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Passos N.73, Junho 2006

EXPERIÊNCIA - ÁFRICA | DIÁRIO DE BORDO

No coração da África, na profundidade do homem

por Pier Alberto Bertazzi

Uma viagem para visitar as comunidades africanas do Movimento em Uganda, Quênia e Nigéria. Uma vitalidade contagiante que gera obras e uma nova humanidade

UGANDA
Cólera
O trabalho não tinha sido pouco. Quarenta artefatos de cimento, cada um com 150 quilos transportados um a um por uma estrada cheia de buracos que leva a uma cidadezinha perdida no lago Alberto, confim intransitável entre a Uganda e o Congo. Mas, finalmente, os dois poços artesianos foram feitos. E funcionavam, e parecia uma festa. Seis meses depois, voltando para o controle periódico, a surpresa foi grande ao constatar que ninguém, na realidade, havia se servido alguma vez deles. E, no entanto, fora uma escolha bem estudada: a cólera era muito comum naquela área e o uso das margens do lago como latrina e como reserva de água ao mesmo tempo criava um circuito mortal que era imperativo interromper. “Sim, mas a água do lago é melhor, pega-se com mais facilidade e sempre fizemos assim!”. Era preciso uma razão realmente grande para acontecer uma mudança, um “novo dia”. Grande o bastante inclusive para abraçar o absurdo daquele modo de viver e daquela obscuridade na qual, no entanto, ainda se escondia o desejo de uma vida bela, justa e feliz; um desejo, talvez, ainda não “educado”. Esta razão grande brilhava, visivelmente, no rosto de quem estava me contando essas coisas. Onde há algo que vive, o absurdo nunca consegue explicar nada.

O grupo de Kirega
De repente, o encontro sentado na minha frente olhando o céu, o que, na África, é algo comum. Eu pensava que o seu mundo fosse todo entre um jardim, muito bem cuidado, um quintal com cães e um portão, sempre pronto a ser aberto a cada chegada de um carro “amigo”. “Acho que lhe conheço – me disse –. Você se chama Pier, nos vimos em Kirega, sou um dos amigos da Rose”. É verdade, já havíamos nos encontramos, ele tinha razão. E me preparo para perder alguns minutos com este jovem simpático. E ele recomeça a falar imediatamente, e decidido: “Olha, na Escola de Comunidade, quando falamos sobre o fator humano, descobri que ele é decisivo na minha experiência...”. E assim, maravilhado, me vi retomando os textos da nossa vida por causa das frescas e agudas perguntas de Jimmy, um rapaz com menos de 20 anos, um dos jovens do grupo de Kirega, uma favela de Kampala, em Uganda. No fim, também me mostrou a sua habilidade com o adungu, pequena harpa “davídica”, com a qual muitos jovens daqui são virtuosos. Poucas semanas antes havia feito um passeio com a Rose em um total de 180 pessoas!

Os direitos e o sentido da vida
Clara, Giovanna e Kizito contam que levaram o livro Educar é um Risco nas escolas, nas favelas e nas prisões de Uganda e, em todo lugar, a reação foi de grande entusiasmo. Um dos cursos foi ministrado na maior prisão de Uganda, a de Luzira, em Kampala, que detém cerca de 1.500 prisioneiros. Foram seis semanas de formação sobre Educar é um Risco para nove assistentes sociais novos. No final, durante a entrega dos certificados de participação, os diretores do departamento da penitenciária que se ocupa da formação do pessoal, tendo ouvido falar do curso pelos profissionais que participaram da formação, pediram a eles para continuar acompanhando os novos temas, para ajudá-los a formar todo o pessoal da prisão (cerca de 600 pessoas) e também para elaborar uma palestra voltada para os prisioneiros. Disseram que até agora tinham ouvido falar muito sobre “direitos humanos”, mas que aquilo que era dito neste curso ia muito além e que era exatamente isso o que toda a sociedade precisava.

