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Passos N.74, Julho 2006

IGREJA

Movimentos: a obra é do Espírito

por Alberto Savorana

A mensagem do Papa e as anotações das preleções apresentadas pelos Cardeais Schönborn e Scola, no II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades. Rocca di Papa, 31 de maio a 2 de junho de 2006

Com a leitura da longa mensagem assinada por Bento XVI, foi aberto o II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, que de 31 de maio a 2 de junho reuniu, em Rocca di Papa, 300 representantes de mais de 100 realidades católicas, provenientes de todo o mundo. Foi a preparação ao grande encontro com o Papa, dia 3 de junho, na praça São Pedro, na vigília de Pentecostes, do qual participaram mais de 400 mil pessoas. O Congresso teve como título “A beleza de ser cristão e a alegria de comunicá-lo”, que retoma as palavras da homilia do Papa no início do seu ministério petrino, dia 24 de abril de 2005.
A composição do Congresso pôs em evidência, além dos mais conhecidos Movimentos, uma miríade de Novas Comunidades, caracterizadas por dois elementos: uma ligação muito forte com Bento XVI, visto como referência segura para a própria vida de fé; e a necessidade de uma educação para aprofundar as razões dessa mesma fé, de tal sorte que o maravilhamento inicial se desenvolva como convicção pessoal.
E isso mostrou o quanto essa multiforme realidade de Movimentos e Novas Comunidades precisa de uma linha de orientação, que o Pontifício Conselho para os Leigos é chamado a oferecer, por delegação do Papa, que apela para que se observe a natureza do cristianismo, que não é sobretudo um discurso ou uma ética, mas “o evento de um encontro” (Deus caritas est) que transforma a vida.
No I Congresso dos Movimentos, o então Cardeal Ratzinger havia desenvolvido o tema “Movimentos Eclesiais e sua colocação teológica”. Oito anos depois, dirige-se aos congressistas com toda a autoridade de um Papa. Ele nos convida a refletir “sobre aquilo que caracteriza essencialmente o evento cristão: nele, de fato, vem ao nosso encontro Aquele que em carne e sangue, visivelmente, historicamente, trouxe o esplendor da glória de Deus para a Terra”.
Em uma época na qual a razão do homem está seriamente ameaçada pelo relativismo e pelo niilismo, o Papa observa que “Cristo torna-se presente no coração do homem e o atrai. É graças a essa extraordinária atração que a razão é arrancada de seu torpor e se abre para o Mistério”. Isso, continua o Papa, “pôs muitas pessoas em ‘movimento’... Ainda hoje Cristo continua a fazer ecoar no coração de muitas pessoas aquele ‘vem e segue-me’ que pode definir o destino de cada um. Isso acontece, normalmente, por meio do testemunho de quem fez uma expe-riência pessoal da presença de Cristo”.
A mensagem prossegue com um apelo aos Movimentos: “Levai a luz de Cristo a todos os ambientes sociais e culturais em que viveis... Iluminai a escuridão de um mundo perturbado da-nos a oferecer “o testemunho da liberdade com a qual Cristo nos libertou. A extraordinária fusão entre o amor a Deus e o amor ao próximo torna a vida bela e florido o deserto em que geralmente vivemos... Onde a caridade se manifesta como paixão pela vida e pelo destino dos outros, irradiando-se para as afeições e para o trabalho e tornando-se força de construção de uma ordem social mais justa, aí se constrói a civilização, capaz de barrar o avanço da barbárie”.
Não se fala de uma fuga do mundo, para se seguir uma vaga religiosidade ou uma espiritualidade desencarnada; ao contrário, convida-nos para a máxima participação possível nas aventuras da vida terrena, num “impulso missionário” que significa comunicar aos outros a beleza do cristianismo, que é capaz de transformar o mundo. Bento XVI termina lembrando aos Movimentos e às Novas Comunidades que “vós pertenceis à estrutura viva da Igreja. Ela vos agradece pelo vosso empenho missionário, pela ação formadora, pela promoção das vocações” e também "pela disponibilidade que demostrais a acolher as indicações operativs não só do Sucessor de Pedro, mas também do Bispos".

