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Passos N.77, Novembro 2006

DESTAQUE - BENTO XVI

Redescobrir a amplitude
da razão

por Pigi Colognesi

É o desafio que o Papa lançou a todos, com o discurso na Universidade de Regensburg (Alemanha), sendo atacado por ambientes islâmicos, tanto quanto ignorado pelo mundo intelectual e universitário ocidental, que fingiu nada ter ouvido. A palavras de Bento XVI são um corajoso ato de apreço da razão, há muito tempo “aprisionada”, e um apelo a se restaurar o seu uso correto. E também um testemunho solar da racionalidade da fé católica: a experiência de uma relação racional com Deus a partir das exigências de verdade, beleza, justiça e felicidade que habitam o coração de cada homem. Até o momento do encontro com um Fato que provoca a razão a sair da prisão em que é continuamente tentada a permanecer. Nas páginas seguintes algumas contribuições

É inútil, professor – ouviu Dom Giussani no início da sua primeira aula, em 1954 – , o senhor vir nos falar de religião”. “E por quê?”. “Porque para falar é preciso raciocinar, o senhor precisa usar a razão; usar a razão para a fé é inútil, porque são duas linhas retas que não se encontram nunca: a razão diz uma coisa, e a fé diz outra. São dois mundos diferentes!”.
Desde esse distante início – ainda que implícito – de Comunhão e Libertação (CL), está claro que a verdadeira questão, para o cristianismo dos nossos tempos, não é, antes de tudo, a fé, mas a concepção de razão. Não por acaso, o Meeting de Rímini 2006 fez desse tema o seu foco central.
Retomemos, então, com calma e estudemos com atenção esse maravilhoso hino à razão que é o discurso de Bento XVI na Universidade de Regensburg, no último dia 12 de setembro (ver p. 43 desta edição). Estas notas não pretendem, certamente, elaborar um resumo do discurso. Nem mesmo um comentário. Só destacar alguns pontos básicos, para que não se perca o essencial e, depois, cada um tente aprofundar nos textos da nossa história as consonâncias e os esclarecimentos necessários.

A universidade
Dirigindo-se a um público acadêmico, Bento XVI quis introduzir o seu tema principal – a harmonia entre fé e razão – justamente com um juízo sobre o que deveria ser a universidade: o lugar onde, para além das especializações, cada um trabalha “no todo da única razão”, constituindo justamente uma universitas. A universidade, porém, parece ter renunciado à sua “universalidade”. Isso não se deve tanto à multiplicação das competências específicas, mas sobretudo – o que se verá mais adiante – a uma concepção redutiva da razão, uma razão que não busca mais o todo, mas se contenta em cultivar especialistas vesgos. Mas isso não é mais razão; é um aleijão dela.

A natureza de Deus
Nessa passagem (que acabou inflamando as praças islâmicas), a frase central – segundo as palavras de Bento XVI – foi a seguinte: “Não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus”.
Por que isso é tão importante? Antes de tudo, porque condena qualquer “patologia” violenta no uso da religião. Mas, sobretudo, porque indica a possibilidade de a razão humana – quando é corretamente usada – “descobrir” Deus. Entrando em relação com a realidade, a razão é levada, por sua própria natureza, a interrogar-se sobre o significado, a ler o real como “sinal” do mistério de Deus. Essa dinâmica – chamada justamente de “dinâmica do sinal” – seria impraticável se entre a nossa razão e o agir de Deus não houvesse uma “analogia”. Em outras palavras, como Deus, que é “absolutamente transcendente”, está também presente na realidade, ou seja, não está totalmente separado dela, a nossa razão pode captar a existência dEle.
Claro, a face do Mistério continua misteriosa para a razão. De fato, a fé desabrocha como uma flor imprevisível (a revelação mesma de Deus) no tronco de uma razão não mutilada. Bento XVI usa, para indicar essa capacidade da razão humana, o corajoso termo de “autêntico iluminismo”. Como se dissesse que a nossa cultura ocidental – que se gaba de racional por ter rejeitado Deus – está longe de ser iluminada.

O espírito grego
A consciência de que “existe uma verdadeira analogia entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e a nossa razão criada”, sempre fez parte do patrimônio da Igreja, que, quando surgiu, encontrou bons sinais na melhor filosofia grega. Tanto que São João inicia seu Evangelho chamando Deus de logos, isto é, não só palavra, mas também razão.
Esse encontro entre a revelação cristã e o espírito grego foi casual e, portanto, superável, ou é essencial e constante? Bento XVI abraça com força esta última tese. Não porque ele “prefira” o espírito grego, mas em consideração à natureza da Encarnação. Esta, de fato, se realiza sempre através de particulares formas concretas. Uma vez assumidas, essas formas não podem ser consideradas casuais, mas de algum modo constituem o rosto mesmo da Encarnação. Claro, nem todas, e nem todas do mesmo modo. Mas certamente a descoberta de Deus como logos não é uma “superestrutura grega” da Encarnação, e sim seu elemento fundamental, tanto mais que o próprio Evangelho se apropria inequivocamente dela. Não se pode esquecer, como exemplo dessa dinâmica, a dialética entre fator humano e fator divino, desenvolvida no livro Por que a Igreja, de Dom Giussani.

A des-helenização
O termo pode parecer complicado, mas sua essência é clara: quando a fé se separa da razão (sob o pretexto de se livrar do “racionalismo” grego), o cristianismo se desfigura.
Bento XVI dá três exemplos. A Reforma protestante, que termina por levar à separação entre a razão “pura”, onde o problema de Deus não se coloca, e a razão “prática”, onde a fé só entra em termos morais, de prática de vida. A semelhante conclusão chega a segunda des-helenização, aquela que, buscando o Cristo histórico apenas nos documentos, faz dele o “puro pai de uma mensagem moral humanitária”. E, enfim, a des-helenização atual, segundo a qual o cristianismo recebido da tradição européia não seria bom para os povos que habitam regiões fora do velho continente.
Não se trata de meras análises de história da cultura. Basta pensar no fato de que a fé – não concebida como gratuita e imprevisível resposta à exigência da razão (que é comum a todos os homens e só assim se pode estabelecer o diálogo) – acaba sendo reduzida a mero moralismo (a prevalência da ética sobre a ontologia) ou a um humanitarismo genérico. Pense-se também que, sem a certeza de que a fé responde ao coração/razão de cada homem, a missão é, de fato, impossível (na verdade, alguns teólogos teorizam que ela seria mesmo prejudicial).

O cientificismo
Se a razão não tem “analogia” com o mistério de Deus, as perguntas sobre Deus – isto é, sobre o sentido – não podem ser colocadas e somos obrigados a dar valor exclusivamente à racionalidade científica. Como se o homem pudesse alcançar certezas só nos âmbitos que, no fundo, menos lhe interessam, sendo excluídos justamente aqueles que se referem ao significado. É a razão reduzida a uma sala fechada, quando na verdade é uma janela aberta. Janela através da qual Deus – que nos fez semelhantes a Ele – se deixa entrever como Mistério.
Nesse caminho de inesgotável busca do significado, a razão – com os métodos próprios a cada objeto que encontra – lê o real, descobre as suas dinâmicas; isto é, faz verdadeira ciência.