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Passos N.71, Abril 2006

CULTURA

A escola hoje - Entrevista com Alain Fienkielkraut

por Rodolfo Casadei e Flora Crescini


O filósofo francês se confronta com o tema educacional: a situação da escola de hoje, o papel da razão, os riscos de um ensino meramente instrumental, a valorização da relação aluno-professor, a tendência de julgar. Contra a guinada materialista da educação

A seguir a entrevista com o intelectual francês Alain Fienkielkraut, que em novembro de 2005 esteve no centro das polêmicas ao publicar no prestigioso diário israelense Haaretz, uma entrevista sobre a desordem na periferia da França. Fienkielkraut é filósofo, professor da École Polytechnique de Paris e co-fundador do Institut d’études lévinassiennes. No Brasil, as suas obras traduzidas são: A ingratidão. Um ensaio sobre a relação do homem de hoje com a História (Objetiva, 2000), A humanidade perdida (Ática, 1998), A memória vã (Paz e Terra, 1990) e A derrota do pensamento (Paz e Terra, 1988).

Em seu livro Noi altri, i moderni, o senhor descreve a parábola do mundo moderno, que desemboca no relativismo e no individualismo pós-modernos. E o que será da educação, em nosso mundo que é, ao mesmo tempo, moderno e pós-moderno? Ainda é possível educar, na acepção dada pela filósofa Hannah Arendt ao termo Educação, isto é, integração dos recém-nascidos ao mundo que já existia antes deles e transmissão do saber?
Não se deve dar, a essa pergunta, uma resposta muito categórica, mas digamos que a escola não é mais algo familiar, no mundo de hoje. A escola aparece, cada vez mais, como uma exceção, uma esquisitice, um anacronismo.
A modernidade dava grande importância à escola, mas hoje a escola parece antimoderna. Entre ela e a sociedade abriu-se um abismo: a escola e a sociedade não falam a mesma língua. A escola fala de paciência, de recordação; a sociedade fala de instante, de prazer imediato. E é grande a tentação de renunciar a preservar, ou então de reforçar a exceção escolástica, de regular a escola pelo regime da sociedade: isto é, uma escola totalmente profana, que funciona segundo os mesmos ritmos e obedece aos mesmos valores da sociedade. O que restava da educação liberal sucumbe em proveito do lucro e do imediato; o que restava da transmissão desaparece em proveito da comunicação.
O que mais me perturba é a falência da própria instituição. Em resumo, pode-se entender que a escola passa por dificuldades, tem relação difícil com o resto do mundo. Há uma razão para isso. O problema é que a instituição renuncia defender-se: todas as reformas concebidas, nestes anos, e que foram preparadas com o colaboração da própria escola, tendem a “desescolarizar” cada vez mais a escola. E a substituir a cultura escolástica pela cultura comum, que tem por modelo a adaptação: adaptação ao mercado, ao clima social, aos valores dominantes do imediato e do lucro, adaptação, enfim, às necessidades do aluno – que na linguagem moderna não é mais chamado de “aluno”, mas de “jovem”. Acho que essa inovação léxica é muito reveladora. Numa instituição há alunos, porque o aluno é o parceiro no “jogo” institucional: há alunos porque há mestres. Os alunos são “promovidos” dentro do perímetro de uma escola. “Jovem” é um termo genérico que se usa em todas as situações da vida e que, portanto, contribui para dissolver a instituição escolástica no social. E se não há mais alunos, mas jovens, então também não há mais mestres, mas animadores e instrutores. Albert Thibaudet escreveu, a propósito da III República, que era uma “república dos professores”; o século XXI, na França, vê o nascimento da “república dos instrutores”.

Hoje se fala de habilidades matemáticas, de estudo da sociologia, de “aprender a aprender”. Do que depende essa guinada materialista da educação?
O objetivo do ensino era o conhecimento. A cultura devia ser um fim em si mesma. Não íamos à escola para sermos assumidos, íamos à escola para sermos “cultivados”. E é essa acepção que, hoje, cai em desuso. Sobretudo no seio da grande burocracia mundial, da qual a Unesco é uma das jóias mais belas.
Habilidade matemática, sociologia: trata-se de uma visão instrumental da escola e da inteligência; por outro lado, a ascensão da sociologia é uma das numerosas manifestações do advento do reino do imediato. A sociologia leva em conta a sociedade tal como ela é agora; a sociologia se desenvolve sacrificando a história. O primeiro e o maior dos sociólogos, Augusto Comte, dizia que a sociedade é composta mais de mortos do que de vivos; a sociologia contemporânea é constituída e se desenvolve apenas em torno dos vivos. Antes, a cultura era, no fundo, uma espécie de culto aos grandes mestres mortos; estamos nos desfazendo dessa religião em benefício do senso comum, de um tipo de existência no qual só os vivos importam. Temos a tendência de esquecer dos mortos e daquilo que devemos a eles; a escola era uma luta contra esse esquecimento; agora a escola não luta mais, ela participa do esquecimento generalizado dos mortos.