QUÊNIA
Cinco escolas, apaixonadamente
Cinco escolas: uma maternal, duas elementares, uma profissionalizante e uma de ensino médio, recentemente inaugurada. Assim, surpreendentemente, desenvolveu-se a presença do Movimento na região de Nairobi. E em volta de cada escola, projetos sociais para as crianças e suas famílias. É surpreendente, também, o testemunho de unidade entre os africanos e os italianos responsáveis por essas obras. “São Kizito” é a escola profissionalizante que marcou o início da presença do Movimento no Quênia, nascida a convite de padre Marengoni (companheiro de seminário de Dom Giussani) e muito ampliada graças aos projetos da Fundação AVSI. “Emanuela Mazzola” é a escola maternal da paróquia da Fraternidade São Carlo. A escola elementar “Carovana” é da Fundação Urafiki constituída por adultos da paróquia da Fraternidade São Carlo e por alguns italianos. A escola elementar “Little Prince” fica na região da favela de Kibera (a maior da África, com 900 mil habitantes). A escola de ensino médio “Cardeal Otunga” foi a última inaugurada. Há uma unidade dentro de cada escola e entre todas elas, tensas a colocar em prática aquela educação que, como dizia Dom Giussani, é o motivo de existir do Movimento. A coisa mais bonita é ver como, falando do próprio trabalho na escola, cada um fala, na realidade, de si, das descobertas e das mudanças acontecidas por meio da experiência feita e do aprofundamento da unidade com os amigos. E não menos apaixonado é o trabalho de Cowa e de muitos adultos que tentam ajudar os jovens a entrar no mundo do trabalho ou a tentar experiências de micro-empreendimentos. O que lhes interessa é a vida.

NIGÉRIA
Aqueles que são a favor da morte
Foram mais de 50 mortes entre a pequena minoria cristã que vive em Maiduguri, território Hausa, no norte do imenso país (“gigante da África”). Quarenta igrejas destruídas, inclusive a residência do Bispo, e um padre católico trucidado. Tudo planejado nas mesquitas durante “a oração da sexta-feira”. Nenhuma colocação, nenhuma investigação, nenhuma responsabilidade. Quando os corpos martirizados das vítimas voltaram ao leste do país, cristão em sua maioria, se desenvolveu uma caça aos homens do norte na cidade de Onitsha, território Igbo: dezenas de pessoas foram mortas barbaramente, milhares em fuga, e duas mesquitas foram incendiadas. O Conselho das Igrejas Cristãs condenou o assassinato de indefesos e a destruição de propriedades dos cristãos durante anos e denunciou que estes extremistas têm “o pleno apoio e o sustento de influentes muçulmanos que nunca aprenderam a apreciar o valor de uma convivência na paz”. E acrescentou que o Conselho “poderia não estar mais em condições de conter a própria juventude irrequieta no caso desta maldosa e triste tendência prosseguir ulteriormente”. A Conferência Episcopal denunciou a falta de intervenção das autoridades que sabiam antecipadamente das ameaças, a absoluta falta de indagações e investigações sobre os culpados e a falta de qualquer luto público. “Pedimos a todos os cristãos, especialmente aos nossos irmãos e irmãs do Norte, que estão há tanto tempo no sofrimento, que permaneçam fiéis a Jesus Cristo, príncipe da paz. Encorajamos a combater constantemente com todos os meios constitucionais para afirmar os próprios direitos de cidadãos livres de uma Nigéria democrática em estabelecer e praticar a própria religião livremente em qualquer lugar do país. Suplicamos que evitem qualquer violência porque é incompatível com a fé cristã e com qualquer religião autêntica”. As primeiras páginas dos jornais estão todas voltadas para o delta do Niger, onde acontece a revolta dos Ujaw, com nove ocidentais dependentes de companhias de petróleo estrangeiros raptados. E é provável que uma vida humana ali não valha mais do que um barril de petróleo.

Educar à realidade
Em Lagos (mais de 15 milhões de habitantes) só a metade das crianças e um quinto dos que têm entre 12 e 17 anos freqüentam a escola. Muitos vivem em caminhos de exploração ou se delinqüindo de mil maneiras para poder comer. As pesquisas feitas sublinham que a falta de orientação e de sustento econômico são as principais causas disso. Mas também diz respeito à mentalidade dominante que coloca o valor da pessoa na capacidade de ter dinheiro e poder (mesmo que pequeno). O problema não é só a impossibilidade de ir à escola. Os jovens universitários de Lagos que freqüentam o Movimento afirmam que um olhar atento à situação faz entender que não existe uma relação concreta entre a educação que é oferecida e a realidade em que se vive. Por isso, dizem, “qualquer tentativa de ajudar estes jovens sem considerar a necessidade de uma educação que os introduza num relacionamento com a realidade seria grosseiramente inapropriado”. Dito e feito. Para começar a agir iniciou-se um trabalho com 120 crianças e jovens entre 6 e 14 anos. Com a Universidade fechada pela enésima vez, é uma ocasião de caritativa para os estudantes, ou seja, ocasião de verificação, antes de mais nada, para si, de que a necessidade é ocasião para dar-se conta daquilo que nos constitui, de compartilhá-la e, desse modo, ajudar-se e educar-se à real estatura da nossa humanidade. A Conferência Episcopal dizia aos católicos, depois dos fatos de Maiduguri: “Nunca nos cansemos de combater o mal com o bem e de semear amor onde há ódio”. Para os universitários de Lagos isso é possível.