Cristo, o mais belo
dos homens

Cardeal Cristoph Schönborn, Arcebisbo de Viena
Lá onde está Cristo, aí existe a beleza. Lá onde está o coração, a vida se abre para Cristo, a beleza se manifesta como uma torrente vivificante, sobre um mundo deprimido pelo pecado, desfigurado pelo mal. E isso se verifica depois de dois mil anos.
O verdadeiro, o bom, o belo, não são atributos exteriores a Deus, mas coincidem com o próprio ser de Deus. Deus é a Verdade, o Bem, o Amor, a Beleza.
Toda a beleza criada é uma participação na beleza infinita do “ser” de Deus. Se isso é verdade, precisamos dar um passo adiante e dizer que o Verbo, fazendo-se carne, “encarnou”, por assim dizer, a bondade e o amor, a verdade e a beleza infinita de Deus. Cristo é “o mais belo dos filhos dos homens”, não em razão de qualidades estéticas particulares, mas porque é a beleza encarnada de Deus. Todo o seu ser é amor e verdade, bondade e beleza. Cristo é o resplendor da verdade, o resplendor da bondade. Cristo, com a sua encarnação, representou um novo “cânon da Beleza”. Não apenas restabeleceu a beleza original da criação, perdida e profanada pelo pecado e pelo mal, mas representa, em sua pessoa, a fonte de toda beleza. Ele distribui para o mundo a água viva da beleza. E toda a beleza do mundo, tanto a da natureza quanto a da virtude ou da arte, são irradiação da sua Beleza... que se tornou acessível a nós pela Encarnação.
Não há nada de mais belo no mundo do que a santidade. Podemos aplicar aos santos o que a carta aos Hebreus diz de Cristo: são como que “a irradiação da glória de Deus”. Cristo era belo no céu e na Terra, no seio de sua mãe e quando era acolhido entre seus braços, belo no madeiro da cruz e quando subiu ao céu.

A beleza
de ser cristãos

Cardeal Marc Ouellet, Arcebispo de Québec e Primaz do Canadá
A estética pode ser uma via fecunda para Igreja de hoje? Sob certos aspectos, o cristianismo atual, se fosse desprovido das suas forças vivas, não correria o risco de enrijecer-se numa situação de resíduo cultural de uma época passada? Ouso arriscar a hipótese de que a via da beleza é a via própria dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades. No início do terceiro milênio, será que não somos chamados a recomeçar partindo da beleza de Cristo? A via do belo vai ao encontro das aspirações mais profundas do coração humano.
É urgente, hoje, explorar essa via da beleza, porquanto o ponto de vista da verdade e da bondade alcança com menos força o homem atual, embebido de ceticismo e de relativismo. A tarefa dos cristãos consiste em restaurar essa harmonia entre a verdade, a bondade e a liberdade, a partir do encontro vivo com Cristo, que dá um sentido à vida, abrindo-a para a totalidade do real.
O amor divino que resplandece na face de Cristo e dos cristãos... desperta o “eu” de cada um de nós, naquilo que possuímos de mais pessoal e livre. Digamos mais. A unicidade do cristianismo, em relação a qualquer outra religião, está no fato paradoxal de que ele absolutiza, de certo modo, o “eu” de cada pessoa no mesmo momento em que o relativiza, isto é, em que o torna plenamente relacional.
Uma das missões dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, na presente hora do mundo e da Igreja, é o de educar para a humanidade, para uma plenitude de humanidade. O amor não é só um sentimento, é uma pessoa, uma visão, um compromisso que ilumina todas as dimensões do ser humano, sem deixar de lado a sua razão e a sua sensibilidade. O lugar que Deus preparou para os cristãos é tão belo que não lhes é permitido deixá-lo vazio. Permaneçamos, pois, a postos!

Movimentos Eclesiais
e Novas Comunidades
na missão da Igreja:
prioridade e perspectivas

Cardeal Angelo Scola, Patriarca de Veneza
1. Enviados pelo Espírito de Jesus Cristo. Toda realização da vida eclesial – como documenta a história bimilenar do povo de Deus – é caracterizada pela permanente recolocação do evento pessoal e comunitário do encontro com Jesus Cristo.
Um elemento fundamental do magistério de João Paulo II a respeito dos Movimentos documenta a bondade desta afirmação: “Várias vezes tive a oportunidade de sublinhar que na Igreja não existe contraste ou oposição entre a dimensão institucional e a dimensão carismática. Ambas são co-essenciais à constituição divina da Igreja fundada por Jesus, porque concorrem juntas para tornar presente o mistério de Cristo e a sua obra salvífica no mundo”.
As dimensões institucional e carismática fazem parte de qualquer realização da Igreja, da Igreja universal e da local, da diocese e das paróquias, das clássicas associações de fiéis e dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades.
Cada uma dessas realidades, segundo a sua específica natureza, vive dessas duas dimensões. É, pois, errado reduzir os Movimentos à pura dimensão carismática e relegar as dioceses, paróquias e associações clássicas à dimensão institucional.
Dois corolários de natureza pastoral.
> O seguimento do carisma permite descobrir a objetividade do próprio Batismo, que nos incorpora a Cristo e faz com que nos tornemos membros uns dos outros. Se a dimensão carismática é co-essencial, objetivamente quem encontra um Movimento autenticamente eclesial aí vive uma experiência integral de Igreja. Todavia, a natureza sempre contingente do carisma fundador, e ainda mais do Movimento que dele deriva, deve acautelar-se do risco, mesmo que indireto, de impô-lo como modelo para toda a vida da Igreja. Uma expressão danosa desse risco pode derivar da tentativa, aparentemente generosa, de criar – de fato ou de direito – um organismo geral de coordenação dos novos Movimentos, como se o problema da maturidade eclesial, de que falava João Paulo II, pudesse ser resolvido com a organização unitária dos novos Movimentos, com planos conjuntos de ação, para depois dialogar com as dioceses, as paróquias e as associações clássicas de fiéis.
> Nenhuma “estratégia pastoral” pode, por si mesma, gerar o povo santo de Deus. Em particular, os pastores devem resistir à tentação, compreensivelmente induzida pelas graves urgências pastorais, de conceber os Movimentos como mera “força de trabalho”, sem querer impor planos nem programas pastorais tão rígidos que mortificariam os diversos carismas. Por outro lado, devem os Movimentos ter a responsabilidade de assumir, com a própria especificidade, a proposta pastoral do Bispo.

