosse contrário aos princípios da Igreja católica. Não foi exatamente o que aconteceu, porque o documento sobre as células-tronco embrionárias, ele o assinou. Talvez se possa dizer que o aspecto mais ameaçador, o do estatismo, pode ser superado com a ampliação dos consensos; os outros aspectos, de natureza mais ética, serão cobrados pelas forças da sociedade, na qual a Igreja brasileira – e Lula sabe bem disso – é determinante.

O senhor fez um aceno ao protestantismo pentecostal. A onda das seitas evangélicas continua a crescer ou há sinais de saturação?
Continua a crescer, mas com intensidade menor. O aspecto mais relevante, nestes últimos anos, é a migração interna, de uma confissão religiosa para outra, e daí também cresce o número daqueles que se declaram sem religião. Depois de terem passado do catolicismo para a Assembléia de Deus, para a Igreja Universal do Reino de Deus, ou outras denominações, muitas pessoas estacionam numa espécie de limbo, ou então retornam, em alguns casos, à Igreja católica. Esse é um dos frutos da missão popular, fruto de uma Igreja que Bento XVI está vindo visitar.

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CELAM


Trecho da carta de Bento XVI ao presidente do Conselho Episcopal Latino-americano, por ocasião do 50º aniversário da instituição do Conselho.

Pio XII, atendendo ao desejo expresso pela Conferência Geral dos Bispos Latino-americanos, reunidos no Rio de Janeiro de 25 de julho a 4 de agosto de 1955, instituía o Conselho Episcopal Latino-americano (Celam), com o objetivo de apoiar a obra pastoral dos Bispos e, ao mesmo tempo, dar resposta aos graves problemas da Igreja na América Latina. Em mais de meio século de existência, o Celam ofereceu a sua ajuda aos Episcopados dos países da América Latina, contribuindo para que se enfrentasse, em harmonia de esforços e com espírito eclesial, os desafios do subcontinente latino-americano e empenhando-se, no seio da comunhão episcopal, para revigorar o que, no curso dos anos, passou a ser chamado de “nova evangelização”. O Celam animou intensamente a obra do Episcopado latino-americano, a fim de que testemunhe o que significa ser fiel discípulo de Cristo e alimente a própria fé na escuta da Palavra de Deus. Desde sua fundação, o Celam foi chamado a oferecer uma ajuda especial à promoção das vocações, a fim de que sejam numerosas e santas.

Cidade do Vaticano, 14 de maio de 2005

As Conferências Gerais dos Bispos Latino-americanos se realizaram: em 1955, no Rio de Janeiro; em 1968, em Medellín; em 1979, em Puebla; em 1992, em São Domingos.