Na jornada de inauguração da Universidade Católica, Bento XVI disse que a razão foi reduzida a experimentação, de tal modo que as questões fundamentais da existência do homem, a vida e a morte, foram lançadas para fora do espaço da razão. O que o senhor pensa disso?
Diria que, efetivamente, a modernidade se desenvolveu sobretudo como um espaço de experimentação. Dito com outras palavras: um dos efeitos do Iluminismo foi o de substituir a expertise pela experiência. Por outro lado, a modernidade caiu numa armadilha: com Descartes, quis submeter a razão ao método, mas o método construiu um mundo que, sob muitos aspectos, lhe escapa por entre os dedos. É um mundo onde a técnica fabrica, onde mergulhamos na incerteza e onde os riscos procedem da técnica mesma, muito mais que da natureza externa. Daí a necessidade, para o homem do método, de redescobrir a virtude da prudência; o mundo do método é um mundo que se tornou incontrolável e inseguro, que exige de nós aquilo que os gregos chamavam de fronesis, isto é, a sabedoria prática adaptada à particularidade dos casos, para resolver os problemas com os quais o homem se defronta.

Quer se trate de educação física, quer se trate de educação intelectual, o problema parece ser o mesmo: a atitude instrumental. É possível pensar, hoje, uma educação que não seja meramente instrumental, que se abra para a realidade e a deixe falar?
É possível, sim, até porque é a tradição que a propõe. Mas precisamos de mestres e, por outro lado, de alunos que sejam capazes de compreendê-los.
O problema é o seguinte: no mundo de hoje ainda há lugar para a paixão e para a ascese? E gostaria de acrescentar uma coisa: uma das dificuldades que a escola encontra, hoje, tem a ver com o desenvolvimento e também com a pressão da paixão pela igualdade. Essa é a paixão que domina a todos; mas a escola representa uma exceção a esse respeito. Para que aconteça a transmissão do saber, é preciso admitir que existe uma assimetria entre o aluno e o professor, e também entre o aluno e as obras culturais. É preciso que se desenvolva a capacidade de admirar, e não simplesmente a de respeitar a dignidade de todos. É necessária a capacidade de admirar a superioridade do outro. Poucos percebem que o respeito democrático, continuamente invocado, está matando a admiração. E se não há mais lugar para a admiração, então o ensino humanista, o ensino liberal, não é mais possível. Hoje, a tendência predominante é a de considerar humilhantes não só as possíveis notas baixas, mas até o confronto dos alunos, em sua imperfeição, com a massacrante beleza das grandes obras da humanidade. A tendência atual é o nivelamento, em nome da igualdade. Evidentemente, isso é fatal para a escola; ou, de qualquer forma, para a cultura na escola.

Em recente conferência em Milão, o senhor disse que a escola de hoje dá a palavra aos alunos antes mesmo de lhes ensinar a língua. Por que essa derrota da língua, no mundo de hoje?
Efetivamente, eu creio que toda a pedagogia moderna está fundada no princípio da expressão. Seu imperativo é: eliminar as inibições que se abatem sobre os alunos, torná-los capazes de se expressar a si mesmos. Trata-se do estágio terminal do subjetivismo: somos todos capazes de pensar autonomamente; esse é o belo princípio fundamental do Iluminismo. Hoje, porém, esse princípio enlouqueceu; enquanto o Iluminismo distinguia entre adultos e crianças, atualmente o princípio da autonomia se aplica a todos imediatamente, inclusive às crianças. Por isso, com uma generosidade imbecil, a escola pretende dar a palavra aos alunos, antes mesmo de lhes ensinar a língua, esquecendo-se de que ninguém pensa por si mesmo sobre si próprio, mas só dentro de um mundo que nos precede e nos transcende, e, sobretudo, dentro de um mundo verbal. E é de uma importância crucial que todos os homens possam habitar esse mundo verbal. Porque quanto melhor se fala, melhor se observa; a qualidade do nosso olhar depende da qualidade da nossa sintaxe. É preciso dar um nome àquilo que se vê, para poder vê-lo. É preciso elaborar e desconstruir as sensações, para ter as sensações; a qualidade da nossa receptividade depende da qualidade da nossa língua. Pelo contrário, a lógica da expressividade acima de qualquer coisa leva a dar a palavra a quem ainda nem sabe falar. Essa é uma tragédia que se percebe sobretudo na França, onde a língua francesa vai se perdendo; cada vez menos franceses falam a própria língua: a televisão – isto é, a tele-realidade dos talk show – deixa isso muito claro. É uma catástrofe nacional.

O pensamento, a língua, o olhar: tudo se dirige para o julgamento. O que é, para o senhor, o julgamento?
Aqui precisamos recorrer a Hannah Arendt: o pensamento deve levar ao julgamento. Isto é, não se pode julgar de qualquer jeito; é preciso que o juízo seja iluminado. Em resumo, é preciso saber distinguir, opor, ordenar hierarquicamente. Um dos objetivos da educação deveria ser o de desenvolver a atenção, como dizia Simone Weil, e, assim, também a inclinação para um juízo escrupuloso. Mas, na realidade, a cultura de hoje se inspira num cristianismo banalizado ao dizer “não julgueis”. E “não julgueis” se torna a palavra de ordem da tolerância. É esse o desafio que vivemos hoje: o antagonismo assustador entre o juízo e a tolerância, porque julgar é discriminar.
Para qual direção somos constantemente levados e pressionados? A rejeitar todas as discriminações. E, assim, em nome da tolerância, a erigir a morte como modelo. Como a morte torna todos iguais, ela é a grande equalizadora. Ninguém a supera nessa função. Nossa época, para ser fiel ao seu princípio de abertura e de tolerância, vai se aproximando cada vez mais da morte. É o fim!