2. A missão no Terceiro Milênio.Condições essenciais a que os Movimentos e as Novas Comunidades devem permanecer fiéis se quiserem que a origem gratuita da sua experiência se torne fonte permanente da livre adesão, por parte de cada um dos seus membros, ao encontro com o Senhor e estrada benévola para a missão junto aos nossos irmãos homens.
> A primeira dessas condições, sem dúvida a mais urgente, é o estabelecimento do “sujeito eclesial” pessoal e comunitário, lugar da proposta viva da atração que Jesus Cristo exerce sobre todas as pessoas. Antes de tudo, precisamos de pessoas e comunidades decididas a testemunhar a relevância do encontro com Cristo para a experiência elementar de cada homem. Esse “zelo” com o sujeito permite recuperar concretamente o dado elementar, hoje freqüentemente esquecido, de que a vida é, em si mesma, vocação. A vida como vocação precede a vocação a um específico estado de vida. Toda comunidade cristã deve promover uma permanente educação para a fé, entendida como critério vital para se enfrentar a realidade. Na vida do cristão, o dizer de São Paulo “avaliai tudo e ficai com o que é bom” (1Ts 5, 21) porque “tudo é vosso! Mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus” (1Cor 3, 22-23) não pode ser um dado automático, mas requer um orgânico trabalho de educação. É impossível separar, na educação cristã, “aquilo” que Jesus ensina do “como” ele o ensina.
> O sujeito cristão é chamado a dar testemunho do evento encontrado, isto é, se expor no seguimento de Cristo, seguindo as pegadas do carisma, participado e objetivamente garantido pela autoridade. O testemunho é, afinal, a alegre garantia de uma vida boa, que foi transformada pelo fascínio de Jesus. O testemunho como urgência intrínseca da autenticidade de todo carisma é exigido de modo radical pela trajetória dos fundadores de Movimentos e Novas Comunidades. Na prática do testemunho pessoal nos tornamos cada vez mais filhos e, portanto, fiéis à graça recebida: filhos e não simples imitadores.
Para o cumprimento da missão dos Movimentos e das Novas Comunidades não existe uma estrada única, que todas essas realidades deveriam percorrer. Isso impõe a coragem e a paciência de saber descobrir novas formas. De um lado, em algumas dessas realidades se desenvolve a consciência de que o seguimento do carisma significa simplesmente expressar uma modalidade persuasiva da normal pertença à Igreja. Tais Movimentos querem educar para a “lógica sacramental” própria da existência cristã como tal. Ela permite enfrentar as condições de vida comuns a todos os fiéis sem enfatizar formas e organismos específicos de engajamento, de testemunho e de organização. Essa orientação favorece uma concepção e uma prática de movimento entendido como lugar de fraternidade e amizade cristãs, capaz de assumir com agilidade as demandas próprias de cada tempo e lugar.
A missão não é, antes de tudo, uma atividade específica, ulterior à vida cotidiana. A pessoa mesma, fascinada pela beleza do encontro com Cristo pela força de um carisma persuasivo, comunica, cheia de alegria, essa beleza na trama cotidiana da existência – afetos, trabalho e repouso –. A missão eclesial não tem, como sabemos, outras fronteiras que aquelas mesmas do mundo. Isso vai ao ponto de mostrar as implicações antropológicas e sociais da novidade de vida gerada pelo Batismo e tornada fascinante pelo seguimento do carisma, dentro da vida da Igreja.
A propósito, é significativo o peso que ultimamente vem tendo o debate sobre o que é “religião” e “laicidade”, pelo menos na Europa e nos Estados Unidos. De um lado, há os que absolutizam a relação cidadão-Estado, relegando para o nível privado qualquer pertença ou identidade (cultural, religiosa). Do outro, assistimos a uma enfatização das “diferenças” culturais, religiosas e étnicas, a ponto de torná-las incomunicáveis entre si. A antropologia que nasce do encontro com o Ressuscitado, justamente porque respeitosa da natureza específica da experiência elementar, não permite que a pessoa se deixe enredar em tais posições. O homem, constitutivamente religioso, é capaz de hospedar todo o real que, em suas linhas essenciais, é cognoscível. Movimentos e Novas Comunidades são chamados, pois, a um testemunho integral que chegue até essas implicações. Só assim serão fiéis à natureza essencialmente missionária do cristianismo.